sexta-feira, 3 de abril de 2009

Penumbra em plena luz do dia

Renan está em meu quarto. Quieto, me observa, provavelmente inconsciente do fato de que estou acordada, olhando para ele por uma fresta entre o lençol e o cobertor. O silêncio é mortal enquanto o observo respirando quieto a meu lado. Repentinamente, ele pula sobre mim e tem um estilete nas mãos. Levanto apavorada só para perceber que estou sozinha no quarto, que foi apenas um sonho. Renan não está em meu quarto, mas o que é essa sombra furtiva que capto num canto do quarto preenchido de penumbra e nada mais?

"D. Stella, a senhora dá um jeito nesse menino que estou começando a perder a cabeça com ele. Agora, a senhora me diga se é assim que se tem que fazer. Fazer uma coisa dessas no meio da rua, com tudo mundo passando em plena luz do dia?" "sêo" Octávio parecia desesperado,

Isso em plena mesa do café, com os dois irmãos e tudo presente. "D. Stella é de casa, não tem isso não", dizia Donana quando ela e "sêo" Octávio brigavam perto de mim. O marido sem jeito, e ela mandava essa frase sem pensar.

"O senhor sabe quantos dias o corpo ficou no gazebo?"

Renan olhou para mim sério, a única expressão que conseguiu arranjar no momento. Donana com aquela cara de "meu Deus, isso não aconteceu" e Guilherme só faltando assobiar de tão desconfortável.

"Dias?" o homem estremeceu ligeiramente, vi o nó se movendo na garganta com um alienígena prestes a romper a camada de pele e sair para a luz do dia.

"O cara estava caído lá desde a terça-feira, quando fomos ao Souza. O povo da cidade, lógico, nem chega perto do gazebo porque o cara é de fora, não merece confiança."

Renan olhou para o chão, evitando encarar o pai. Guilherme mastigava nervoso o pão de queijo. Silêncio gelado, mortal. Eu disse que só removeram o corpo do gazebo ontem, vi quando fui com Andrés conversar com Anderson na cidade.

"Onteu quase esfreguei sal nas feridas dele de tão louco que eu fiquei. Que vergonha, um corpo jogado na praça principal da nossa cidade desde a terça-feira."

O tom parecia mais conciliatório agora. Não prevejo outra tempestade nos moldes das que vejo na fazenda Taurinos. Duílio parece ser bem mais severo em certos pontos. Mas também quando cheguei ontem, a surra já estava terminando. Me dedico o benefício da dúvida, sem saber quanto tempo fazia que ele tinha começado a apanhar.

Renan estava sentado ao sol depois do café como o vi na terça-feira. Como na terça fui me sentar ao lado dele e o encontrei mexendo com as mãos e se divertindo com a própria sombra. Ele parecia triste e nervoso. Eu ia dizer algo coisa, mas ele levantou a mão como quem pede um tempo. Fiquei calada enquanto ele brincava com as mãos formando um cachorro, aquelas coisas de teatro de sombras.

Levou uma eternidade até ele murmurar um grunhido inteligível. Ele disse que estava triste, mas isso eu já sabia só de ver o modo como brincava.

"Será que meu pai vai ficar muito tempo sem falar comigo?"

"Ah, vai. Tua mãe… Você tem sorte de ainda estar falando comigo depois do que fez na terça."

"Prometo nunca mais fazer isso à luz do dia."

Como se fosse esse o ponto. Mas esse era o ponto na visão dos taurinenses, tenho de admitir. Ele pode matar, desde que oculto pelas sombras, esse é o ponto. Mesmo quando Anderson colocava que "Renan desta vez exagerou" era no sentido de que não se mata assim por aí de dia em lugares movimentados. Contudo, o movimento do menino foi sutil o suficiente para só ser percebido quase três dias depois pela comunidade. Não fosse o fedor de carniça que tomou conta da praça principal e ele já teria virado parte do estatuário municipal.

"Fico feliz em saber que de agora em diante você só vai assassinar as pessoas na sombra."

"A senhora tá me tiran'o, né?"

"Estou é cansada de dar murro em ponta de faca."

"Deve ser dolorido", o diabinho comentou.

"Agora quem é que está tiran'o?", eu imitava o modo dele de falar.

Ele ficou calado. Seus olhos voltaram-se para as montanhas. Foram instantes pensativos entre nós. Como posso dizer a ele que o que faz é monstruoso ainda mais para alguém de sua idade quando toda a cidade parece aprovar e mesmo esperar dele (e dos outros meninos) exatamente esse comportamento? Como posso dizer isso a alguém que me promete nunca mais fazer isso… à luz do dia?

Gente e urubus | Sonhos noturnos

Rádio Universal: Teatro De Sombras

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