segunda-feira, 4 de maio de 2009

Meia-vida

Comecei o dia respondendo a perguntas de pai e filho que me chamavam de louca varrida a cada três ou quatro frases que diziam. Andrés "lembrou" que eu tinha tido o encontro com a Polícia em casa e o que não me perguntou ontem, me perguntou hoje com juros e correção monetária. Duílio não tinha idéia sobre o que eu e o filho dele conversávamos, até que Andrés se dispôs a colocar o pai à parte dos eventos do dia anterior a ontem.

"Mas o que é isso, D. Stella, a senhora perdeu o juízo?"

Nada que eu tenha reportado antes, mas naquela noite e até o momento tenho sonhado com a Polícia Obscura. Sonhar foi o termo em que pensei para me referir à atividade cerebral. Não se tem sonhos com a Polícia Obscura. Se tem pesadelos.

"A senhora não pode estar falando sério que combinou com o Renan de ver e se encontrar com uma coisa que o povo daqui não quer passar nem perto, quanto mais na sua casa naquela hora da noite, D. Stella!!!", ele continuava a me fitar, incrédulo, olhos arregalados de horror e espanto.

Eu disse ao chefe dos Conselheiros que o que nós discutíamos já era passado. Eu me escudava de discutir minha curiosidade mórbida, mas sabia que através dela tinha chegado a uma descoberta interessante, embora parecesse óbvia: pedaços da minha vida, personalidade e pensamentos estavam sobre toda Taurinos, sendo ela uma criação minha. Nunca sabemos as coisas de verdade, até que elas se interiorizem em nós como sentimento. Daí o "formato de pato" do agente, daí tudo mais. Reconheceria migalhas de mim em toda a cidade se me dispusesse a prestar atenção em volta. Eu contei a eles que já tinha visto aquela criatura antes.

"Onkitava?", Andrés interrogou rápido, se antecipando ao pai.

Contei brevemente a eles um caso de 1994 em que a entidade tinha aparecido para mim. Não era nada muito relevante, a não ser pelo fato de que me reafirmava Taurinos como a grande colcha de retalhos de minha vida. Andrés e Duílio pareciam estranhamente atônitos para tudo o que sabiam.

Andrés passou a me contar que a figura do pato ou o que quer que se visse iria se tornar cada vez mais resoluta. Perguntei o que isso queria dizer e ele me explicou que a Polícia acumulava cada vez mais energia e poder. E a imagem ficaria mais e mais nítida até que não fosse mais possível suportar tanta nitidez. A nitidez iria acabar destruindo as vistas de quem se propusesse a olhar. O que achei bastante interessante dentro do que ele me tentava me explicar, em outras palavras, era que ele falava como alguém que explicasse a evolução da televisão e do vídeo a alguém mais.

Renan estava sentado no sol como de costume, quando cheguei à fazenda Teixeira no começo da tarde. Ele arregalou um olhão e abriu um sorriso largo ao me ver.

"Essa é uma mulher de coragem", ele dizia de modo familiar, "viu o que as pessoas não querem nem imaginar, quanto mais ver."

"Eu não sei mais quem você é. Ou o que você é."

"Sou a pessoa com quem a senhora está conversando agora.", ele tinha uma voz gentil, mas fria e firme.

Renan pareceu ansioso quando me perguntou sobre sua aparência. Como eu o tinha visto no alpendre, mais especificamente. Eu disse a ele o que vi e ele entrou em assunto que confirmava as palavras de Andrés.

"É, mas quanto mais energia eu tiver, menos tempo a senhora pode ficar olhando para mim. Porque aí a pessoa fica gasta muito rápido."

Insisti em que ele me dissesse o que isso queria dizer, mas ele não pareceu ter palavras para explicar. Mentalmente eu me explicava que o que ele mencionava poderia ser uma sequela psicológica vinda do avistamento dele dentro da noite, o que eu juntava à explicação de Andrés sobre algo gastando ou destruindo as vistas de alguém. Eu disse a Renan que vinha tendo pesadelos com ele toda a noite e o diabinho mostrou os dentes em um sorrisinho cruel que ficou estranho e engraçado naquela carinha de bebê fofinho. A resolução e a beleza extrema da imagem dele eram magnéticas e tornavam o contraste com aquilo que vi no alpendre de minha casa ainda mais estarrecedor. Em seu aspecto normal, ele todo era como um ursinho com que você quer dormir abraçado. Um ursinho fofinho e letal.

"Que é que a senhora tanto me olha? É aquele negócio de novo?" Ele se referia ao primeiro dia em que o vi, quando tudo adquiriu uma resolução absurda a qual até hoje estou tentando me acostumar, depois de minha morte física.

Eu disse que ele era bonito. E como os outros meninos, era uma overdose de beleza. Eu disse que eles não eram crianças, eram efeitos visuais ambulantes. Personagens saídos de um comercial de margarina. Ele quase urinou dentro dos shorts de tanto rir ao ouvir isso. Mas se comportou como se se dizer que ele era bonito fosse algo raro dele ouvir. Me perguntei, num silêncio tristonho, quantas pessoas já disseram isso a ele. Se um dia alguém já disse isso a ele, fossem amigos ou familiares. Um carinho verbal que fosse, às vezes ajudaria em muito uma pessoa numa crise de identidade violenta e autoestima baixíssima como era o caso de Renan.

Ele terminou ficando vermelho com o elogio e mudou de assunto. Perguntou se eu tinha consciência de que assim como eu o via infinitamente bonito naquele momento eu poderia vê-lo infinitamente feio assim que sua imagem terminasse de se consolidar e atingisse a nitidez da qual Andrés já tinha me falado.

"A senhora entende o que eu quero dizer? Se já é difícil me aguentar bonito, imagine se me vê feio daquele jeito, tão claro como a senhora está me vendo agora."

"Anderson está tendo pesadelos também", eu disse mudando bruscamente de assunto, "ontem mesmo ele esteve lá em casa…"

Parei de falar, observando o semblante de Renan. O sorriso do menino ficou ainda mais diabólico. Ele exultava com as novas. Começava eu a ter certeza de que a pergunta não respondida por Anderson tinha explicação ali.

"Por que o sorriso agora? Anderson está nos teus planos também?"

"Já vi que a senhora andou conversando com o Andrés e que ele andou lhe contando tudo. É, é isso mes. Anderson 'tá até o pescoço nos meus planos. Esses pesadelos dele são coisa de quem faz o que tem que fazer pela metade. Ajudou mas no fim não ajudou. Eu disse, parece até que eu sabia, disse que ele devia vir comigo, me ajudar a dar conta daqueles fidaputa. Ele só emprestou as armas. Os pesadelos dele só vão piorar. É questão de tempo pra eu trazer ele para a Polícia junto comigo. Não importa o que ele tente, pode espernear, no fim vai dar tudo no mes pra ele."

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Rádio Universal: Polícia Obscura

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