quarta-feira, 22 de abril de 2009

Mais longos que a vida

Eram quase dez da noite quando entramos no carro. Eu tinha passado o dia relutando, me parece. Procurando desesperada algo que não me obrigasse a ir, fugindo daquilo que eu tinha que encarar, foi o que me pareceu, enquanto a cidade me olhava sem entender.

Não demorou muito, estávamos em Santos. As luzes típicas da entrada da cidade, a noção de tempo traída pela perspectiva do mundo paralelo que eu havia criado.

"Por que a viagem demorou tão pouco dessa vez ou por que é isso que me parece?"

"Sua viagem para Taurinos durou o mesmo que essa. A senhora só não tinha "visto" as coisas ainda.", explicou Andrés calmamente, sentado a meu lado na parte de trás do carro. Duílio e "sêo" Danilo seguiam quietos dentro da escuridão da noite que reinava no carro.

Tirei meu mp3 do bolso e o coloquei baixo para ouvir música e poder responder, se perguntada. Música suave dentro da noite, céu amarelo e sem estrelas da minha cidade natal, o carro em velocidade constante pela entrada da cidade. Túnel para a avenida Waldemar Leão e finalmente, a Santa Casa de Santos.

"Nós esperamos no carro. Se a senhora não retornar, saberemos que estamos próximos de desaparecer.", disse Duílio assim que desligou o motor.

"Eu não posso fazer isso sem vocês", eu gelava, olhando para eles.

"A senhora vai encontrar força, "sá" Stella.", prometeu "sêo" Danilo.

Duílio me disse que não queria ir porque não achava que seria justo para com eles ir até o meu corpo, e, eu decidindo voltar à minha vida, assistir o meu despertar e a desintegração de seu mundo. Achei que ele estava certo. Eu não tinha o direito de pedir isso a ele. Para minha surpresa, Andrés disse que estava disposto a ir comigo.

Seguimos pelos corredores que na descrição de Adriano eram mais longos que a vida e orientados por nada mais do que as placas nas paredes, chegamos à area da UTI. Uma porta grande de correr nos separava do momento.

Andrés correu a porta para abrir e vimos o interior. Uns quatro pacientes.

Eu era a quinta.

Impossível descrever o que senti no momento em que me vi ligada a todos aqueles aparelhos que me monitoravam e me mantinham "viva". Só me lembro da música suave e agressiva de Lupicínio Rodrigues tocando no meu mp3 no momento em que entramos.



"Por meus olhos, por meus sonhos; por meu sangue tudo enfim, é que eu peço a esses moços, que acreditem em mim. Se eles julgam que a um lindo futuro só o amor nesta vida conduz
Saibam que deixam o céu por ser escuro e vão ao inferno a procura de luz…"


Esses Moços, escrita por Lupicínio Rodrigues.


Andrés parou, a certa distância da cama, como que amedrontado. Eu estava ainda mais do que ele, mas o chamei resoluta. Parei diante do meu corpo inerte na cama. Não me lembrava de ter estado tão próxima de mim mesma nem mesmo quando estava dentro dele. Comecei a chorar baixinho.

"Se a senhora resolver que tem de voltar à sua vida normal, não diga isso olhando para mim. Renan diz que nunca matou ninguém olhando nos olhos dele. Porque o olhar da pessoa o perseguiria por toda a eternidade. Não acho que a senhora vai querer que isso aconteça."

Dizer isso era tão cruel quanto eu o ter chamado para ver sua própria destruição ao ser apagado de minha vida caso eu resolvesse ficar em meu corpo. Cada um nós, penso eu agora, é cruel do jeito que pode.

Andrés estava cada vez mais nervoso. Seus olhos me encaravam com sede de uma resolução final; morte e não-existência seriam para ele menos dolorosos que a espera infernal. Senti pena do menino e isso me fez chorar ainda mais. Ele me segurou pelo braço, "olha, agora é o momento de decidir; faça o que achar melhor. Não me importo mais. Lutei o que tinha de lutar, fiz tudo o que era possível e até o que era impossível eu consegui tornar inevitável também. Mas eu sempre soube que no final a decisão ia ser sua. Mas por favor, não me faça esperar mais. Pelo amor de Mitra, não me faça sofrer mais que isso."

Ele tinha uma lágrima nos olhos ainda não recuperados da reunião de ontem. Ele estava certo. Eu tinha o direito de decidir mas o não o de fazer o garoto sofrer. Mas eu tinha ainda uma última pergunta a fazer a ele antes de me decidir.

"Se Adriano…"

"Eu teria deixado a senhora neste hospital até a senhora morrer. Já tinha direcionado a senhora para Taurinos e prendido lá. Só faltava deixar o corpo morrer.", ele respondeu friamente, sem pestanejar.

Tamanha sinceridade exigia de mim um reexame de tudo. De tudo o que vi, vivi, pensei na cidade de Taurinos, tanto da minha vida em pouco mais de três meses, rostos, idéias, nem todas elas boas, nem todas elas ruins. A frieza de Andrés deu lugar a um gesto que não me surpreenderia semanas atrás, mas surpreendeu hoje: ele se ajoelhou diante de mim, agarrado às minhas pernas, enquanto eu ainda olhava pensativa para o corpo tão familiar, de todos os dias que tive, dos lugares que visitei, das experiências que tive, nem todas elas boas, nem todas elas ruins. Dessa vez, não era mais como o gesto desesperado e teatral de outras vezes. Dessa vez, era apenas desesperado.

"Vem com a gente. Eu te imploro."

"Levanta, moleque."

Ele se levantou devagar, me olhou nos olhos. Depois que a frieza desabou, só tinha sobrado o desespero.

"Você tem idéia do que vai acontecer se eu voltar? É nesse inferno que quer viver? Que pode não ter tormentos, mas é inferno assim mesmo?"

"Eu quero viver…"

"Mesmo que seja assim?"

"É melhor que não existir", disse ele, parecendo Renan ao falar.

Eu não queria passar mais nem um minuto neste lugar. A atmosfera de morte e sofrimento do lugar me esgotavam. Perguntei a ele o que fazer. Ele sorriu de orelha a orelha, ainda entre lágrimas, disse que só tinhamos de voltar ao carro e partir. Eu não poderia olhar para trás em hipótese alguma agora, ou ficaríamos a noite inteira retornando ao mesmo quarto. Segui Andrés pelos infinitos corredores e saguões da Santa Casa de Santos e ansiosamente perguntava a ele quando eu iria morrer.

"No carro, durante a viagem de volta. Não olhe para trás", ele respondeu sem voltar os olhos para mim, olhando apenas para a frente. Entendi a gravidade da simbologia dele e o segui sem olhar nem mesmo para os lados.

Lá fora, Duílio já parecia se preparar para ir atrás de nós. Quando me viu retornando com o filho, abriu um sorriso estelar, que nunca tinha visto em sua face. "Sêo" Danilo sorria também, contido mas feliz em rever uma velha amiga. Lembro de Meire, que nunca mais verei. De meu marido Paulo, que havia muito eu tinha desistido de esperar ou procurar.

"Eu espero não ter feito a escolha errada", eu disse timidamente, começando a sentir a aproximação de sensações que jamais tive em toda a minha vida. Eles me deram dois cobertores, Andrés se sentou, colocou um travesseiro no colo e disse que eu deitasse e pousasse a cabeça sobre o travesseiro. Eu me recusei, recusei os cobertores e ele me disse que eu iria precisar. Recusei novamente, eu queria estar consciente, mas "sêo" Danilo foi enfático ao me aconselhar a guardar cada palavra do que Andrés dizia até que chegássemos a Taurinos, "ele agora é o teu único guia de volta a cidade". Receosa e sentindo a sensação de abandono cada vez mais forte, me deitei no espaçoso banco de trás e apoiei a cabeça no travesseiro no colo dele. Olhei os olhos de Andrés meio virado dos pontos de vista onde estávamos, e pela primeira vez, em meio à sensação estranha que começava suavemente a me dominar, senti algo por ele que nunca tinha conseguido sentir. Confiança. Naquele momento, e talvez apenas naquele momento em particular no tempo, eu confiava nele. Como não confiei nem mesmo em meus pais. Isso me divertiu, me maravilhou saber que o mesmo que me trouxe ao lugar que criei fosse o mesmo a me levar embora de minha vida; me pareceu satírico, grotesco, sublime, ridículo, tudo isso ao mesmo tempo.

Meu mp3 ainda tocava aleatoriamente nos ouvidos, pilha que nunca iria se acabar. Como sempre, eu lia a situação nos versos da canção:



Causei um desabamento em meu ego. Olhei, de fora, para o mundo que deixei para trás. Estou sonhando, você está acordado. Se eu estivesse dormindo, o que estaria em risco? Um dia sem mim. Não importa os sentimentos, eu continuo sentindo. Quais são os sentimentos que você deixou pra trás? Um dia sem mim. Causei um desabamento em meu ego. Olhei, de fora, para o mundo que deixei para trás. No mundo que eu deixei pra trás. Enxugo seus olhos e deixo partir. No mundo que deixei para trás. Derramei uma lágrima e deixei o amor partir.

Um Dia Sem Mim, escrita por U2.



Um frio imenso me envolveu, gelado como o mais frio porão frigorífico. E um mar de recordações, como flashes de um grande, imenso filme que foi a minha vida inteira me invadiu, como tanta gente disse que iria acontecer. Vi a infância passada sob os chapéus-de-sapo em Santos, tudo o que fiz, pessoas que conheci, meu marido, meus amigos da faculdade de Psicologia, minha melhor amiga Meire, Dr. Romeu que me iniciou na prática da psicologia em 1994, tudo passando por mim em velocidade que eu não poderia controlar mesmo que quisesse. Incrível eu conseguir prestar atenção as canções que iam tocando aleatoriamente:




"Sempre estarei com você: às vezes negro, às vezes branco. E não precisa se assustar, sempre estás em minha mente. Tudo o que tens a fazer é dar um passo gigante, um passo mais para o alto. O ar vai te sustentar se você tentar. Confie em minhas asas do desejo."


Anjos Aterrissando, escrita por Salt Tank.



A sensação de abandono dava medo, os céus e a terra se movendo, isso eu podia ver claramente sem ter de me sentar. Até que tudo se dissolveu no vazio. Cega de tanto brilho, eu não conseguia mais ver o que eu tinha em minha volta, um brilho que queimou minhas retinas ou pelo menos era a sensação que eu sentia naquele momento. Fechei os olhos. A sensação passou. Minhas retinas pareciam intactas. Abri os olhos e vi Andrés com uma clareza extrema, olhando divertido para mim, o sorrisinho maroto do mineiro do interior brincando no rosto de um menino de doze anos.

"Já passamos de Varginha e do limite de município. A senhora pode se sentar agora, se quiser. Aconselho a olhar. Dá uma tonturinha, mas logo a senhora se acostuma. É aqui que nós vivemos, D. Stella. Bem-vinda ao nosso lar.", E Andrés me apontou para baixo.

E eu finalmente consegui entender porque Taurinos ficava a 200 km de Varginha. Os 200 km eram percorridos para cima. Não existe montanha no mundo com mais de quinze quilômetros de altura. A não ser aquela onde encontramos essa cidade mineira que não está e nem poderia estar no mapa.

E eu vi a vista magnífica das cidades em redor, que mais bonita ainda ia ficando, conforme o carro ia subindo o espiralado da estrada 200 km para cima. Como num sonho, indo de carro para o céu, como a visão de paraíso que nos é inculcada desde Dante Alighieri, um paraíso com um sabor amargo de inferno, mas um lugar infinitamente belo de se contemplar.

"Eu já estou morta?", foi só o que consegui perguntar, espantada com a visão lá fora.

"Agora está. Praquele mundo, sô." e Andrés sorriu. Os dois adultos seguiam tranquilos na frente.

Meu mp3 continuava ali, firme, até que o desligasse. Num aleatorio sem fim, agora tocava músicas que eu não tinha puxado para ele:



O mundo anda sem guia, making of da desgraça; road movie sem governo, ave-maria sem graça. O mal da naftalina é a vitória da traça. O carro que eu andava parou pra trocar pneu. A existência é um carro na oficina de Deus.

Divino, escrito por Zeca Baleiro e Rita Ribeiro.



Tiradentes |

Rádio Universal: O Dia Da Criação

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