domingo, 5 de abril de 2009

Estranha ciência

Guilherme se sentou no sol depois do café da manhã. Os dois irmãos pareciam ter essa mania de se sentar no sol, quando o sol ainda não é tão suave como no meio do ano quando é inverno aqui. Lá pelo final do mês, as noites tendem a ficar bem mais frias no Sul de Minas e nesta cidade. O vento varre essa região de Taurinos também, não somente o topo da cidade. É um vento constante em certos dias, soprando com certa violência e imoderação sobre as fazendas e casarios da cidade.

"De novo com os sonhos?" ele perguntou como se soubesse que esse era o assunto corrente.

"Tem tido os sonhos também?", eu esperava que ele os tivesse também, no fundo. Ele me disse que eram bobagens o que ele sonhava, telhados, nuvens, florestas, árvores, solidão.

"Mas que é esquisito que só a senhora, Anderson e Andrés tenham tido o sonho, nuémêss?"

Eu ia responder, mas a chegada repentina de Renan me fez pensar duas vezes. Ele se mostrou amistoso (também, para ficar de mau-humor, nosso quarto é bom o bastante). Sentou-se ao lado do irmão e os dois ficaram me olhando.

"Não estou contra você, como você disse lá na praça." Eu disse isso num impulso, do nada.

"Como assim, eu disse lá na praça? Eu não lhe disse nada na praça, só pedi p'ra senhora entrar no carro." Ele entendeu que eu me referia àquela terça-feira à tarde na praça principal.

Guilherme olhava para nós sem entender patavina da conversa. Renan mesmo não parecia estar entendendo a que eu estava me referindo. Contei a ele sobre o sonho em que eu, Andrés e Anderson o vimos na praça com o homem no gazebo e ele disse que não se lembrava de absolutamente nada disso.

"Nem tenho sonhado esses dias. Faz bem tempo que não me lembro de nada que eu sonho", ele disse olhando ao longe como se procurasse lembrar a última vez, "olha, nem me lembro quando foi que sonhei com alguma coisa por último."

Engraçado, ele não parecia estar fingindo. Podia ser verdade, podia não ser. De qualquer modo, ficou bem interessado em saber que nós três tivemos um sonho lúcido juntos. Era como se a idéia jamais tivesse passado por sua cabeça, para dizer a verdade. Guilherme não parecia ele mesmo ter parado para pensar no assunto mais que o irmão caçula. Os dois ficaram me enchendo o saco com quilos e quilos de perguntas, algumas interessantes, outras completamente idiotas e sem sentido. Um ciência estranha para garotos esquisitos.

Seis e meia e estou em frente ao portão de "sêo" Danilo. O cheiro de café, marca registrada da humilde choupana do mineiro antigo, conhecedor de mistérios da terra, mistérios dos quais eu jamais suspeitaria. Ele abriu um largo sorriso quando entrei. Reclamou que fazia tempos não nos víamos mais.

"A fazenda dos Teixeira é mais longe, quando tem carona dá para vir mais vezes", eu disse.

"Como está o Renan?"

"Normal, aquilo que você já sabe."

Contei a ele o que aconteceu na segunda-feira no caminho para a fazenda Teixeira. Ele arregalou olhos do tamanho de um pires, "mas que perigo" e disse que tinha mesmo visto dois forasteiros juntos andando pela cidade.

"Mas o Renan passou dos limites dessa vez, não, "sá" Stella? À luz do dia, eu soube. Mas isso não é motivo p'ra espanto. O menino é um carniceiro só dentro daquela roupinha de marca e da carinha de anjo."

Olhei pela janela a noite que começava a se estabelecer. Cada dia pareço saber menos que atitude tomar. Pergunto a ele se o problema para ele também se resume no fato dele ter feito o que fez à luz do dia, não o ato em si. Ele diz que é preciso ser discreto em cidades do interior. Tudo vira falatório, tudo vira ordem do dia.

"Mas então esse parece ser o problema para todos. A quantidade de pessoas assistindo. Não importa o que ele tenha feito, tem de ser sob o manto da noite?"

"Sêo" Danilo pareceu pensativo por um tempo. Depois me encarou, o mesmo olhar gelado de Andrés e Adriano defendendo suas teorias sobre como os forasteiros malintencionados deveriam ser destruídos para melhor ilustrar o que acontece com quem tenta esse tipo de coisa em Taurinos.

"Quer saber se eu tenho pena dos hominhos que Renan matou? Não. É farinha do mesmo saco de outros que vieram aqui molestar, roubar e até matar. Você viu e até passou por isso segundo o que me contou agora pouco. E se o menino não tivesse ligado imitando o pai e você viesse a pé naquela hora? Como veio hoje à minha casa nesse mesmo horário? Independente dele ter ligado ou não, o cara estava ali pelas estradas. Tanto que encontrou você ali, não foi?"

"E o outro cara? O que ele fez, além de andar em má companhia?"

"Sabe Deus", e "sêo" Danilo deu de ombros.

"Como 'Sabe Deus'?", eu encarei "sêo" Danilo estupefata pela frieza dele, "a vida de uma pessoa é tirada e tudo o que você tem a me dizer é 'sabe Deus?'"

Ele me olhava perdido num silêncio pensativo. Me pareceu ligeiramente impaciente pela primeira vez desde que o conheci. Por um momento, foi como se ele medisse a minha reação ao modo como ele via a situação.

"Não vejo como posso convencer a senhora de que o menino estava agindo certo. Ele só passou dos limites ao fazer isso em uma via pública."

"Também isso é uma lenda", eu disse, contrariada, já que testemunhei as duas mortes, "eu o vi matando os dois caras e o segundo não me parecia de modo algum estar sendo morto. Tanto que também é um fato que o corpo só foi notado morto por causa dos urubus que já desciam em bandos para se banquetear da carcaça do homem exposta a céu aberto, tamanha foi a sutileza do menino em fazer a cirurgia. Ele sabia exatamente onde riscar o abdômen do homem e criar a abertura certa para que a morte fosse gradual mas ao mesmo tempo sem dar tempo a ele de procurar ajuda. O que foi humilhante para a cidade foi o fato de o corpo apodreceu sem ter sido recolhido, esse é o fato. O que foi humilhante para a cidade foi o fato de que ninguém percebeu que o cara estava sentado ali completamente morto depois de agonizar sabe lá quantas horas naquela posição estúpida. Fato é que nem você, que passa pela praça freqüentemente, notou que havia um cadáver ali."

Ele pareceu mesmo surpreso e inquieto pelo tempo em que o corpo permaneceu no gazebo. Agora ele estava realmente desconfortável enquanto eu demonstrava o quanto Renan humilhou a cidade. Eu disse a ele que a mão é mais rápida do que o olho. E que foi isso que fez Renan grande naquele momento.

Sonhos noturnos | Neurose de combate

Rádio Universal: Teatro De Sombras

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe aí algumas linhas. Agora, sem essa de Viagra ou Tramadol ou coisas do gênero ou seu comentário vai para a lata do lixo.