quinta-feira, 23 de abril de 2009

Resolução

Chegamos ao topo da montanha (ou deveria dizer do mundo?). Eu estava novamente deitada no banco de trás, só soube que tínhamos chegado pelas vozes cansadas de Duílio e "sêo" Danilo. Não demoraria muito para que chegassemos à fazenda Taurinos. Algo me preocupava além de tudo o que deveria me preocupar no momento e por toda a eternidade agora. Não me lembrava o que era, ainda imersa no oceano de sensações e memórias das coisas da vida que agora a morte física levou embora.

O vozerio das incontáveis pessoas da cidade acampadas na fazenda Taurinos vinha num crescendo dentro da paisagem de sons agora tão familiares. Eu, que nunca havia conseguido formar uma família, tinha agora incontáveis parentes nesta cidade minúscula de Minas Gerais.

Andrés disse que eu não levantasse. O carro parou em frente à multidão que se acotovelava para ver primeiro o resultado de tudo aquilo. Ouvi as vozes aterrorizadas dos que supunham que os tres tinham retornado sem mim, provavelmente já esperando o Apocalipse se abater sobre a cidade como fogo e enxôfre vindos do céu. Ouvi a voz de Guilherme lá fora, se aproximando do carro.

"Então, irmãos… É assim que termina?", a voz parecia desesperada.

Aquilo foi a gota d'água. Eu disse a Andrés que esse não era um momento para brincadeiras. Me ergui e mesmo com a dificuldade que sempre tenho em abrir uma porta de carro, consegui abrir o carro e saí para a noite lá fora.

"Vem aqui, seu moleque", e eu o abracei em meio a uma gritaria que nunca antes tinha ouvido, o som de vozes de centenas e centenas de pessoas para quem a cena representava um renascimento para a cidade.

"Vida!", Andrés gritou a plenos pulmões, pulando sobre a traseira do carro, muito para desgosto de seu pai, que chegou perto para avaliar os danos, "Vida!", respondeu a multidão frenética, com um som de atordoar os ouvidos e com rojões de explodir os tímpanos. A cena me tocou profundamente. A vida eterna pela qual tantos tinham esperado no curso de milênios completamente em vão era agora algo palpável pronto a fazer parte importante da vida de todos dentro da cidade. Será que é assim sempre que alguém morre?

Eu já não tinha braços para abraçar tanta gente. Estava morta — sem trocadilho — de cansaço e queria entrar na horizontal o mais rápido possível. Duílio tinha concluído o relatório de danos e conversavam com "sêo" Danilo, o prefeito e alguns vereadores. Vi e conversei com cada um dos meninos. Renan tinha aquele incômodo sorriso luminoso todo espalhado pela cara dele. Adriano e Andrés conversavam livremente e sem parar. Guilherme ficou agarrado em mim o tempo todo e ainda estava. Anderson ria sem parar e me alugava com os detalhes da viagem noite adentro. Bruno… Onde estaria ele se não com os outros nesse momento? Bruno. O motivo de minha preocupação. Numa dessas perdemos Arthur.

"Cadê o Bruno?", perguntei a Adriano de súbito, fazendo com que o Guilherme despregasse de mim e encerrasse seu processo de osmose.

Os meninos olharam em volta. Nem sombra de Bruno em parte alguma, "mas ele estava com a gente agorinha mesmo, até o carro chegar", disse Adriano intrigado, "para onde iria?"

"Acho que sei para onde ele foi", eu disse, "provavelmente para casa. E nós temos que ir falar com ele agora."

"Ah, vai ter bastante tempo, D. Stella, a gente pode esperar até o dia claro", disse Guilherme. Olhei para ele e disse, "eu não tenho dúvidas de que a gente pode esperar até o dia claro, Guilherme. Minhas dúvidas são se o Bruno pode esperar até lá."

"Irmãos, escutem. O Bruno, não direto, mas do jeito dele ele disse que ia…" e como o próprio Bruno, Adriano hesitava em ser objetivo, "Vocês sabem, essas coisas que se fazem quando a gente não anda muito satisfeito com a vida…"

Adriano era quem dirigia o carro desta vez com todos os sete membros tensos da Sociedade Antiga dos Taurinos dentro. Tudo estava claro como eu nunca tinha visto. Mesmo dentro da noite tudo se revelava muito claro, a paisagem rasgada pelos faróis do carro, os curiangos levantando vôo assustados da margem da estrada de terra, os meninos em cores reais, ligeiramente saturadas para aquele escuro, uma clareza de visão que a miopia tinha roubado de mim na infância e que a inconsciência do coma só tinha feito agravar. A surdez de que eu tinha sido vítima após a cerimônia havia muito era coisa do passado. Tinha sido substituída por algo como audição demais. Uma audição tão sensitiva e direcionada, tão similar à concentração mental para o bem e para o mal, como tudo mais por aqui.

Eu tinha me esquecido do que passou com Bruno anteontem e de como me prometera ficar alerta. Eu sabia que ele não faria nenhum movimento enquanto eu não fizesse o meu e eis que eu tinha acabado de fazer o meu movimento. Mas ele não estava jogando comigo. Ele estava sincera e inequivocamente desesperado, isso eu pude ver muito bem no Mithraeum (e não fui a única). Ele sabia o que todos queriam e por isso estava desesperado. Eu teria de ajudar o menino o quanto pudesse. Ou muito mais do que isso.

Luzes todas acesas na fazenda Pinho, como em todos os lugares de Taurinos nesta noite de Renascimento, mas há um circular nervoso de pessoas em torno. Definitivamente algo raro está se passando no lugar.

Assim que nos viu encostar o carro, a mãe do Bruno veio falar conosco horrorizada, "ele não deixa ninguém entrar", nos contou que ele disse que estava pensando muito na vida, mas que o pai foi encontrar o filho com o queixo apoiado no cano de um rifle dentro do paiol. Ele estava lá desde que viu que chegamos a Taurinos e foi para casa. O pai não pôde chegar mais perto, com medo de que ele disparasse, o dedo do garoto coçando no gatilho.

Luz filtrava para dentro do paiol quando entrei sozinha. Não se ouvia um único som lá dentro, apenas um certo vozerio fora, dos que tinham parado na porta. O paiol era enorme, mas não levei muito tempo até que eu o visse em cores tão vivas como quando vi os outros meninos e os moradores de Taurinos. Estava sentado, pernas cruzadas, ainda apoiado pelo queixo no cano do rifle. Lancei um olhar em volta e vi a caixa de munição largada não longe dele. A clareza de visão que eu agora tinha só fazia tornar a cena mais estranha, me proporcionando vários arrepios.

Ele não olhava em minha direção, mas era óbvio que estava consciente de minha presença ali. Eu dei um passo a mais na direção dele.

"A senhora pode acabar se machucando", ele disse numa voz serena, difícil de se achar num momento de reflexão como aquele, "isso espalha um monte de chumbo pra todo lado, sabe…"

Caminhei mais dois passos para a frente.

"Eu não quero machucar a senhora…"

"Eu não vim aqui dizer a você que não deve fazer isso, Bruno. Eu vim aqui dizer a você que deve fazer o que quiser."

Ele não esperava por aquilo. O menino ficou me olhando confuso. A mente dos homens é tão certinha, qualquer coisa minimamente fora do lugar parece tirar o chão de sob os pés deles. Eu me sentei a uma distância dele, distância em que eu não podia alcançá-lo. Eu queria que Bruno se sentisse seguro.

"Eu vim aqui dizer a você que há alguém em Taurinos que apóia você, seja qual for a decisão que tomar. Mesmo uma decisão como essa. Eu quero estar com você aqui nesse momento. Não quis que nada disso acontecesse, mas aconteceu. Eu sou a responsável por tudo o que lhe aconteceu, Bruno. Tomei uma decisão importante algumas horas atrás e sabia que não poderia voltar atrás. Eu tive Andrés a meu lado quando tomei minha decisão. Por isso, não quis que você estivesse sozinho na sua hora de decidir. Por isso estou aqui. Porque eu te entendo, Bruno. Porque eu mesma acabei de fazer o que você pensa em fazer consigo mesmo agora."

Ele me olhava em silêncio, num desespero calmo, com uma tranquilidade paradoxal e enganosa no indicador que acariciava o gatilho da medonha máquina de matar na qual ele apoiava o próprio queixo. Provavelmente a mesma que ele usou para explodir a cabeça do animalão que atacou seu pai durante a Lei dos Touros, um pai que, contra toda a sua vontade, não tinha como retribuir sua ajuda naquele momento.

"A senhora não se importa, não é?", e a primeira lágrima escapou do olho esquerdo dele, furtiva, mas livre de sua prisão afinal.

"Você já sabe que vida é essa que estamos começando aqui em Taurinos e por isso não quer estar incluído? Ou você está fazendo isso só para saber se eu me importo ou não?"

Ele ficou calado. Confuso. Olhava para mim e para o cano do rifle em perspectiva debaixo do seu maxilar inferior alternadamente.

"Que vida é essa?", ele perguntou enfim, "que a gente não é como gente normal que cresce e tem filhos. Não fica doente, não fica mais velho, não morre e fica tudo congelado vivo. Que vida é essa?"

"A vida que se ofereceu para nós. A única que se apresentou entre tantas outras que nem apareceram. É essa vida, que se ofereceu, que temos de agarrar. Andrés me mostrou isso de uma maneira que eu não pude ignorar. O apego dele à vida foi o que me motivou a voltar. Eu não disse isso nem a ele, mas ele sabe tudo o que se passa, então agora ele sabe disso tanto quanto nós. O que me motivou a voltar foi o povo da cidade, foram os membros da Sociedade Antiga dos Taurinos, foi você. Foi um povo que há pelo menos há quinze séculos vem esperando por esse momento. Quinze séculos não podem estar errados. Nem mesmo com a tonta aqui num dos papéis principais. Eu voltei porque queria estar com vocês não importava que vida fossemos ter. Porque eu queria estar com vocês. Não tire você de mim. E, principalmente de sua família e de seus amigos. Mesmo seus amigos, do jeito torto deles, precisam de você. Essa é a vida que se ofereceu para nós. Faça o que quiser, a decisão é toda sua, mas por favor, não a recuse."

O dedo dele parecia mais nervoso quanto mais eu falava. Temendo o pior, procurei uma música em meu mp3 e fiquei espantada ao vê-lo tão prestativo e diligente, tão rápido pude encontrar o que procurava. Joguei o mp3 na direção dele e disse a ele que ouvisse uma última canção antes de ir. Ele o recusou, desconfiado e eu me levantei devagar e fui caminhando na direção da saída. Ainda vi quando ele se sentiu seguro, colocou os fones, acionou o player e começou a ouvir a música.



"Há pessoas que precisam imensamente de você, seja você quem for, seja só por seu amor. Há pessoas que precisam imensamente de você. Há pessoas que não sabem mais como fazer. Há pessoas que não fazem por querer. Há pessoas que não querem nem saber. E são pessoas que precisam imensamente de você."

Há Pessoas Que Precisam Imensamente De Você, escrita por João Ricardo.




Lá fora, fui cercada pela família (que provavelmente ainda ignorava o fato de que Andrés conhecia os eventos presentes do lugar como a palma da mão). Eu disse que eu tinha feito todo o possível e que o menino precisava de um tempo para pensar. Seria inútil tentar forçar Bruno a qualquer coisa; na posição em que estava, qualquer movimento mais brusco poderia ser ruim. Eu sabia o risco que corria; mas infelizmente nada podia fazer a não ser respeitar a vontade dele. Tudo tinha a ver com o que as pessoas pensam ou esperam de momentos assim. O menino não corria nenhum risco real. Porque, como ele mesmo disse, "a gente não morre", ele não iria morrer mesmo que puxasse o gatilho. Eu não estava sendo cruel com os pais dele, estava simplesmente pedindo a eles que dessem ao menino tempo de refletir. Coisa a que aparentemente ele não teve acesso desde o início desta história.

Foram minutos e minutos de espera que mais pareciam semanas, o medo e a apreensão de todos só fazia crescer, um crescendo agoniante, aflitivo. Quando eu me preparava para ir lá dentro de novo, um carro parou, a pouca distância de nós. Renan, Andrés e Adriano foram os primeiros a espichar o pescoço. Eu mesma agora podia sentir o que eles disseram ter sentido. De dentro veio seu Horácio, um sorriso imenso no rosto, como o menino que um dia ele tinha sido e que recebeu da vida um presente: a porta do passageiro se abriu de dentro e nós finalmente todos juntos pudemos sentir a presença de um amigo.

Era Arthur. Ele estava de volta. Quem acreditaria?

Arthur passou rapidamente pelos idiotas embasbacados em que nos transformamos ao vê-lo de volta vivo e em cores tão vivas, "vocês têm todo o tempo do mundo para esperar; parece que o Bruno não", e entrou sozinho no celeiro. Houve um silêncio que pareceu eterno e depois os gritos de Bruno vindo de dentro do celeiro fechado. Num primeiro momento, apavorados, não nos demos conta do que estava havendo. Depois, ouvimos os gritos de quem encontra um amigo que havia muito não se via, gritos de um Renascimento que em poucos lugares se experimentaria, eram explosões de quem teve coisas demais passando pela cabeça nos últimos dias.

Meninos são geralmente rudes com essas coisas. Muitas vezes não sabem motivar os amigos, jogam muito com a sátira e a depreciação para atazanar uns aos outros. Isso por vezes cria uma cultura que impede que um tenha sensibilidade para motivar o outro.

Os dois emergiram do celeiro para os olhos maravilhados de todos nós. O rifle aparentemente tinha sido largado lá. Ele foi abraçado pelos pais emocionados, tudo aquilo. Os outros meninos demoraram a se aproximar, mas quando o fizeram, foi aquela lambança de sempre. Jogavam o Bruno para cima, dessa vez com o auxílio de Arthur que, segundo Andrés, minha morte trouxe de volta do reino da morte. Bruno me pediu até uma cópia do mp3 que tinha acabado de ouvir, quando me devolveu o aparelhinho. Ele teve o seu Renascimento particular ali. Como um batismo (quase) de sangue de sua nova vida. E do modo mais fantástico possível. O que mais ele poderia querer da vida, afinal?

Mais longos que a vida | Novo tempo

Rádio Universal: O Dia Da Criação

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