sábado, 2 de maio de 2009

Exu a caminho do trabalho

Sol de mormaço sobre a fazenda Teixeira. Fui encontrar Renan sentado sob o sol como eu já o vira tantas vezes. Ele apreciava ficar sob o sol mais do que eu já vi alguém gostar. Mesmo sendo a luz do sol necessária para se ter saúde, era mais tempo passado ao sol do que gente da idade dele geralmente fica. Era como uma terapia para ele. Um dia desses eu perguntaria o porque do ritual do sol.

Era difícil, já que toquei no assunto do sol, que um homem na rua por aqui fosse dizer "pelo amor de Deus", por exemplo. "Pelo amor de Mitra" seria muito mais corriqueiro em Taurinos. Eu achava que se dizia indistintamente "Deus" ou "Mitra", mas falhei em minha suposição.

"A senhora vai vir aqui todo dia?", ele perguntou, tentando aparentar o máximo de tédio que conseguiu simular.

"Você não quer que eu venha?"

Ele deu de ombros, enquanto me encarava com o sorriso esquisito daqueles que olham contra o sol.

"Isso a senhora é que sabe. Se quiser vir, venha."

Ele deixou a conversa cair e ficou olhando o céu de azul berrante de um lado e nuvens finas de outro, que interrompiam a passagem da luz solar, filtrando-a para a terra em mormaço quente, estranhamente quente para início de maio.

Sentei ao lado dele. Ele ficou me olhando desconfiado. Não era sempre, mas bem que ele volta e meia cismava de me olhar desconfiado assim. Parece até que achava que eu estava planejando um golpe de estado, uma trama macabra, sei lá o que mais. Crianças têm a imaginação tão fértil. Some-se a isso a paranóia típica de sua função dentro da comunidade e voilá! Um saco de problemas. E que saco pesado já em tão tenra idade.

"O que é que a senhora quer?"

"Vim conversar sobre o seu trabalho."

Ele respirou fundo e ficou um tempão soltando o ar dos pulmões, como se estivesse cansado. Perguntou o que é que eu queria saber.

"Os cavalos pretos da cidade…"

"São todos meus."

"Mas vi você num palomino…"

"Qualquer um tem cavalo de qualquer cor na cidade, D. Stella. Mas preto não, os cavalos pretos são passados para mim. Lógico que eu não tiro o cavalo da pessoa. Ela vende pro meu pai. Mas aí a pessoa tem que vender."

"Teu pai compra todos os cavalos pretos nascidos na cidade?"

"Compra. Mas também é raro nascer um cavalo totalmente preto por aqui. Não é tão fácil como a senhora pensa", ele se acomodou e ficou me olhando fixo, "agora vai perguntar de quando eu saio a cavalo à noite pra trabalhar, não?"

Foi minha vez de dar de ombros.

"Se quiser falar sobre isso…"

"Com a senhora não tenho problema em falar não… A senhora quer saber do trabalho ou das pessoas que me encontram na estrada à noite?", eu disse que queria saber de tudo, e ele respondeu, "o povo diz que eu sou um cachorro preto enorme ou um cavalo preto, ou um pato preto enorme quando eles me vêm na estrada à noite trabalhando. Aí eles têm que sair da estrada bem rápido pra não estar ali quando eu passar. Eu não vejo, nem nunca vi ninguém na estrada à noite, nem esses todos da cidade que dizem que já me viram. "Sêo" Danilo, por exemplo, diz que não sai da estrada quando me vê de longe, ele só senta onde os curiangos costumam sentar e fecha os olhos; só abre quando o galope vai longe. É o jeito dele de fazer."

Eu estava fascinada. Informação vinda direto da fonte. O menino parecia sem jeito, sem-graça de me revelar os detalhes, mesmo depois de dizer que não se importaria de falar comigo.

"Eu vi um cavalo preto pela janela que eu só podia ver através dela."

"Era eu cercando a sua casa. O cavalo estava ali no meu lugar. Onde a senhora viu o cavalo, ele olhava fixo para a senhora e era eu todo o tempo, mas é como se fosse uma parte de mim. A parte que as pessoas não gostam de conhecer. A outra parte, que todo mundo conhece e que a senhora está vendo agora, fica em casa dormindo", e depois de uma pausa ele acrescentou, "me admiro a senhora ficar me fazendo essas perguntas. Ninguém nunca me perguntou essas coisas, acho que só a senhora mesmo. Não sei que graça têm essas histórias, mas se a senhora quer saber…"

Renan me olhava entre curioso e entretido. Como se realmente estivesse admirado de minha curiosidade sobre o que a população da cidade tinha tanto medo e horror. Eu tinha de algum modo rompido com a cena de tédio que ele pretendia fazer acontecer. A conversa me lembrava de um quadro que vi, pintado por Maria Helena Chartuni, cujo nome singelo era Exu A Caminho Do Trabalho. Renan não era nem longe o que nos cultos afro-brasileiros se conhece como Exu, mas, guardando os limites da cidade como Exu faria, era uma entidade bem similar. A figura, o arquétipo do porteiro é algo universal. Em todas as culturas, deve haver um guardião das entradas e limites. Uma sentinela. No reino animal, grupos de animais mantém sentinelas para avisar a chegada do perigo. Guardam os limites que deve haver entre os predadores e eles. Você apenas desloca a concepção do que é limite, abstraindo um pouco.

"Aquele cavalo era dos Conselheiros?"

"Era, meu pai comprou do "sêo" Duílio. O pai do pulha e do grandão bobão."

Me lembrava dele ter chamado Adriano assim durante meu sonho macabro de tortura e horror. Aqui verificava onde as informações que me foram dadas por Andrés batiam com as de Renan. Havia coisas que batiam, outras ficavam nebulosas, à espera de verificação posterior.

"Agora já não sei se você é um menino, um pato, um cão ou um cavalo", brinquei.

Ele riu, divertido, "continuo a ser um menino, graças a Mitra."

"Teus pais já te viram trabalhando?"

"Creio em Deus padre! E a senhora, quer ver?"

Eu disse a ele que já tinha visto tanta coisa estranha nessa vida e na outra. Que talvez ele não fosse tão feio assim quando estava trabalhando. Ele tomou isso como uma resposta positiva. Se ergueu do chão e ficou olhando para mim sem acreditar. Ele parecia imbuído de um espírito estranho quando disse, "a senhora é a pessoa mais corajosa que já vi aparecer por aqui; nunca ninguém quis nem passar perto quanto mais querer me ver trabalhando!" e assobiava sem parar, de admiração.

E, depois, num rompante ele era todo, "a senhora quer mesmo me ver? Eu passo na sua casa no caminho do trabalho. Vou bater na sua porta cinco vezes e assim a senhora vai saber que sou eu. A senhora abre a porta e olha no alpendre. Não precisa olhar pela janela, é só abrir a porta e olhar no alpendre. Eu vou estar lá, do lado do meu cavalo. Não vai dar pra senhora ver muita coisa porque eu vou embora logo em seguida, mas eu passo lá."

Eu concordei porque achei que ele estava brincando. Com tudo o que diziam sobre a Polícia, achei mesmo que ele estava me despistando. Iria me fazer esperar como naquela noite de terror quando ocupou toda a família Conselheiro, eu e o prudente sábio da região "sêo" Danilo que nem tinha nada a ver com toda aquela maluquice.

Meia-noite. Estava em casa, de volta da fazenda Taurinos onde fiz a janta para os marmanjões Conselheiros. Andrés me olhou estranho ao sair, denunciando claramente que já sabia que e o que eu tinha conversado com a Polícia, e veio atrás de mim.

"A senhora vai mesmo pra casa encontrar a Polícia?"

"Ah, eu acredito que ele vai estar muito ocupado para passar por lá."

Andrés riu, nervoso, mas riu.

"A senhora ou é muito inocente ou joga verde pra colher maduro. Muito ocupado que nada! Pra que quer ver ele de uniforme? Pra que essa experiência besta no meio da noite?"

Eu fui. Estava em casa devia ser uma hora desde que disse boa-noite ao Andrés. Sentada na sala, assistindo TV e já pensando em ir dormir. Como eu disse ao Andrés. Exatamente o que pensei. O pestinha do Renan me iludiu dizendo que passaria aqui para me deixar em suspense. Como no outro malfadado dia. Quando desliguei a TV, ouvi ao longe um rumor. Um cavalo vinha vindo pela estrada e pela direção do som, parecia vir do lado da cidade. "Sêo" Danilo. Ele viria as luzes acesas e iria parar. O cavalo estava cada vez mais próximo. Um galope. Quanto mais alto, mais a velocidade do animal lá fora se reduzia até que em passo pequeno começou a se aproximar do alpendre. Fui até a porta preparada para receber "sêo" Danilo, mas antes que eu encostasse a mão na maçaneta, batidas fortes da aldrava lá fora somaram cinco quando me dispus a contar. Silêncio mortal. Nem a TV ligada, para espantar esse silêncio frio e letal. Um arrepio me correu pela espinha. Não devia mesmo ser "sêo" Danilo.

Mais cinco batidas, mais fortes que as anteriores. Tenho de abrir. Sei lá o que pode acontecer se eu não abrir. Achei que teria de ser o que Mitra quisesse. Abri a porta e fui olhando devagar. Vi o cavalo preto, amarrado à coluna, me olhando. E rápido, muito rápido para o meu olho acompanhar, vi piscar incontrolavelmente ao lado do cavalo a forma preta e sinistra de um… pato! Era um pato horrendo, imenso, sem olhos, com um bico metálico de uma cor enjoativa, a cor mais desfavorável que já vi em minha vida. Mesmo sem olhos, custava a crer o tanto de aflição que dava o simples fato dele estar virado de frente para você. Em sua testa, brilhava orgulhoso um oito deitado. O símbolo do Infinito. Eu já tinha visto aquele ser antes, em 1994, ano dos mais agitados da minha vida. A imagem poderia ter ficado como um imprint grosseiro e retornado agora dando essa aparência ao agente da lei. Ele montou em seu cavalo e, mesmo com ele amarrado à minha coluna, partiu, cumprindo sua promessa, me deixando apavorada e me fazendo fechar a porta de casa numa velocidade que não tinha registro anterior em minha história pessoal.

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Rádio Universal: Polícia Obscura

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