terça-feira, 28 de abril de 2009

Role os dados

Renan apareceu de manhã em casa. Não veio em seu palomino desta vez, foi trazido por Donana e "sêo" Octávio de carro. Insisti em que os pais entrassem, não sei se por receio de Renan ou se por demonstrar um pouco da mesma hospitalidade que eles tiveram para comigo em fins de março em sua fazenda. E por que ter receio de Renan, afinal? Estive com ele por tanto tempo, estivemos juntos desde a primeira reunião da Sociedade Antiga dos Taurinos. Ele e Guilherme simpatizaram comigo de cara, quando nos conhecemos em fins de fevereiro, inspecionando os bezerros da fazenda Teixeira. Ao contrário do Bruno, ou Andrés por exemplo. Eu teria deixado todas as histórias da Polícia Obscura que ouvi ontem me impressionarem tanto assim? Por que me impressionaria depois de tudo o que vivi quando estava hospedada na casa dele? Sei que se ele não tivesse aparecido no meio do mato naquele por-do-Sol, quando o Lopes encostou aquela arma na minha cabeça — surgido sei lá de que região do inferno astral em que ele sempre viveu — eu talvez não estivesse mais aqui. Se é que eu sei onde estou ou um dia soube onde estive. Mas não posso esquecer que ele me usou como isca ao me atrair de volta à fazenda Teixeira para facilitar o trabalho dele de localizar e eliminar Lopes com seus cachorros assassinos.

Hoje não culpo Renan, assim como não posso culpar Andrés por tudo o que aconteceu. Não posso culpar Andrés mesmo sabendo que ele me deixaria apodrecer numa cama de hospital, já que ele tinha conseguido tudo o que queria de mim. Ele foi criado para lutar pela sobrevivência de Taurinos. Renan foi criado para patrulhar as fronteiras da cidade. Tudo veio de mim, Andrés, o Plano Mestre, sem que eu soubesse como nem porque. Mas não é culpa deles terem sido criados assim, Se existe uma culpada nessa história sou eu. Apenas eu deveria assumir a culpa por tudo o que me aconteceu. Mas não existe culpa. Como numa música do grupo canadense Rush, tudo é muito simples de explicar.



Por que estamos aqui? Porque estamos aqui. Porque isso acontece? Porque isso acontece. Role os dados.

Role Os Dados, escrito por Rush.



Acordei de minhas reflexões sobre a Sagrada Escolha Randômica e mostrei a eles a casa. Renan nos seguia maquinalmente, cara de poucos amigos, sem prestar muita atenção na casa, mas parecia não tirar o olho de mim. Como se estivesse desconfiado de alguma coisa. Quase como se ele soubesse que conversamos eu Adriano e "sêo" Danilo sobre ele ontem o dia inteiro. Me era bem estranho ter o menino aqui num dia normal andando conosco pela casa depois de tudo o que ouvi sobre ele ontem. Não era receio dele na realidade, mas um sentimento de estranheza por tudo o que ouvi. Era como convidar alguém para o café da manhã que você sabe que se transforma num lobisomem em noites de lua cheia.

Eu disse que iria fazer café e eles recusaram, alegando já ter tomado café em casa e agora terem de ir à cidade. Insisti, mas não houve jeito de convencê-los a ficar para o café da manhã. Renan sentou-se na poltrona no canto da sala. Percebi que ele não iria junto com os pais à cidade. Com efeito, os pais saíram e ele ficou. Antes de sair, "sêo" Octávio e Donana pediram que eu não desse café da manhã a ele. Que coisa estranha. Estranhosidades de todos os lados, eu que já havia muito deveria ter me acostumado.

Eu disse ao menino que viesse até a cozinha comigo. Talvez ninguém quisesse tomar café, mas eu ainda não tinha me alimentado e tinha fome. Ele moveu a cabeça na minha direção, se ergueu e foi até a janela da sala que dava para o alpendre. Viu se os pais já tinham ido embora e só então veio comigo. Como se fosse um tarado que olha em torno para ver se a costa está limpa para cometer um crime. A idéia me deixou nervosa, mas procurei aparentar tranquilidade, como se nada especial estivesse acontecendo. E se realmente nada de especial estivesse acontecendo?

Renan sentou-se à mesa. Ficou em silêncio absoluto, daqueles que me dão nos nervos mortalmente. Ficou me olhando como se não tivesse olhos para mais nada. Ofereci a ele tomar café da manhã comigo.

"Meus pais não querem que eu tome café de novo", ele disse com o olhar estranho e metade de um sorriso. Não sei por vezes o que mais me incomoda nele, se a cara de ursinho emburrado ou o sorriso esquisito de quem parece te olhar com olhos de raio X. Ele estava me dissecando, isso eu sentia nos meus ossos. E isso me dava nos nervos, definitivamente me dava nos nervos.

"Que é que tanto você me olha, Renan?"

Ele desviou os olhos para a janela da cozinha automaticamente. Ficou como um maluco falando comigo e evitando olhar para mim.

"A senhora está diferente comigo. Eu posso sentir. Como um cão que fareja o medo nas pessoas, dá pra sentir isso na senhora direitim. Está mudada comigo. Istrudia mês no alpendre a senhora parecia apavorada. Ansdionti lá em casa parecia a mês D. Stella que eu conheci na primeira reunião da Sociedade. Hoje a senhora tá diferente de novo. O que que tá haven'o, D. Stella?"

Ele olhou para mim finalmente e me encarou.

"É o negócio dos hominhos que estavam atrás da senhora?"

Não respondi, pensando no que dizer. A água iniciou fervura. Me ergui e fui pegar o coador e o pó de café. Pronto o café, coloquei tudo sobre a mesa e forcei Renan a me acompanhar na minha primeira refeição do dia, que para ele era já a segunda. Não gosto de ficar comendo e não oferecer. Renan pegou tres pães de queijo e encheu sua caneca metade leite, metade café. Fiquei olhando ele passar manteiga nos pães de queijo em silêncio enquanto ele fazia o que fazia sem olhar, apenas com os olhos voltados para os meus, ansioso por uma resposta, "a senhora conversou com mais alguém sobre isso, não foi? Por que não pergunta as coisas pra mim direto? O que mais a senhora tanto quer saber?"

"Posso mesmo te perguntar as coisas?"

"A senhora saquessim. Eu estou aqui pra ajudar. A senhora tá cansade saber disso, D. Stella.", o mineirinho minúsculo falava com a boca cheia de pão de queijo.

"Primeiro, você tem que me dar sua palavra de que não vai ficar zangado comigo nem com ninguém. Promete?"

Ele hesitou e levou um tempo para responder. Engoliu um bocado do pão, um gole de café com leite e finalmente prometeu que não ficaria zangado. Mordeu mais um pedaço de pão de queijo e quando ia engolindo veio a pergunta:

"O que é a Polícia Obscura?"

Instantaneamente ele engasgou com o pão. Era quase como se eu entendesse o pedido de "sêo" Octávio e Donana para que eu não o alimentasse. Renan virou a cabeça violentamente para o lado esquerdo e cuspiu café com leite e pedaços mastigados de pão de queijo para todo lado. O chão da cozinha ficou imundo. Me ergui apavorada e fui bater nas costas dele quando ele já ameaçava sufocar. Me olhava com os olhos arregalados, injetados de sangue. Demorou a se recuperar e conseguir falar, mas quando conseguiu eu desejei que não tivesse perguntado nada.

"Quem foi o filho da puta que falou?", ele rosnou.

"Você me prometeu, lembra?"

"Quem foi o filho da puta que falou???", ele gritou, num crescendo de fúria que cedo não mais iria caber em minha casa.

"Eu "vi" isso em você uns dias atrás…", eu tentava uma mentirinha de nada, fraca, que eu sabia que não iria colar.

"Não mente pra mim, caralho!!! Não esconde o filho da puta não, que eu não sou otário! Tá me tirando que a senhora "viu" porra nenhuma em mim! Polícia Obscura é a puta que pariu do filho de uma vaca que falou essa merda!", ele falava da boca para fora, mas eu não conseguia deixar de me horrorizar ouvindo tantas palavras de baixo calão da boca de um único menino de dez anos. Mesmo sendo ele Renan.

E repentinamente ele se levantou da mesa, tremendo de ódio, com um sorriso súbito que me amedrontou.

"Foi o pau no cu do Adriano língua solta, não foi? Fala, D. Stella! Fala! Prometo que não vai lhe acontecer nada, juro! Mas me diz se foi ele que ele vai se dar mal. Ninguém me chama desse nome que não vai se foder depois. Eu arrebento o desgraçado todinho! O Célio da Dica teve que operar a cara em Varginha depois de brincar comigo. Se foi o Adriano, ele tá fodido! Ele tá fodido!!!"

"Olha, se alguém tá fodido, esse alguém sou eu. Não vai fazer bobagem, ninguém tem nada a ver com essa história. Me interessei em saber e fiquei sabendo. Se vai jogar pesado com alguém, vai jogar pesado comigo. Me bate, faz o que quiser, mas a responsabilidade é minha e só minha. E chega dessa gritaria aqui dentro da minha casa. O que você achar que tem que fazer, vai fazer comigo, Renan!"

Ele veio para o meu lado. Eu estava apavorada, mas conseguia forças, sei lá de onde, para aparentar o máximo de calma possível. Não levantou a mão para mim, mas chegou bem perto de onde eu estava.

"Então é assim? É isso que a senhora quer?"

"É assim que é."

"Tudo bem, então a senhora vai assumir isso que falou pra mim?"

"Já está assumido, Renan."

"Fica assim então. Não vou mexer com ninguém. Eu sei que foi o babaca do Adriano, mas se a senhora prefere assim, assim vai ser. Não faço nada sem provas. Não vou mexer com ele. Agora a conversa é com a senhora."

Ele me disse que meus problemas começariam à noite assim que eu tentasse fechar os olhos para dormir. Recomendou que eu lesse um bom livro e passasse esta noite em claro se quisesse evitar problemas. Problemas sérios.

Polícia Obscura | Noite de chumbo

Rádio Universal: Polícia Obscura

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