terça-feira, 21 de abril de 2009

Tiradentes

Acordei para o dia com uma salva de rojões lá fora. Antes que eu perguntasse o que acontecia, movi o mouse do laptop que tinha esquecido ligado aqui desde ontem antes da reunião no Mithraeum. Olhei a data instintivamente e não demorou para que recordasse o motivo dos fogos: hoje é dia de Tiradentes. Tinha de me lembrar de que estava em Minas Gerais. Não tive tempo de sorrir; com tudo o que tem sido os últimos dias, toda a torrente de acontecimentos que vieram de um só golpe, não tenho mais nada na cabeça a não ser toda a loucura de viver em Taurinos.

Batidas na porta. Eu disse que entrassem. Andrés entrou, ressabiado, o ar típico de quem não sabe como será recebido. Ele ficou espantado em ver que nada do que descobri tinha mudado o modo como eu o via. Ele ficou me olhando um tempão, provavelmente sem saber o que me dizer.

"A senhora nunca vai me perdoar, né?"

"Eu perdoaria você… Se houvesse alguma coisa a ser perdoada eu perdoaria você, sim."

Ele mostrou incontáveis expressões faciais ao ouvir isso. Como o que me aconteceu ontem no Mithraeum, ele estava preparado para fazer a pergunta, mas não para ouvir a resposta.

"Eu estaria mentindo se dissesse que estou feliz com o que você fez", me apressei em acrescentar, "mas acho que eu teria feito o mesmo, se estivesse em seu lugar. Não sei nem mesmo se deveria lhe dizer isso. Nunca confiei em você, desde o início, mas jamais confiei em nenhum de meus pacientes de qualquer maneira."

"Quer dizer que não está zangada comigo?"

"Não, não estou. Mas isso não quer dizer que eu vá necessariamente ficar para sempre em Taurinos. Temos mais coisas para conversar hoje no Mithraeum, antes que eu vá para Santos. Não sei se tenho elementos suficientes para tomar uma decisão tão importante."

Ele parecia um balão esvaziando. Por uns instantes, tive pena dele. Passei tanto tempo sentindo pena de tantos aspectos em meus pacientes que chegava a me esquecer de mim mesma no torvelinho. Mas a decisão seria final. Não haveria como voltar atrás. Como eu poderia ser menos cuidadosa quando tinha que tomar uma decisão dessas?

"Outra reunião no Mithraeum hoje? Mas é feriado nacional hoje, Dia de Tiradentes, lembra?", Andrés mal conseguia disfarçar sua má-vontade em participar do encontro. Achei a argumentação dele absurda e decidi responder àquilo com outro absurdo.

"Tiradentes, ao contrário de seus amigos revolucionários mais ricos, não era maçom, sabia? Não pertencendo a uma sociedade secreta como a Maçonaria, não há motivo para nós deixarmos de fazer a reunião por homenagem a ele."

Ele franziu a testa e me olhou comprido.

"Não entendo que sentido isso faz."

"Bom, faz tanto sentido quanto dizer que nós vamos deixar de discutir hoje o meu futuro e o de Taurinos porque hoje é um maldito feriado nacional.", eu concluí, fazendo Andrés mudar de assunto bem rápido.

"O que aconteceu com a senhora no Mithraeum ontem?"

"Não foi você quem disse que podia ver o presente e as coisas que se passaram também? Eu tinha entendido que não era possível esconder eventos presentes de você."

Vi que ele se sentiu desafiado. Descreveu o que eu tinha visto e me intrigou dizendo que tinha visto coisas ontem como as que viu no dia da cerimônia e que além dele, somente seu irmão e Renan podiam ver o que os demais não podiam. Perguntei se eram as cenas da minha lida com o touro. Ele disse que isso todos puderam ver e mencionou coisas espantosas que viu com Adriano e Renan em mim ontem e no dia da cerimônia. Pedi que ele descrevesse essas coisas. Ele disse, em tom sincero que ele não conseguia descrever o que tinha visto porque era jovem demais e não tinha vocabulário para isso. Disse que talvez nem todo o vocabulário existente fosse suficiente para descrever o que viram. Fiquei atônita com o que ele disse, mas aparentemente não havia como cobrar mais explicações. O que teriam os tres visto de tão extraordinário?

Renan era só alegria quando contei que o que tinha acontecido ontem foi a recordação de toda aquela nojeira que eu fiz na arena na noite da cerimônia. Ele disse que viu que eu estava recordando tudo. Bruno disse que sabia o que estava acontecendo, Anderson, Guilherme e "sêo" Danilo também. Duílio, que não tinha estado na cerimônia, só conseguia tentar entender o que se tratava na conversa.

"Vocês sabiam", atalhou Renan, "mas eu "vi" que ela estava se lembrando. "Vi" as coisas que eu "vi" naquela noite, tudo de novo."

Olhei para Andrés no alto da arquibancada e ele simplesmente me respondeu afirmativamente com a cabeça.

"Eu "vi" também", ajuntou Adriano.

"Todos nós vimos o que aconteceu na cerimônia, Renan", esclareceu Bruno alternando um olhar curioso entre Renan e Adriano, "a lida e tudo o que ela…"

"Eu não estou falando da lida, cara", cortou Renan, "mas o que eu "vi" na D. Stella durante a lida."

Me apressei em perguntar a ele. Ver se ele conseguiria por aquilo em palavras melhor que Andrés.

"O que foi que "viu"? Hoje de manhã, Andrés me falou que…"

"Era a presença de um amigo. Eu nunca senti um negócio assim."

Andrés e o irmão mais velho se ergueram da arquibancada, olhos do tamanho de xícaras de chá.

"Era isso que eu estava tentando lhe explicar hoje de manhã.", falou Andrés assombrado.

"Era isso o que você disse não existir um vocabulário para explicar? A presença de um amigo?"

"Do modo como eu senti, não havia mesmo nada pra explicar" ele se defendeu, meio entre o aborrecido e o constrangido.

"Foi uma coisa bem assim que eu "vi" também", acrescentou Adriano.

"Eu também não consegui pensar em nada naquela hora. Depois, pensando bem eu vi que eu estava sentindo a presença de um amigo. Era a única coisa que eu conseguia entender.", ajudou Renan. Ele olhou constrangido na direção de Andrés, como se compartilhar algo com ele — ainda que um sentimento ou uma visão — fosse uma coisa suja.

Duílio olhava para"sêo" Danilo em busca de uma orientação. "Sêo" Danilo apenas sinalizou que ele esperasse e ouvisse. Anderson, Bruno e Guilherme não pareciam ter perdido o fio da meada, mas também pareciam confusos com coisas aqui e ali. Quem não ficaria?

"Renan", eu disse de repente, "quero que faça o mesmo juramento que Andrés fez ontem"

Andrés teve um acesso de riso que me lembrou das melhores interrupções do próprio Renan. Este olhou para cima com raiva e depois me encarou, "por que é que eu tenho de jurar a mesma coisa que esse pulha aí em cima? É ele quem está sendo julgado aqui, não eu!"

"Nem você nem Andrés estão sendo julgados, Renan."

"Como não? Ele escondeu tudo, sabia de tudo o tempo todo… Aposto que até sabia que o Arthur ia morrer!"

Andrés se ergueu indignado.

"É mentira! Mentira! Que coisa infame de se dizer, seu merdinha! Eu não podia ver pra frente, Arthur podia. Sonho, o caralho, mas ele podia ver pra frente e eu não podia!"

Andrés descompensava. Disse a eles que se acalmassem. Disse a eles que eles eram todos exatamente do jeito que eu tinha sonhado. Renan ficou tremendo ao ouvir eu repetir suas próprias palavras.

"E a senhora ainda defende ele, D. Stella!", a criança tremia de raiva, ofegante, descontrolada.

"Defendo sim. Porque eu sou a única pessoa nesta cidade com opções. Vocês não tem alternativa a não ser seguir a desgraça do Plano Mestre. A tua raiva, a tua birra com o Andrés está na merda do Plano Mestre. Ele não pode modificar nada, porque ele não criou nada. Eu não posso alterar nada, porque não sei como eu o criei. Quanto mais cedo vocês entenderem isso, mas fácil será para chegarmos a algum lugar."

Renan se sentou devagar, em silêncio; uma lágrima brilhando nos olhos de raiva que agora não tirava de mim. Uma pequena bomba-relógio sempre prestes a detonar.

"Quanto mais se tem conhecimento, mais aumentam o prazer e a dor. O prazer por saber mais e a dor pelo mesmo motivo. Estou defendendo Andrés porque saber que se tem que fazer uma coisa porque ela simplesmente está no Plano Mestre e saber que não pode se desviar dele um milímetro é cruel. Nós não podemos condenar Andrés nem à morte e muito menos ao inferno, porque ele já está vivendo dentro dele."

Duílio levantou-se apavorado. Provavelmente tinha sido este um duro golpe para sua formação mitraísta-cristã.

"Que é isso, D. Stella? Meu filho…"

"Seu filho está no inferno, Duílio. Aceite isso e o ajude, ajude muito, porque ele precisa imensamente de você. Ele está no inferno desde a fundação da cidade e jamais vai sair desse inferno. Peça a ele e ele será seu guia por dentro desse labirinto complicado que é o próprio inferno dele. Cada passo que se dá em Taurinos é o inferno dele que percorremos. Cada palavra que se diz em Taurinos é dita dentro desse mesmo inferno. É esse inferno amargo que ele carrega dentro dele mesmo, a própria cidade e o peso dos milênios da fundação, é esse inferno que ele quer preservar congelado por toda a eternidade com todos nós dentro. Retorna desde o início da humanidade a este mesmo inferno, sempre, sempre, sempre. E quer saber o que mais me dói? Ele nunca fez nada, nada que eu mesma não faria!"

Silêncio que se seguiu, soturno e pesado como nenhum outro tinha sido. Duílio tinha o rosto encharcado. Se eu pretendia auferir a atenção de corações e mentes dentro dessa catacumba, o silêncio e depois os soluços me mostraram que eu estava no caminho certo para o sucesso.

"Sêo" Danilo era um dos poucos mais contidos. Mas nem mesmo o velho e contemplativo sertanejo conseguia conter as emoções nesse momento, apenas as manifestava discretamente. Andrés me olhava paralisado e era um olhar gelado, opaco, onde o brilho vinha somente de suas próprias lágrimas. Acho que esse olhar, desse momento no tempo em particular irá me perseguir por toda a vida, seja qual for a decisão que eu tomar. Duílio o trouxe para baixo e ele se agarrou ao pai, diante dos olhares desconcertados de todos.

"Ignorância é felicidade", eu continuei, aproveitando o momento para tentar colocar algum senso naquelas cabeças duras dos mineiros daqui, "mas conhecimento é muito mais que isso. No momento em que Adriano me contou como eu sai de minha casa em fevereiro, eu vi o Plano Mestre de que Andrés tanto falou. Eu vi Andrés vindo em sucessivas gerações para essa cidade, apenas esperando o dia do Advento, apenas esperando o dia do Advento; vi tudo como se fosse uma janela se abrindo em minha cabeça. Todos sabem que ele é um entre Aqueles Que Retornaram. O que não sabem é quantas vezes ele já retornou. O que não sabem é que não há nada disso de Aqueles Que Retornaram. O que realmente existe é Aquele Que Retornou."

Me calei, por um tempão. Esperei que um deles dissesse algo, o silêncio deles me torturava de uma maneira que silêncio algum, vindo de qualquer pessoa tinha me torturado antes. Não houve um único som; todos estavam sentados, arrasados por uma realidade que ficava mais pesada e difícil de sustentar a cada minuto. Nem mesmo os soluços se ouviam mais. O silêncio era ensurdecedor; muito mais do que eu mesma poderia suportar.

"Agora eu entendo o que Renan, Andrés e Adriano viram em mim na noite da cerimônia. Por isso eu não me lembrava do que eu havia feito na arena."

"A cerimônia não funcionou porque a senhora não se lembrava do que tinha feito na arena?", atalhou Guilherme, ansioso, a primeira voz humana além da minha naquele silêncio mortal. Os outros olharam para ele como se acordassem de um sono de décadas.

"Não. A cerimônia não teve o efeito desejado porque havia oito pessoas no Mithraeum."

"Arthur… Pelo grande Mitra! Creio em Deus Padre!" tornou Guilherme, estupefato.

"A presença de um amigo. Era Arthur, fazendo o que ele tinha designado para fazer. Mesmo morto, ele não abandonou a cidade no momento em que ela mais precisava dele. Porque era ele fazendo tudo o que vocês viram. Ele sabia que eu não conseguiria fazer aquilo com o animal. Ele foi lá e fez. Quando o touro pisou em mim, pareceu haver uma dor física. Não havia nada. Me ergui e a partir desse momento, não lembrava de mais nada. Acho que a partir desse momento, Arthur assumiu o resto do encargo e reduziu o touro a pedacinhos…"

"Vingança, afinal! Foi ruim a cerimônia não ter funcionado, mas fico feliz de saber que foi ele que fez isso no fim das contas. Grande, grande Arthur!", berrou Renan, sacudindo a pasmaceira da torcida aos 44 minutos do segundo tempo.

A notícia, tirada do fundo de tudo o que vi no Plano Mestre, devolveu a eles um ânimo que eu não mais julgava possível. Eu sorri para eles e eles pareciam ainda sérios (face a tudo o que estavam aprendendo), mas era evidente que um sopro de vida fora instilado neles pela revelação. Tenho agora uma clareza de pensamento que antes não acreditaria desenvolver. Adriano tinha sido a peça que faltava para que eu visse o Plano Mestre em toda a sua majestosa plenitude. Cada pingo para mim era agora a mensagem inteira. Cada coisa que me era informada abria um campo totalmente novo e incrivelmente preciso e acurado para mim.

"Você sabia do que se tratava, não, Andrés? Todo o tempo. Mas não achou palavras para descrever."

"A senhora pode ver tudo agora, D. Stella. Não demora, nem sei se vai precisar mais de mim."

"Todo mundo aqui precisa de você. Até o Renan."

Renan me lançou um olhar de raiva, mas acabou rindo. Não parecia riso nervoso. Todos riram em coro, menos Duílio e Andrés. Eles tinham um olhar grave que não se acabava.

"Renan", eu disse querendo esclarecer mais uma última coisa, "porque apareceu nos meus sonhos? Sonhou comigo?"

Ele olhou para Andrés e para Anderson antes de responder.

"Eu queria saber porque a senhora era tão especial e comecei a sondar a senhora nos sonhos. Quando eu vi que Anderson e Andrés estavam "espiando", parei. Não tinha muita energia no sonho, não ficava muito na minha forma redonda normal, mas dava para ir e ver com o que a senhora está sonhando. Então, a única idéia que eu tive foi que a gente aqui era exatamente do jeito que a senhora sonhou. Se o Adriano não falasse aquilo eu nunca ia saber porque eu achava isso, achava porque achava e só."

"Quem eram os caras que você matou?"

"Logo quando a senhora chegou na cidade?"

Minha visão se toldou. Os forasteiros mortos logo quando cheguei. Os Conselheiros saindo à noite para enterrar os mortos. Renan criando cachorros e tornando desnecessário o enterro dos corpos.

"Não acredito que tenha sido, moleque" eu tinha o queixo caído, "quantos eram?"

Renan ficou pensando um pouco, provavelmente mais pelo receio de me chocar mais uma vez do que pela conta que fazia.

"Cinco", ele disse, dando de ombros.

Procurei força para continuar o questionamento, "e os outros dois?"

"Eram forasteiros, de sua cidade e estavam atrás da senhora."

De repente me lembro de que não vi a cara de nenhum dos homens. Um, por ter me pegado por trás e sido rapidamente desfigurado pelos cães do Renan e do Guilherme. O outro por eu estar longe, ter visto o homem de costas e quando o vi mais de perto com Andrés, sentado morto no banco da praça com um pedaço de merda, estilete ainda cravado na barriga, ele ter a cabeça curvada. A descrição de Renan dos dois rostos não ajudou. E resolvi mudar de assunto, ainda um pouco perturbada com toda aquela nojeira.

Eu perguntei a eles se tinham mais alguma coisa a dizer ou a perguntar e aquele silêncio medonho se fez ouvir de novo. Eu disse que amanhã estaríamos indo para Santos. Pedi a Andrés que viesse conosco. Ele se recusou. Eu disse que a presença dele lá era importante e depois de cinco minutos de conversa, o convenci a ir. Não aguentando mais aquele silêncio infernal dentro da catacumba, pedi aos homens que me deixassem ver de novo a luz do dia. Fiat lux!

Isolado | Mais longos que a vida

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