sábado, 4 de abril de 2009

Sonhos noturnos

Noite antes do dia chegar. Estou deitada na cama, pensando em loucuras. Na minha, na dos outros, tantas loucuras diferentes. Tantos modos de ver a vida que já nem sei quantos. Ouço um barulho fora da janela do meu quarto. Um som estranho. Há alguém caminhando pelo alpendre até perto de minha janela. Isso eu posso sentir nos meus ossos.

Eu me levanto, aturdida e vou até a janela. Olho pelos vãos das persianas, mas não há ninguém. Sinto um toque frio no ombro que me gela dos pés à cabeça. A sombra. Constante companheira desses dias. Me viro lentamente esperando ver algo, eu que não veria a minha mão em frente aos olhos de tanto breu. E uma vez mais não há nada atrás de mim.

"D. Stella! Aqui!"

Olho pelas persianas outra vez e vejo Anderson lá fora. E ele não está sozinho: Andrés está lá também junto com ele. Já deve passar bem da uma da manhã, o que fazem esses meninos tão longe de casa a uma hora dessa por aí?

Pela janela, vejo Anderson apontar para a minha cama. Eu me viro, acendo o abajur e olho para a cama. Meu Deus. Estou deitada na mesma posição em que estava antes de vir à janela. É um sonho lúcido. Os dois não estão fora de casa. Apenas as idéias deles estão aqui. Ou como se diz por aí, estão em corpo astral nesta fazenda dos Teixeiras.

Sentei na cama ao lado dos dois e eles disseram que o que está acontecendo já era de esperar. Que estivemos ligados pelos sonhos de uma forma tão definitiva esses dias que isso não demoraria a acontecer.

"Renan Augusto deve aparecer não demora muito." E Andrés deu uma risada alta. Eu disse a ele que não fizesse barulho para não acordar os outros e Andrés me disse que não havia ninguém na casa.

"Claro que tem, todo mundo aqui foi dormir mais ou menos a mesma hora."

"Isto é um sonho, lembra? Se não acredita em mim, dê uma olhada nos outros quartos."

Não havia mesmo mais ninguém na casa. Olhei quarto por quarto e o que é melhor, sem precisar abrir as portas. Fazia tempos que eu não me entregava à loucura de um sonho lúcido. Minhas primeiras experiências com o pessoal da Projeciologia me voltaram no mesmo instante. Tudo o que penso em fazer já está sendo feito. Retorno ao quarto e os dois estão no mesmo lugar, me esperando.

"E agora, o que fazer?"

Centro da cidade à noite. Ninguém na praça principal. Somente os eternos sons noturnos dos grilos e da onipresente orquestra percussiva de sapos. Andrés se divertia em catar alguns sapinhos dos terrenos alagadiços mais próximos. Ele tinha uma grande facilidade tanto em pegar os sapinhos como em deixá-los escapar. Repentinamente, ele largou um dos sapinhos e olhou para o gazebo no centro da praça.

"Não é o cara morto que nós vimos sendo retirado?"

Virei na direção do gazebo bem em tempo de ver o homem. Vimos Renan chegar perto dele e esfregar na barriga dele o estilete. O homem realmente estava bêbado demais para reagir, foi presa fácil para Renan. Vi tudo de um ângulo diferente desta vez. Anderson fez menção de correr até lá e impedir Renan, mas eu disse a ele que o que ele estava vendo era como um filme que ficou impresso no lugar pelo evento criado por Renan. Um evento tão chocante que permaneceu ali, como um registro da atrocidade acontecida como impressões que deixamos num vídeo depois que a câmera terminou sua captação de imagens. O que não estava no script é que Renan nos viu na praça e veio falar conosco. Ele seguramente não era parte ou não era mais parte do "filme" a que eu me referia.

"Então? Mais um forasteiro mal-intencionado liqüidado p'ra sempre. Que acharam?"

"Eu acho que você não pode fazer isso à luz do dia. Só isso. Fora isso, nós apoiamos a tua atitude, Renan. Mas você tem que lembrar que pode ter crianças andando pela rua de dia." disse Anderson, preocupado com o amigo.

"Crianças como vocês e o Renan? Só porque você tem quatorze anos, não quer dizer que não seja criança para certas coisas, Anderson. Ainda mais isso, para que ninguém deveria ter idade suficiente em tempo algum" eu repliquei, no topo da ironia.

Anderson respondeu que alguém tinha de fazer isso, já que não havia polícia na cidade. O mesmo refrão tantas vezes repetido em minha cabeça, a mesma desculpa perfeita. Anderson ainda disse que eu deveria apoiar a matança também, para que os forasteiros ameaçadores não representassem perigo para Taurinos e seu povo pacato (disse com essas palavras). Mas eu nunca vou me acostumar a essa pena de morte tácitamente praticada aqui com entusiasmo pelos nativos.

"D. Stella é contra mim", disse Renan esticando quatro metros e meio de seu braço direito para me tocar da distância em que estava, "não é, D. Stella?"

"Renan, você está assustando ela, para com isso", advertiu Andrés.

"Ele não me assusta, Andrés. Acredite, já vi coisas muito piores."

Penumbra em plena luz do dia | Estranha ciência

Rádio Universal: Teatro De Sombras

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