quinta-feira, 21 de maio de 2009

Mal nenhum

Acordei de um pesadelo com o ritual no alto da montanha. A figura de "Jacques DeMolay", aberto como um lençol macabro rasgado em multiplas partes ensanguentadas pela impaladora mecânica infernal criada por Anderson; a praga que rogou sobre a Polícia Obscura enquanto ainda lhe restava um pouco daquela vida agonizante e infeliz.

Acordei por conta das batidas na porta lá embaixo. Perdi o costume de olhar pela janela. Depois do Agente Renan e seu cavalo medonho, sabe-se lá o que se pode acabar vendo através da janela. Tudo era escuro ainda; o Sol ainda não tinha se erguido por sobre as belas montanhas de Taurinos. Olhei o relógio; eram cinco horas da manhã. No quarto de hóspedes, Meire estava mergulhada em seus sonhos, se é que estava sonhando.

Acendi a luz do alpendre. Ao tocar na maçaneta, senti uma vibração esquisita, que me pos nos nervos os mais esquisitos arrepios. Não era boa coisa o que eu iria ver ao abrir a porta. Disso eu tinha certeza.

"Quem está aí?", eu me lembrei subitamente que a porta não trancava. Estava apenas encostada. Uma vaga sensação de pânico começou a tomar corpo dentro de mim. A vibração na maçaneta era sombria. Não havia resposta de lá de fora. Decidi abrir. Sabia que a decisão se traduziria logo em amargo arrependimento, mas não sabia o quão logo isso aconteceria.

A visão de espantoso horror que eu tive do Agente me lançou dois metros para trás. Muito mais resoluta, em perfeita alta definição, muito mais horripilante; o infinito horror que evitamos ontem aparecendo como uma maldita visagem na minha frente, não mais fora do alpendre, mas quase dentro de minha casa.

Isto tem de ser um sonho mau. Isto tem de ser um pesadelo. Não era, aparentemente. Abri os olhos lentamente, pronta para fechá-los novamente se a aparição persistisse. O Agente Anderson estava parado em frente à porta, em seu uniforme preto, parado exatamente no mesmo lugar onde a aparição tinha estado até agora. Ele sorriu um sorriso leve e ligeiramente amargo, que logo se apagou, e se aproximou de mim. Comecei a me arrastar para trás, imaginando a quem pedir socorro numa hora extrema como essa.

"Posso ajudar a senhora a se levantar? Não vou lhe fazer mal nenhum", ele disse em voz calma e suave, como se nada tivesse acabado de acontecer.

"Já fez", eu repliquei, "o que você podia fazer de mal, já fez. Eu acredito em você."

Deixei que o menino me ajudasse. Ele tinha sinais de um prazer perverso em me assustar daquele modo ainda estampados no seu rosto belíssimo de adolescente.

"Por que fez isso, Anderson? Por que fez isso comigo?"

"Eu queria que a senhora visse o que não viu ontem no descampado. Eu queria que a senhora visse o que a Polícia Obscura fez comigo. Porque eu não tinha lhe mostrado ainda. A senhora tem idéia do que é o Renan vir falar comigo e me dizer pra eu não chegar perto que eu vou apavorar todos vocês até o fundo da alma? Não, a senhora não tem idéia do que é ser como eu sou agora, D. Stella. A senhora não tem idéia. Obrigado por ajudar o Renan a me transformar num monstro. Pela Eternidade eu vou lhe agradecer, sempre, sempre, sempre. Encarou de frente a fera, D. Stella? Encarou, não foi? Essa fera sou eu. Um menino de quatorze anos. Essa coisa sou eu."

Anderson vivenciava agora o que antes tinha apenas como lenda. Eu entendia o menino. Não podia deixar de entender o horror que ele sentia de si mesmo. Me deprimia saber que ele podia sentir isso tão fundo. Com certeza ele era muito mais sensível que Renan nessa matéria. O diabinho de dez anos se comprazia em ser terrível. Parecia apreciar a lenda em que se tinha se transformado dentro do imaginário popular. Anderson tinha problemas gravíssimos com isso — quem além de Renan não teria? — e nada parecia indicar, no momento, que ele um dia se acostumaria a isso. Como eu nunca me acostumaria àquela visão de aparição que os Agentes da Lei assumiam em Taurinos dentro da noite.

"Eu entendo você, Anderson. Sei que não se importa com isso, mas eu te entendo completamente."

Ele sorriu um sorriso malicioso, irônico, que pretendeu afetar ainda mais malicioso e irônico à minha visão.

"Como a senhora é gentil! Eu concordo com a senhora: não estou nem aí."

"Você nunca esteve. Principalmente quando o Renan tinha de fazer tudo aquilo sozinho, não?"

O menino arregalou os olhos, como se fosse pular no meu pescoço. E pulou. Rolamos no tapete; eu sentia as ondas de ódio dele se propagando por toda a casa. Era dífícil lidar com aquele tourinho enfurecido e tentar não acordar a Meire de seu sono profundo. De certo modo consegui prender a cabeça dele entre as minhas pernas. Tentei uma técnica com ele, que se dizia funcionar bem para colocar polvos para dormir: acariciar Anderson entre os seus olhos. Se funcionava com os polvos, tinha que funcionar com Anderson. O corpo dele parou de tremer e estrebuchar após dois minutos. Anderson agora não era mais que um pequeno polvo adormecido.

Eu coloquei o menino no sofá, tirei as botas dele, quase me feri com as esporas afiadas no processo e o cobri com uma manta grossa. Ajeitei uma almofada por baixo da cabeça dele e fui dormir.

Meire não entendeu nada ao ver Anderson dormindo no sofá. Estávamos fazendo café e eu não queria, mas em breve iria ter que acordar o monstrinho para tomar café com a gente.

"Ele parece um anjinho dormindo. Como é lindo… Que crianças bonitas as daqui!", ela parecia que nunca se satisfazia em contemplar o garoto adormecido no sofá.

"Não é? Acho que eu estava com algum comercial de margarina na cabeça quando tive a tal isquemia."

Nem a lembrança da maldita isquemia tirou nosso bom humor. Meire teve que rir, mesmo de dentro de sua própria confusão, "ah, Stella, só você mesmo…", e acrescentou, "Quem diria que ele fez tudo aquilo que fez. Stella, eu não consigo acreditar que era ele no descampado, vindo a cavalo ontem à noite."

Ouvimos Anderson gemendo baixinho e se espreguiçando no sofá. Esperei que ele aparecesse na cozinha. Ele apareceu, já com as botas de volta nos pés, as esporas retinindo no silêncio da casa. A Meire se encolheu toda e eu disse a ela que não deveria. Que ela estava em minha casa.

"A gente pode conversar como gente civilizada ou vou ter que arrebentar uma cadeira da minha cozinha na sua cabeça?"

Anderson veio caminhando na minha direção e eu peguei uma cadeira.

"Pode arrebentar quantas cadeiras quiser. Não ia me defender nem que a senhora não tivesse esse direito."

Ele estava sem jeito. Parecia envergonhado do que tinha feito. Parou na minha frente e baixou a cabeça, esperando a cadeirada. Para variar, Meire estava confusa. Quando Anderson levantou a cabeça, eu já estava sentada à mesa tomando o primeiro gole de café.

Ele ficou parado na nossa frente. Houve uma pausa gigantesca. Depois, ofereci café ao Anderson. Ele estava com fome. Com muita fome, depois de cavalgar a noite inteira. Meire não sabia como ou não fazia questão de quebrar o silêncio. Se o fizesse, seria para saciar sua incansável curiosidade. Deixei o menino comer à vontade. Ver se a mente começa a funcionar um pouco melhor.

"Ainda não engoli o que a senhora me disse de madrugada sobre eu não me importar com o Renan", a raiva dele vinha em ondas; baixamar, preamar.

"Então engole junto com o pão. E depois, me diz onde é que eu estou errada. Até dizer que tem ódio do Renan você diz. Você não tem ódio de ninguém; você só está confuso. Com muita raiva de si mesmo. Que é que tinha de emprestar as armas para o Renan, então? Não queria defender a cidade? Agora está defendendo. A Polícia Obscura pegou vocês dois. Ela não é você nem o Renan, vocês são só duas corporificações dela. Emprestam sua energia excedente para a Polícia Obscura. Quando estão de serviço, são dois anticorpos agindo de forma automática para livrar a cidade de forasteiros, invasores, alienígenas ou o que quer que vocês chamem os desinfelizes que aparecem do nada na cidade. A Polícia é mais uma força agindo nesta cidade, como o que vocês chamaram de Grande Um durante a Lei dos Touros. Vocês são só instrumentos dela. Fora isso, são apenas dois meninos saudáveis e normais da cidade de Taurinos. Aceite isso já que não pode mais mudar."

Ele ficou em silêncio. Meire permaneceu em seu silêncio. Não se atrevia a se envolver numa discussão cujos fundamentos mais profundos desconhecia. Eu fiquei em silêncio. E foi o ferreiro quem rompeu a calmaria, afinal.

"A senhora não sabe o que é sofrimento…"

"Não sei? Tem certeza? Você não sabe o que é receber uma amiga em casa que esteve no seu enterro e ela lhe dizer que não sobrou muito do seu cérebro depois de um derrame. Você não sabe o que é se ver numa cama de hospital, ligada a uma montanha de tubos e máquinas mantendo viva a tua carcaça. Você não sabe o que é ter que decidir, sem saber onde eu me situava se iria viver ou morrer pra que essa cidade vivesse pra sempre. Agora eu soube pela Meire que eu tomei a única decisão que podia me restar. Fui enganada. Tive tudo escondido de mim pela cidade. Adriano foi quem viu. Fiquei de marido traído, sem saber até o final. Não fosse "sêo" Danilo reunir a cidade, seria você que iria sair de sua loja de ferragens e me dizer a verdade? Graças à minha morte, você nunca vai saber como é tudo isso. Não venha me dizer o que é sofrimento, seu moleque. Você um dia vai se acostumar a essa merda que está fazendo em sociedade com o Renan. Fora isso, como ele, você vai viver jovem e pleno de energia para sempre. Ninguém disse que o Inferno era um bom lugar, Anderson. Mesmo dentro do Paraíso."

Mais tarde, quando Anderson já tinha ido para a loja de ferragens, Meire tocou no assunto do inferno dentro do paraíso. Percebi que tinha de ir devagar com minha amiga. Ela se assustava facilmente, desde quando a conheci. Expliquei que havia uma teoria do escritor inglês Aldous Huxley, em seu livro "Céu E Inferno" em que ele postulava que criávamos nosso próprio paraíso ou inferno ao morrer, segundo o astral que alimentávamos no momento. Eu criei os dois, simultaneamente, um inserido dentro do outro. Um existindo dentro do outro, interpenetrados, interagindo, interdependentes. Para ser um inferno, era necessário que Taurinos fosse um paraíso. E para ser um paraíso, era necessário que Taurinos fosse um inferno.

"Que loucura! Acho que vou parar de lhe perguntar as coisas, Stella. Quanto mais você explica, mais confusa eu fico."

Guilherme ligou da fazenda Teixeira mais tarde. Estávamos eu e Meire já na fazenda Taurinos, almoçando com os Conselheiros, quando ele ligou. Disse que tinha ligado em casa, mas que não tinha me encontrado. O lugar lógico, para ele na sequência, seria a fazenda Taurinos.

"Amanhã é aniversário do Renan", ele disse, "ele pediu que eu ligasse pra convidar todo mundo aí."

"Por que ele mesmo não ligou?", perguntei, intrigada.

Renan ligaria mais tarde sim, mas só para perguntar do Anderson. Depois de saber que o ferreiro tinha ido trabalhar como em todos os dias da semana, aparentemente por desencargo de consciência, perguntou se Guilherme tinha ligado para nos convidar. Perguntei porque ele mesmo não tinha ligado. Respondeu que estava ocupado procurando o Anderson. Que de manhã não o tinha encontrado na loja de ferragens para convidá-lo. Desligou dizendo que ainda tinha de telefonar para a loja.

Voltei à mesa, "Renan só ligou mesmo para perguntar do Anderson. O ferreiro é mesmo importante para ele."

"A senhora não sabe como", riu Andrés.

"O que é que você quer dizer com isso?"

Ele notou a minha expressão interrogativa. Não houve um chute por debaixo da mesa, mas notei o pai fulminando o filho com o olhar, a mãe embaraçada, o irmão mais velho perplexo sem saber o que dizer. Andrés notou a agitação em redor, se encolheu no lugar e se saiu com um "nada, eles só são muito amigos, só isso."

Meire olhou para mim significativamente. Desta vez, ela não parecia confusa.

Mintaka, Alnitak e Alnilam | Infeliz aniversário

Rádio Universal: Polícia Obscura

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