quarta-feira, 15 de abril de 2009

Sessão

Meia-noite. O ar em torno da casa da fazenda Taurinos está contaminado do maravilhoso aroma dos ciprestes que servem em torno de cerca viva. Os seis meninos estão aqui no quarto de Andrés, que vamos utilizar para a sessão de sonho de hoje. Fico um tempo mirando as espadas de toureiro cruzadas em panóplia sobre a parede, a foto de Andrés sentado sobre um touro da fazenda. Um touro em cima de outro, pensei, enquanto procurava suprimir um acesso de riso pelo pensamento que tinha acabado de cruzar minha cabeça.

"Nós vamos dormir sentados?", foi a primeira coisa que ocorreu a Bruno perguntar.

"Tem uns sacos de dormir ali naquele canto", e Andrés apontou na direção.

"Eu não vou dormir em saco de dormir. Vou dormir na minha cama", protestou Adriano, amarrando a cara.

"Adriano, vamos procurar ficar juntos. Caso dê tudo certo, você pode ficar desorientado se estiver sozinho num quarto, separado dos outros."

"Que se foda", ele retrucou, "quero a minha cama macia."

"Quer dormir na minha?", ofereceu Andrés.

"Eu quero a minha cama."

Nós todos ficamos trocando olhares, espantados com o rompante. Ainda tentamos convencer o rapaz, mas não houve jeito que desse jeito.

"Ah, eu não dou conta do Adriano quando ele começa com essas frescuras", disse o irmão mais novo dele, olhando para a porta do quarto depois que Adriano saiu.

O silêncio morto da noite, somente a orquestra noturna de sapos e grilos lá fora. Eu me sentei numa cadeira no canto e fiquei olhando os meninos inertes nos sacos de dormir. Anderson ressonando alto, quase quebrando a harmonia. Súbito, ele se moveu para o lado. Abriu os olhos e os virou na minha direção. Tinha me visto. Estava agora fora de seu corpo. Ele se ergueu do chão enquanto eu tentava lhe dizer que evitasse olhar para si mesmo ali deitado no chão, para que não surpreendesse ao ponto de ficar com medo.

"E os outros?"

"Os outros estão dormindo ainda. Vamos esperar e ver o que acontece."

Anderson passou a me contar sonhos que tinha tido por esses tempos. Ele me disse que sonhou que eu era a prefeita de Taurinos. De brincadeira, perguntei se ele votaria em mim nas próximas eleições, caso eu me candidatasse.

"Ah, é difícil se votar em alguém de fora por aqui", ele disse sorrindo, "mas acho que votaria na senhora, sim."

"Sobre o que conversamos?", perguntou Bruno ao nosso lado agora, recentemente erguido do saco de dormir.

Pedi ao Bruno que não olhasse para trás. Ele sorriu, meio entre o sem-graça e o confuso, e me perguntou porque. Eu disse a ele que ele ainda estava no saco de dormir e ele se recusou a acreditar, mas por outro lado não virou a cabeça na direção dos outros. Isso durou até ouvirmos a voz de Andrés que vinha atrás dele. Bruno olhou e viu Andrés do lado dele. Viu também os sacos de dormir e viu a si mesmo em um dos sacos. Olhei para Anderson, mas não antes de ver com que força Bruno foi literalmente puxado para dentro de seu corpo físico após a descoberta. Fim da linha para ele, pelo menos por esta noite.

"Se puder evitar de chamar a atenção dos outros para os sacos de dormir, eu agradeço", eu disse a Andrés.

"Foi mal", ele disse embaraçada e desajeitadamente.

"Com esse barulho, não dá pra dormir", reclamou Renan, levantando-se e chegando perto de nós enquanto dormia no seu saco no canto do quarto. Ele aparentemente não tinha idéia de que estava fora de seu corpo. Renan tinha estado distante quando as sessões de sonhos começaram; na verdade, apenas eu, Anderson e Andrés tivemos participação ativa no processo.

"Bem-vindo ao meio da noite", disse Andrés indiferentemente.

"Por que estão acordados?", ele perguntou, esfregando os olhos.

"Não tem ninguém aqui acordado, Renan, nem você", disse Anderson.

Ele sorriu um sorriso luminoso ao perceber que tinha funcionado. O sorriso dele iluminou o quarto de tal forma que tive de pedir que ele parasse de sorrir um pouco. Restabelecido o clima inicial, nos quedamos por ali esperando que os outros "acordassem". Guilherme ainda demorou um pouco e seu irmão menor parecia impaciente.

"Quer que eu chute ele? Levanta rapidinho…"

"Não é assim que as coisas funcionam, Renan."

Minha preocupação única era Adriano isolado de nós em seu próprio quarto. Me perguntava se ele chegaria a este estágio fazendo tudo num lugar à parte tendo nada mais em mãos que não fossem suas intenções de sair do próprio corpo. Renan ficou se divertindo vendo a si mesmo dormindo, se divertindo exatamente com o mesmo item que tinha apavorado Bruno o suficiente para enviá-lo de volta ao corpo. Guilherme acordou sem necessidade de um chute nas costas, coisa que eu já havia previsto. Perguntou por Bruno e Adriano. Contei a ele o que sabia de Bruno e que não tinha idéia do que estava acontecendo a Adriano em seu quarto. Eu não tinha ainda terminado a frase, quando ouvimos um grito vindo do quarto de Adriano. Eu avisei a ele que não era boa idéia ficar isolado, mas qual o que.

Fomos ao quarto dele em comitiva, uma comitiva leve do corpo que deixamos para trás no quarto de Andrés, apenas para encontrar Adriano, sentado na cama ao lado de seu corpo adormecido, olhos arregalados, esquadrinhando cada canto do quarto. Alarmado.

"Sua amiga Meire está aqui no quarto com a polícia", ele disse, "a senhora está vendo?"

"Meire? Aqui???", olhei em volta de puro instinto e reflexo.

Não havia ninguém no quarto com exceção de mim e dos cinco garotos. Olhei em volta e todos pareciam tão atônitos quanto eu. Percebi que Adriano podia ver algo que não podíamos e decidi testar a percepção dele.

"Você pode falar com ela?"

"É o que estou fazendo desde que ela apareceu."

"Pergunte a ela o nome do meu marido."

Eu o ouvi repetir a pergunta olhando para o meu lado esquerdo e o ouvi responder:

"Ela disse que o nome dele é Paulo."

Somente leitura | Ordem do dia

Rádio Universal: O Dia da Criação

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