segunda-feira, 27 de abril de 2009

Polícia Obscura

Adriano veio em casa conversar comigo hoje de manhã. Toquei no assunto de ontem e contei a ele também sobre anteontem; ele então me falou também o que sabia sobre a polícia de fronteira que Renan representava. Como um guia que eu precisava para viver sem sustos em Taurinos pelo tempo que viesse. E que viria.

"Ele anda a cavalo pelos limites do município", ele disse, "usa sempre um cavalo preto, botas pretas, esporas e a roupa toda preta quando está "trabalhando". Por isso as pessoas na cidade às vezes o chamam de Polícia Obscura, mas nunca perto dele porque ele detesta o apelido e quer brigar com quem quer que seja na mesma hora. Renan sai a cavalo à noite e dá a volta por toda a cidade procurando forasteiros, especialmente aqueles que já estão na cidade há mais de cinco dias. Se a senhora der o azar de estar fora de casa à noite e o vir passando todo de preto num cavalo preto, já sabe que ele está caçando alguém."

Não entendi o que Adriano quis dizer com aquilo de "azar" e decidi provocar o garoto indiretamente.

"Sim, talvez eu possa pedir a ele para parar e perguntar a ele de quem se trata, não?"

"Não, não, não, nunca faça isso", ele pareceu pálido e assustado diante da minha idéia, "é uma péssima idéia parar o Renan nessa situação na estrada à noite. Não é boa idéia nem ficar na estrada por onde ele vai passar. Se tiver alguém da cidade à noite nessa situação (o que é difícil acontecer, já que as pessoas ficam em casa em noites como essa), a pessoa sai bem da estrada de terra e vai para longe dela, só volta para a estrada quando ele já passou por ali. Ele já de dia no normal não é muito amistoso às vezes, a senhora bem sabe. À noite, passando no cavalo, de longe é fácil saber que é ele. É muito raro, quase impossível que outras pessoas estejam cavalgando à noite na cidade e de mais a mais não tem como não saber que é ele. Os curiangos na beira da estrada pulam pra dentro do mato — coisa que eles nunca fazem, que eles voam pra longe quando o carro passa ou a gente passa a pé, nuémes? — mesmo sabendo que ele não vai passar por cima deles por ele estar no meio da estrada. A terra mês treme de um jeito estranho. Se colocar os ouvidos colados no chão, vai ouvir sons esquisitos que a senhora nunca imaginou que tivesse."

Eu estava assombrada. Definitivamente era muita coisa a se aprender sobre Renan, eu que pensava conhecê-lo bem melhor agora. Eu disse a Adriano que isso me lembrava um texto que eu tinha lido certa vez de uns autores marxistas russos sobre sociedades secretas na Nigéria, de um livro chamado Religiões Africanas — Tradicionais e Sincréticas. As tais sociedades empreendiam procissões cerimoniais por ruas obscuras de Lagos e as pessoas na rua tinham de procurar suas casas rapidamente, caso estivessem no caminho de tais procissões. Restaurantes e comércio tinham suas portas fechadas por batedores bem antes que a procissão passasse por aquela rua. As pessoas apanhadas na rua morriam estranhas e horrorosas mortes mesmo que não fossem tocadas por nenhum dos membros da procissão. Como que por autosugestão, na verdade, as pessoas morriam por si sós. Em Minas Gerais mesmo, expliquei a ele, tinha muito a ver com o fechamento do comércio em dias de enterro quando o cortejo fúnebre passava em frente. Adriano ouvia o que eu dizia atentamente e agora ele parecia assombrado por sua vez.

"Mas nossa, é muito parecido com o que acontece com quem passa perto do Renan nessas noites. Não é tão violento assim como a senhora falou, e quem é nativo de Taurinos não morre nem nada, mas topar com ele na estrada à noite nessa situação é bem esquisito mesmo. Dá uns calafrios medonhos, uns pesadelos fodidos à noite, a gente acorda parecendo que está sufocado, suando pra raio…"

"E ele sempre espera sete dias para…"

"Nem sempre", Adriano foi rápido em cortar minha fala, "se ele já tiver avisado uma vez, já era. Se o forasteiro ofender, seja alguém na cidade, seja ele mesmo, não tem nem aviso, quanto mais perdão. Aí, ele faz o forasteiro sofrer o diabo antes de… bom, a senhora sabe. Às vezes demora uma noite inteira na mão dele. E, bom, se já é ruim para um nativo da cidade cruzar com ele na estrada, imagine como deve ser para um forasteiro. Creio em Deus Padre…"

Houve uma pausa. Sem saber o que dizer, ofereci uma xícara de café com leite a Adriano, fui colocando o pão, a manteiga da roça e outras coisas na mesa. Minhas idéias já eram um turbilhão desde anteontem, agora ficaram piores, muito piores. A descrição que ele fazia de Renan era muito próxima da que se poderia fazer em muitas cidadezinhas no interior do Brasil de uma mula-sem-cabeça. Comentei com ele que o que ele me dizia parecia a descrição de uma lenda e de como era estranho que uma lenda, ou uma tradição tivesse começado em fevereiro deste ano, mês em que vim para cá pela primeira vez. Uma lenda, uma tradição de menos de três meses??? Adriano não pareceu entender o que eu queria dizer com aquilo ou não soube exatamente o que responder. Expliquei que era como tinha acontecido com a própria cidade, eu criando um passado milenar para a cidade dentro de um Brasil ainda neolítico. Ele aparentou entender melhor as coisas explicadas assim, e, de mais a mais, realmente era mais ou menos isso mesmo.

Levantei a questão dos dois homens que tinham sido mortos e de como isso tinha se refletido no mundo físico em Santos e São Vicente. Adriano arregalou os olhos, como se aquilo fosse para ele novidade grande. Disse que não sabia disso. Mostrei os emails da Meire a ele também. Ele perguntou se eu os tinha mostrado ao Renan e eu disse que sim.

"Grande Mitra, isso é codeloco!", ele me olhava, sem acreditar, "a senhora perguntou sobre isso ao Andrés?"

"Ainda não, mas vou perguntar. Mas o que não bate com o que você está me dizendo sobre a Polícia Obscura é…"

"D. Stella, não fique aí dizendo esse nome, uma hora a senhora acaba falando isso do lado dele e já viu, né."

"Bom, não bate com que o você me disse sobre ele fazer as coisas à noite. Veja, o primeiro desses dois homens foi morto na hora do por-do-sol, o outro foi morto na praça em plena luz do dia…"

"Esses eram especiais, acho eu, né? Pelo que a senhora falou agora pouco, eles conheciam a senhora, não? Não sei que diferença isso pode fazer, mas acho que é isso. Pelo menos, não consigo pensar em nenhuma explicação melhor."

Na falta de uma explicação melhor, fiquei com a de Adriano. Poderia ontem ter perguntado ao próprio Renan, mas minha maldita memória me trai sempre que eu mais preciso dela. Sempre foi assim, me parece.

Laptop aberto. MSN aberto, instant messenger esperando por ninguém que imaginasse que eu ainda estivesse viva. Deixei meu status online, para que todos pudessem ver. Será que isso poderia inaugurar uma nova era de comunicação entre os vivos e os mortos?

Noite a perder de vista lá fora. O céu está pontilhado de estrelas e a Via Láctea gira preguiçosa seguindo a rotação da Terra. Ouço um cavalo na estrada, de longe. Renan? Ninguém cavalga por aqui à noite, disse-me Adriano. Saí para a noite lá fora, deixei o alpendre em direção à estrada de terra. O som do cavalo veio num crescendo lento, não era um galope, mas um trote firme de quem vem num passo decidido. Será que finalmente vou presenciar a passagem da tal Polícia Obscura? Só mesmo nesta cidade louca pais deixariam um filho de dez anos cavalgar pelos limites de município sozinho a uma hora dessas. Que dirá as outras coisas ainda mais insanas que ele faz. Mas isto é Taurinos, e em Taurinos, mesmo sendo em Minas Gerais, as coisas são diferentes.

E o cavalo se aproximou de onde eu estava. Não levaria muito agora até que entrasse no meu campo de visão. E quando finalmente apareceu, não era Renan, pelo menos não parecia de onde eu estava ser tão baixo quanto ele. Levou algum tempo até que eu o reconhecesse; vi que era "sêo" Danilo quando ele parou o cavalo perto de mim. Ele não esperava me ver na estradinha àquela hora e ficou tão surpreso quanto feliz em me ver. Apeou do cavalo sorrindo e trocamos cumprimentos. Fazia um tempinho que eu não o via. Me disse que achou a casa muito bonita.

"A senhora não tem ido mais em casa, então passei para lhe retribuir as visitas", ele disse com um sorriso, "tem tido saudades do meu café?"

"Com certeza. Eu planejava lhe visitar em breve, mas que bom que veio conhecer a minha velha casa nova."

Mostrei a ele toda a casa e ele admirou cada detalhe. Elogiou demoradamente o apuro de Duílio e Adriano ao construir a casa. Na cozinha, coloquei água para ferver e enquanto enchia o coador com pó de café, conversávamos sobre o assunto desses últimos dias. Como Adriano, ele ficou espantado ao saber que coisas aconteceram em Santos que ecoaram as ações de Renan por aqui.

"Polícia Obscura, não é?", eu perguntei. A reação dele foi a mesma de Adriano. Disse que não era um nome muito bom para se utilizar.

"O menino fica meio agitado quando ouve isso, sabe? Um dia jogou uma garrafa no Célio da Dica lá no bar do Zé das Profundezas quando ele brincou com esse nome. Agora, o mais esquisito foi que o Renan estava na praça e o cara no bar e ele veio da praça só pra jogar a garrafa no Célio. Tiveram que levar o Célio pra Varginha na mesma hora. Como ele podia ter ouvido de tão longe?"

Eu estava espantada, mas insisti em testar o potencial da Polícia Obscura.

"Mas ele não me machucaria, não é? Se ele faz tudo isso para me proteger…"

"Capaz! Não machucaria, mas ele poderia lhe dar um tempo bem quente, pior do que se tem quando se fica no caminho dele pela estrada. Eu já o encontrei numa das estradinhas de terra perto dos limites de município. Aliás, não é muito bom ficar por ali porque ele sempre vai patrulhar é nos limites. Passei a noite inteira tendo uns pesadelos medonhos, suava pra raio, salivava pra raio; cheguei até vomitar e a senhora bem sabe que ele me tem o maior respeito. Agora, as pessoas são exageradas também, basta sentar na estrada ou vir para o canto e fechar os olhos. Dá uma sensação estranha, mas não é nada comparado a ver ele passar por você. Ele vê logo que é nativo daqui, não mexe com a pessoa."

"Você ficaria no caminho dele de novo?"

"Naquela noite não teve como evitar, porque eu confundi o som do cavalo dele com o meu próprio. Não me pergunte como uma coisa de louco dessa aconteceu, deveria ter dobrado o som das pisadas do cavalo, mas eu devia estar bem distraído. Quando percebi, ele já estava passando por mim. Mas se eu puder evitar, não fico não, creio em Deus Padre!"

"Ele se desculpou com o senhor, "sêo" Danilo?"

"Renan não é de pedir desculpas, "sá" Stella. Passou por ele, azar. Eu lhe disse uma vez, ele não é brinquedo. Nós tínhamos nos conhecido há pouco tempo, lembra? Lhe disse que o menino era mau. Eu não estava brincando nem exagerando. Sei o que digo e porque digo."

Quando eu colocava o café pronto sobre a mesa, o ruído característico do MSN nos interrompeu a conversa. Era a Meire entrando online! Eu tenho a minha amiga online no MSN, nem acredito. E nem ela, pelo tom nervoso das palavras que enviou.

"Quem é você??? Como entrou nesse perfil?", era a mensagem seguida de um emoticon furioso. "Sêo" Danilo pouco entendia de emoticons, mas sabia ler muito bem. Ele olhou para mim com um olhar sério, como se compreendesse bem o que estava se passando do outro lado.

"Meire, sou eu, sua amiga Stella", digitei apressada, "pode te parecer muito esquisito, mas sou eu mesma, acredite…"

"Seu vagabundo, hacker de uma figa! Vim do enterro da minha melhor amiga esses dias. Como pode fazer uma coisa dessas? Deixe o perfil dela em paz, isso não se faz, seu desgraçado!!! Eu vou te denunciar no MSN, seu filho de uma puta!"

Não parei para pensar na maravilha de poder estar me comunicando com ela nessa situação. Não tive tempo. Ela não me daria tempo, nem eu poderia culpar minha amiga por reagir assim. Senti uma imensa vontade de chorar. De tudo o que já tinha me acontecido nessa longa e louca jornada por aqui, jornada que agora não terminaria nunca mais nem iria mais a lugar algum. As frases de Meire me devolvem a condição de recém-falecida que me atormenta por esses tempos e que tento desviar de minha cabeça até agora sem sucesso. "Sêo" Danilo pareceu triste ao me ver assim, mas procurou ajudar.

"Tente dizer a ela alguma coisa que só vocês duas saberiam e ninguém mais, "sá" Stella. Talvez isso ajude. É mesmo difícil acreditar que isso está acontecendo, deve estar sendo bem difícil para ela, coitada."

Gostei da idéia — por que não pensei nisso antes? — e digitei rápido:

"Você não vai me perguntar se o Paulo voltou para casa, como você sempre faz quando ficamos um tempo sem nos ver?"

Meire está digitando uma mensagem, diz o status embaixo da janela de conversação. Parecia uma eternidade.

"Como pode saber de uma coisa dessas? Leu no blog de minha amiga, não foi? Porque eu li isso lá. Como pode, ainda pesquisa para poder atazanar a vida de gente que já está se sentindo arrasada o bastante!"

Desanimei. Falar da nossa briga sobre o menino mexicano não resolveria. Estava no blog também. Me arrependo do dia em que mostrei meu blog a ela. Deveria tê-lo mantido em segredo. Quando eu já me preparava para desistir, um raio de luz me iluminou.

"Meire. Requisita a minha webcam. Vou te mostrar quem eu sou de verdade."

"Com certeza. Quero ver a cara do vagabundo que está fazendo isso comigo e com a memória da minha melhor amiga!"

Outra eternidade. "Sêo" Danilo olhava para mim, entre curioso, interessado e solidário. Queria saber como aquilo terminaria. Eu, muito mais que ele talvez. Depois de um tempo que parecia uma era geológica, a requisição dela veio. Dei permissão e esperei. A webcam me mostrava e mostrava o interior da cozinha. Requisitei a webcam da Meire e logo veio a permissão. Uma Meire abestalhada com o que a webcam mostrava apareceu na tela em frente. "Sêo" Danilo só fazia se admirar das coisas da tecnologia que não entendia e não parecia disposto a aprender. Uma vez me confessara ter medo da profusão de botões e comandos que o computador ostentava. Meire conhecia aquele mundo dos computadores, mas não o mundo que sua webcam mostrava. Para ela, eu estava em Santos em minha cozinha. Pelo áudio da webcam, expliquei a ela que era a minha cozinha, mas não era mais Santos. Ela quis saber como isso poderia ser possível. Eu disse a ela que era uma longa história.

"Eu vi, eu vi você deitada naquela caixa horrível, Stella", o rosto dela tinha lágrimas rolando, "vi quando desceram aquilo pra dentro da terra, eu juro que vi."

"Eu sei que viu, Meire. Eu acredito em você. Fico feliz de saber que agora você também acredita em mim."

Foi difícil explicar a ela a minha condição, nem viva, nem morta, nem zumbi, suspensa numa Minas Gerais paralela ao tempo e espaço em que ela vive. Perguntei a data no computador dela. Ela disse que era dia 6 de abril. Pensando estar adiantada a ela no tempo, perguntei se era abril de 2009. Ela me disse que era abril de 2010. Olhei para "sêo" Danilo e ele me encarou assombrado com tudo aquilo. Não fosse ele mineiro, estaria pensando que estava ficando louco em ver que eu estava me comunicando com uma pessoa no futuro. Expliquei a ela que estávamos em 2009 e ela pareceu repetir no futuro o assombro de "sêo" Danilo.

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Rádio Universal: Polícia Obscura

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