sábado, 9 de maio de 2009

Linguagem do medo

Desta vez, subimos eu e Andrés até o quarto de Renan. Pedi que Duílio esperasse no térreo com "sêo" Octávio e Donana, ficasse de fora da discussão. Na verdade, eu não sabia se seria melhor com Andrés do que com ele. O que eu sabia era que tínhamos coisas a conversar com Renan.

Fomos encontrá-lo sentado na frente de seu computador. Ele, como de costume, não olhou diretamente para nós. Ficou ali absorvido (ou fingindo-se absorvido) por mais algum tempo na tela até que eu dissesse que queríamos conversar com ele.

"Renan, eu não acho que a gente tenha que ficar aqui implorando que você se digne a nos dar a sua atenção", eu disse em tom firme e suave.

Ele se virou e nos encarou automaticamente. Desligou o computador num movimento que quase não consegui acompanhar. Ficou um tempinho andando pelo quarto como Cícero em meio a um de seus famosos discursos, só que sem a oratória do supracitado. Perguntou o que estávamos fazendo no descampado à noite.

"Desculpe, policial, mas hoje quem faz as perguntas somos nós", retrucou Andrés, já um tanto quanto abespinhado, "se não enxerga as pessoas no meio da noite e vai direto no seu alvo como você sempre diz, por que foi que parou a cavalgada e veio ter com a gente? Você enxerga à noite ou nós éramos o seu alvo?"

Renan sorriu. Eu não tinha parado para pensar nisso. Boa pergunta de Andrés.

"As duas coisas", Renan respondeu, "eu não conseguia enxergar, mas agora consigo. É como uma luz que sai dos meus olhos, como um farolete, mas é muito forte", e ele olhou para mim, "a senhora não pode ficar olhando para a luz como fez na noite, D. Stella. Pode só dar um medão danado como pode também gastar suas vistas."

"Eu disse isso a ela", tornou Andrés, "por que foi nos procurar?"

"Eu estava voltando pra casa quando vi vocês. Resolvi parar pra ver o que vocês estavam fazendo."

"Que simpático!", resmunguei entre o resignado e o inconformado.

"E com certeza ia dar muito trabalho ir até a sua casa e se trocar", ironizou Andrés. Renan ficou calado. Depois de algum tempo, ele afirmou que sentiu o nosso medo nos ossos dele. Tenho medo dele quando começa a falar assim, embora saiba que é da natureza dele falar desse modo.

"Me admirei muito a senhora ter olhado para mim de novo. E o seu medo cresceu tanto nessa hora que a minha energia subiu de uma forma que eu nunca senti. O Andrés também, com os olhos apertados, se mijando de medo…"

"Você acha isso bonito?", perguntou Andrés, levemente irritado.

"Não isso acho bonito nem feio, é só que é de onde eu tiro as minhas forças", Renan sorriu, dando de ombros.

"Você não acha que nos contando isso está nos dando uma pista sobre como sobreviver a você?", perguntei, curiosa pela exposição dele.

"Não me incomoda não. Não tem como vocês não sentirem medo, o poder me deixa sempre parecendo a coisa que as pessoas mais têm medo. Quando você acha que se acostumou com a coisa que você mais tinha medo, eu viro outra coisa que você nem imaginava que tinha medo e têm. Não falha nunca. Vocês nunca vão se acostumar comigo, se é isso que a senhora quer saber. Vocês não tem como saber como eu vou aparecer dentro da noite. Porque nem eu sei e nem eu vejo nem o que as pessoas estão vendo ou ouvindo ou sentindo. E o poder afeta todos os cinco sentidos das pessoas, às vezes alguns, às vezes todos. Depende da pessoa e da noite."

Andrés olhou para mim e eu olhei para Andrés. Renan continuou, "…mas a senhora é diferente das pessoas daqui e dos outros forasteiros. Tem medo, mas quer sentir o medo", ele olhava fixo para mim, "fica hipnotizada por aquilo que é bonito e por aquilo que é feio também, igualzinho. Não importa se é muito feio ou muito bonito, a senhora sempre para pra olhar um tempão", ele tinha agora uma expressão realmente perplexa no olhar, me considerando e fitando longamente enquanto falava, "me lembro o dia em que a senhora acordou depois da noite em que morreu. Me deixou bem puto da vida de tanto que me olhava. Foi o mesmo que aconteceu na madrugada de quarta-feira. A senhora não podia ficar sem olhar. Eu vi bem a sua luta para levantar a cabeça", e ele riu, divertido.

Era verdade. Eu mesma escrevi isso em 1994, em minhas anotações diárias. Eu me referia à mesma figura de pato que eu via hoje em dia ao olhar para o Agente dentro da noite. Renan disse que o medo que a aparição original me inspirou foi o que moldou o corpo do Agente para mim e para outras pessoas na cidade.

"Eu tenho que falar uma linguagem que vocês entendam", ele disse, "e a linguagem que eu quero que todos entendam é a linguagem do medo. Sem medo não existe Polícia, D. Stella."

"Já que tocou no assunto da linguagem, você fala?", perguntei, curiosa com mais esse ponto

Ele riu.

"Que é que nós estamos fazendo desde que vocês chegaram?"

"Não se faz de bobo, Renan, que de bobo você não tem nada. Ela está falando do Agente", cortou andrés.

Renan olhou para o outro e disse, "vocês não estão preparados para a minha voz", e sorriu enigmaticamente, "mas se quiserem demonstração, a gente pode se encontrar de novo na noite."

Nem se precisa dizer que recusamos a proposta. Não depois daquela noite. Eu me sentia bem fraca depois da noite de astronomia no descampado.

Cromo | Promessa das sombras

Rádio Universal: Polícia Obscura

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