domingo, 3 de maio de 2009

Automático

Anderson apareceu para me ver com sua roupa de domingo em pleno domingo. O domingo é um cachorro escondido embaixo da cama, disse um dia o poeta gaúcho Mário Quintana. O garoto tinha uma cara abatida que a gente geralmente não vê num domingo. Tive de dizer a ele que sua aparência já viu melhores dias.

"É, dá pra notar, né?", ele parecia desconsolado.

"Você veio por causa disso, não? Faz tempo que não nos vemos, acho que nem conheceu minha casa nova por dentro…"

Ele disse maquinalmente que a casa era bonita, um meio-sorriso para dar a impressão de que realmente se importava, a quase que cultural recusa formal em fazer-me uma desfeita. Não adiantava. Nós sabíamos que ele não tinha vindo visitar a casa ou a mim simplesmente pela visita.

"Então… O que se passa?"

Ele me explicou que vinha sonhando com a Polícia Obscura ultimamente. Que era como se ele estivesse sendo puxado para dentro da força da Polícia. Me contou que os sonhos começaram no início de abril. Me lembro dos sonhos que tivemos eu, ele e Andrés naqueles dias. Ele me disse que além daqueles sonhos em que víamos Renan mais como uma sombra, ele sozinho começou a sonhar com a Polícia Obscura (que eu nem conhecia com esse nome no início de abril). Eu contei a ele tudo o que tinha se passado esses dias e ele disse que sabia sobre Adriano, mas ficou surpreso ao me ver incluída na noite de terror.

"Renan às vezes parece que perde todo o controle", ele declarou, "não sei como ele consegue ser tão vingativo…"

Declarei meio à queima-roupa que ele tinha alguma ligação com a Polícia Obscura ou pelo menos era o que parecia pelo que ele estava me contando e ele empalideceu. Foi nítida a fuga da cor de seu rosto, como um paciente recebendo um diagnóstico fatal.

"Você tem algo a ver com esse negócio de Polícia Obscura, Anderson?", insisti.

Ele nunca me respondeu.

Andrés me disse, logo na entrada do alpendre da Taurinos, que tinha "ouvido" a minha conversa com Anderson. Também não lhe causou estranheza a própria visita do amigo em minha casa.

"Parece que o processo dele começou", ele disse tão simples quanto enigmaticamente.

Pedi que ele explicasse o que queria dizer com isso. Não parecia disposto. Disse que eu poderia ter perguntado a Anderson mesmo e que tinha perdido a oportunidade, já que ele tinha estado em minha casa. Contraargumentei dizendo a Andrés que ele mesmo tinha trazido o assunto quando eu cheguei e que ele não devia ficar se fazendo de difícil.

"Anderson tem sim uma relação com a Polícia.", ele acabou admitindo.

"E qual é essa relação?"

"Ele criou o nome que hoje em dia todo mundo na cidade usa, pra desespero do Renan."

"Meu Deus! E Renan sabe disso?"

"Sabe. Mas ele desculpa o Anderson."

Fiquei estupefata, recordando tudo o que vivemos naquela noite.

"Porque ele o desculpa? Nos fez passar por tudo aquilo. E o outro menino, o tal Célio da Dica que ele mandou para o mesmo hospital que o Adriano."

Andrés pediu que eu pegasse uma cadeira e sentasse no alpendre com ele. Fiquei esperando o que viria. Ele me disse que tudo vinha da noite em que eu "vi" as ferramentas sob um telheiro, em meados de fevereiro. As armas usadas para matar os cinco forasteiros tinham sido fornecidas por Anderson. Não matou os forasteiros ele mesmo, mas participou ativamente dando a Renan as ferramentas para isso. Eu ouvia a tudo atônita. Nunca achei que Anderson faria algo assim. Sabia que ele aprovava a política, mas aquele era mesmo um passo gigantesco.

"O mesmo poder que Renan controla vai controlar Renan também, todo o tempo, por isso ele parece tão automático. Renan se expôs ao poder matando aqueles forasteiros e o poder dominou o seu amiguinho. E Renan foi aprendendo a dominar o poder também. Controla e é controlado. Anderson controla o poder também, mas como não matou ninguém ele mesmo, Anderson não é controlado pela Polícia Obscura. Não ainda. Renan o desculpa porque ele quer ser gentil com o amigo. E porque quer ver o amigo dele na Polícia também, ele não quer briga com o Anderson. Pelo menos enquanto durar o estoque de paciência dele. E, acredite, o Renan tem muito pouco em reserva."

Andrés fez uma longa pausa, como se estudasse o que queria me dizer. Ficou me fitando com um olhar de quem tem dúvidas sobre continuar a falar ou não. E finalmente disse, "olha, tive muita raiva do Renan e ainda tenho, mas acho que tenho mais pena dele do que qualquer outra coisa. Se tem alguém que está encrencado em Taurinos esse alguém é ele. Ser criado para isso que ele tem que fazer é ruim pra raio. A senhora não faz idéia. Assim como o Bruno teve aquele dia de desespero quando a senhora voltou para a cidade, esse é o desespero do Renan. O vazio daquele Infinito que ele traz brilhando na testa. Saber que ele não tem pra onde fugir."

Eu disse a ele que conhecendo o Plano Mestre como somente ele poderia, aquilo só aumentava sua responsabilidade para com os outros meninos. Disse a ele que o processo não estava sendo fácil para ninguém, ao que eu sabia. Mas que Andrés poderia ser um guia, uma luz nessa escuridão. Ele não disse mais nada.

Exu a caminho do trabalho | Meia-vida

Rádio Universal: Polícia Obscura

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