sexta-feira, 24 de abril de 2009

Novo tempo

Acordei em meio à escuridão do meu quarto com a voz suave de Andrés a meu lado. Andrés dizia que tinha fechado as janelas do quarto para que eu pudesse levantar. Achei estranhíssimo e perguntei porque. Ele respondeu que era a primeira vez que eu iria usar meus olhos de fato desde que eu tinha morrido.

"Mas eu os usei ontem o tempo todo, Andrés", eu disse, desconfiada e estranhando o tamanho dele mesmo dentro da escuridão do quarto.

"Ontem era de noite quando a senhora saiu do seu corpo, lembra? Tudo estava ainda bem confuso, mais a confusão que aconteceu com o Bruno…"

Eu disse que era verdade, mas que mesmo ontem eu fiquei surpresa, já que eu tinha uma visão muito clara de tudo que acontecia. Ele me disse que isso não era nada, agora que eu tinha finalmente descansado a noite inteira. Então, o que ele queria dizer era que eu teria de treinar meus olhos para enxergar esse novo dia que Taurinos e eu vivemos.

Ele me pediu que eu sentasse na cama e olhasse em volta. A visão era ainda um pouco embaçada, obscurecida pelo escuro do quarto. Notei alguns detalhes familiares, mas estava entretida demais pela voz de Andrés para prestar mais atenção. Ele se dirigiu até a janela e disse que iria começar a abrir as cortinas pouco a pouco. Eu teria que continuar simplesmente olhando em volta e alertá-lo caso sentisse ofuscamento ou dor nos olhos.

"Está pronta?"

"Sim."

Devagar, ele abriu as cortinas (que me eram estranhamente familiares) deixando um dedo de espaço entre elas. Um formidável facho de luz solar entrou pela abertura, fazendo meus olhos doer de forma que eu nunca tinha sentido. Ao ver minha reação e minha careta, ele me pediu calma e que eu não fechasse os olhos.

"Abra os olhos de novo, devagar, mas fique firme com eles, D. Stella. Senão, a senhora não acostuma nunca com a luz. Vamos tentar."

A luz me cegava. Talvez a mesma luz que eu tinha visto dentro do carro no momento de minha morte. Fiz um esforço enorme para manter os olhos abertos. Andrés abriu mais um dedo as cortinas. A luz era agora um borrão imenso em minha frente, fazendo meus olhos lacrimejarem intensamente,
"coragem, D. Stella, a senhora já fez coisa muito mais difícil…" e eu tentei a custo manter os olhos abertos. O borrão começou a se dissipar muito lentamente. Ele pediu que eu avisasse quando a visão começasse a ficar mais clara. E assim, ele foi abrindo a cortina aos poucos, revelando todo o interior do quarto.

Que era o meu quarto. Não o meu quarto na fazenda Taurinos, mas o meu quarto em minha casa em Santos! Estou embasbacada, não consigo acreditar. Olho em volta, todos os detalhes, objetos, meus livros de psicologia, psicanálise, O Homem E Seus Símbolos, um dos meus livros favoritos de Jung, minhas cartas Zener sobre a cabeceira, meu laptop, tudo! Terá sido tudo um sonho, meu Deus?!

Mas se foi tudo um sonho, o que é que Andrés está fazendo no meu quarto?

"A senhora gostou? Meu pai e meu irmão quem construiram durante a noite, junto com a senhora. Todo o material daqui, até os tijolos, foi tirado dos sonhos que a senhora estava tendo. Seus livros, suas coisas pessoais, seus quadros, suas roupas…"

"Mas não ouvi nenhum barulho de madrugada!", eu estava admirada.

"Mineiro trabalha em silêncio, não é isso que diz o ditado?" e ele piscou e me deu um sorrisinho maroto.

Nem parei para questionar como eu tinha vindo parar aqui, já que me deitei em meu quarto na fazenda Taurinos. Eu já deveria havia muito ter me aposentado dessa fase de não acreditar. Quem sou eu agora para não acreditar? Depois de tudo o que vivi (e morri) aqui em Taurinos, quem sou eu para não acreditar? Mas alguém teria de estar na minha pele para acreditar. Posso até culpar aqueles que me chamam de euclidiana. Mas não culpo aqueles que me chamam de mentirosa.

A dor e o ofuscamento das vistas haviam passado de todo, substituídos pela visão mais clara do mundo. Vivendo agora no mundo de Mitra, o deus da luz, minha visão ia além do alcance de uma maneira que nunca supus que pudesse existir. Então, eu comecei a olhar assombrada para Andrés. O rosto dele, seus óculos, os cabelos, as roupas, os tênis, tudo vinha à minha visão com uma nitidez descabida, agressiva, violenta até, como se vê-lo com os novos olhos que eu tinha agora me mordesse. Era maravilhoso e assustador ao mesmo tempo. A beleza daquele menino que um dia eu tinha notado em minhas observações era nada perto daquilo que eu estava vendo agora. Ele sorriu a princípio, mas começou a se sentir embaraçado com os olhos que não paravam de olhar para ele. Eu estava em estado de hipnose, mergulhando dentro da visão que eu tinha dele. Tantas vezes vi aquele menino perto de mim, mas não era aquilo que eu tinha agora em minha frente. Não existem pessoas assim. Não, não existem pessoas assim.

"O que é você, um anjo?", eu perguntei, vacilante, aparvalhada pela visão dele na minha frente.

"Se a senhora puder tirar os olhos de cima de mim, eu agradeço. Não gosto que fiquem olhando pra mim como se eu fosse bicho de zoológico."

"Você não tem nenhum direito de me pedir isso, moleque. Fosse seu irmão, Anderson ou qualquer outro, a coisa mudava de figura."

Ele se sentiu subitamente intimidado pelo meu modo de falar. Sentiu minha zanga, ficou ali entre o silencioso, o embaraçado e o desapontado, já que ele parecia pretender que a casa e não ele fosse o centro das minhas atenções. Mas ainda demorei muito olhando para ele, sem conseguir acreditar.

Andei alguns passos para trás para vê-lo por inteiro. Quanto mais eu olhava para ele, mais eu queria olhar. Comecei eu mesma a me sentir incomodada, mas não conseguia parar de olhar para ele. Andrés começou a bater levemente o pé, como sempre fazia para demonstrar sua santa impaciência.

Finalmente, para alívio de Andrés, consegui voltar o olhar para o meu quarto. Cores, texturas e detalhes saltavam aos olhos como nos melhores experimentos de Aldous Huxley com a mescalina e Albert Hofmann com o LSD. Andei pela casa inteira, a saudade do meu cantinho e o meu assombro tanto com os detalhes quanto com a nitidez e cor de tudo o que eu via eram evidentes aos olhos de Andrés que ficou sorrindo e balançando a cabeça todo o tempo.

"A senhora vai ter todo o tempo do mundo para curtir a sua casa. Venha, vamos tomar café na Taurinos, a mãe está esperando", ele pegou meu laptop e o levou, não sem o meu olhar espantado a seguir os passos dele.

Duílio e Adriano não tomaram café conosco. Segundo Aparecida, "passaram a noite em claro, vão dormir até bem tarde hoje". Eu não acreditava no que me ocorria desde que acordei. A minha casa dentro dos limites da fazenda Taurinos, bem distante da casa grande da fazenda, mas dentro da fazenda. Como se minha casa tivesse sido relocada, tijolo por tijolo de Santos para cá. Os mesmos detalhes e até as mesmas pequenas imperfeições. A vista da montanha e do céu azul, absurdamente azul, eram intimidadoramente belas. A paisagem do cerrado com suas microflores criando miríades de pontos coloridos em toda a parte. Eu olhava para Aparecida e aquela precisão dos detalhes me assolava de novo, como quando tinha acontecido com Andrés. Ele disse à mãe que eu estaria agindo estranhamente por uns dias porque levaria tempo até me acostumar a olhar as pessoas da cidade novamente. Explicou da riqueza quase infinita de detalhes, cores e nitidez que eu experimentava e disse que seria uma fase difícil, mas de descobertas fascinantes para mim. Aparecida pareceu entender bem o que ele dizia, embora ela mesma não pudesse saber como era morrer. Se já o tinha feito, em algum ponto remoto do passado, certamente não se lembrava de como tinha sido. Ela se apressou em ser solícita e me fazer sentir confortável para fugir da situação de estranheza que sentia ao me ver olhando para ela e para o filho daquela maneira.

"Mas, D. Stella, tire café. Tem leite, pão de queijo, manteiga da roça, broa de fubá, a senhora já sabe, tire à vontade, por favor."

"Eu não estou acreditando", eu tinha dito à Aparecida, "cada detalhe, cada defeito, tudo como era" e ela era toda "pois é, acho que vamos ter que acreditar no poder da imaginação a gente queira, quer não, ué" e riu simpática e alegre.

Aparecida era uma pessoa sábia. Se ela tinha certeza do que fazer dessa sabedoria em algumas situações da vida, eram totalmente outros quinhentos. Mas a ciência das coisas estava nela, como estava nos outros. Como estava em mim, sem que eu soubesse, escondida todo o tempo.

A mesa era aquela fartura de sempre que se vai encontrar nas mesas mineiras remediadas. A comida era tridimensionalmente bela, mesmo os rótulos simples e chinfrins de produtos feitos ali no interior de Minas Gerais ganhavam em nitidez e detalhes de maneira espantosa e enchiam meus olhos de formas e cores. Enchi minha caneca de café e leite e os alimentos pareciam vivos na mesa, como se estivessem prontos para saltar em cima de mim. Andrés completou sua caneca com café, tascou um pão de queijo da terrina mais próxima — lendas vivas desta cidade movidas a pão de queijo — abriu o laptop e o Firefox — meu favorito; coincidência, não? — e outro programa que não vi qual era. Não interferi, mas Aparecida pediu ao filho que desligasse o laptop "agora é hora de comer e conversar um pouco, não é hora de games"; Andrés apenas sorriu e disse que isso tinha a ver com a nossa viagem de vinda na primeira vez que estive em Taurinos, viagem em que ela, Aparecida, estava presente. A mãe de Andrés ficou intrigada.

"Do que é que você está falando?"

"Eu estou falando que o Google Earth não esqueceu de nós, mãe", ele olhou para Aparecida e para mim, sorrindo.

E, sorrindo assim, ele virou a tela de LCD para nós. O outro programa era o que ele acabava de mencionar. Ele mostrava a cidade de Taurinos, as casas, tudo numa resolução que eu não vi em fotografia aérea de São Paulo. Aparecida se espantava, "mas como é que é isso, eu tento localizar a cidade pra raio nesse programa, e nunca que ela aparece?"

"Isso foi antes de D. Stella… Bom, a senhora sabe, mãe", ele explicou, meio sem jeito. Eu tive que rir, quase um riso nervoso. Do embaraço de Andrés e daquelas coisas espantosas acontecendo na minha frente. Eu mesma tinha tentado tudo pela Internet, nome, coordenadas, nunca tinha encontrado a cidade.

"Nesse momento", continuou o mineirinho "o Bruno está abrindo o Google Earth também. Ele está vendo Taurinos de cima, como nós. Agora ele saiu para onde está o telefone. Está ligando e parece ser para cá."

E o telefone começou a tocar. Assombrada, a mãe de Andrés foi atender. Pela conversa, vi que não poderia ser outro senão o próprio Bruno. Aparecida me chamou, olhos do tamanho de pires, ainda não acostumada às visões do filho e me passou o fone, dizendo que Bruno queria falar comigo.

"A senhora não vai acreditar. Estou vendo a cidade no…", disse o menino do outro lado do fio, na fazenda Pinho.

"…Google Earth, não é?", completei.

"A senhora acredita? Abre o seu laptop, conecta…", a voz dele soava nítida e entusiasmada, como se ele próprio estivesse ao meu lado.

"Já estamos com o programa aberto, Bruno. Está dificil de acreditar, mas eu acredito em você mesmo assim."

Me assombrava a nitidez da voz dele, mesmo diluída pelo fio do telefone. Andrés pediu que eu o chamasse aqui lá pelas quatro horas para conversar. Depois do café, ligou para Guilherme e Renan, Anderson e Arthur e marcou para as três da tarde. Foi enfático em pedir que eles não se atrasassem. Perguntei a ele porque tinha estabelecido horários diferentes para o Bruno e para os outros meninos e ele me disse que queria começar conversando sobre Bruno e por isso não queria que ele estivesse presente. Entendi que ele queria esclarecimentos sobre o incidente de ontem e provavelmente mais especificamente sobre minha urgência de estar com o menino naquele momento e não perguntei mais nada. Aparecida só fazia sacudir a cabeça, pouco entendendo de tudo aquilo.

Os meninos foram chegando de carro e, como aconteceu a Andrés, ficaram encafifados ao me ver olhando para eles hipnotizada, como um homem presa da Iara mãe d'água. Adriano já tinha se despertado e almoçado, enquanto Duílio ainda dormia o sono dos justos. Me perdi na contemplação de Adriano, a implacável riqueza de detalhes do rosto e da figura dele assombrando os lugares mais recônditos do meu ser, até que ele ficou assustado e caminhou para longe de mim.

"Eu quero agradecer pela casa que você e seu pai construíram. Acho que não me sentiria mais em casa se estivesse na minha casa original."

"Essa aí agora no terreno da fazenda é a sua casa original, D. Stella. Não é tão pesada e grossa quanto a que veio de Santos, mas é sua casa original. Que bom que a senhora gostou e se sentiu em casa. Valeu a pena, então, a noite sem dormir." e Adriano sorriu, sem-graça e encafifado ao ver que meus olhos estavam pregados nele, "a senhora tá se sentindo bem?"

Andrés explicou minha situação presente ao irmão e, à medida que os meninos chegavam, o mesmo espanto tomava conta de todos ao me ver naquela situação, com olhos que mais pareciam microscópios dissecando todos eles ao meu redor. Guilherme franziu a testa, "que é isso, D. Stella, parece que nunca viu a gente" e Renan estava ainda mais curioso que o irmão. Eu tinha voltado meus olhos para Guilherme e parecia devorar o que via com os olhos. Meu olhar pousou em Renan, com extrema dificuldade de puxá-los para fora de Guilherme e eu parei na frente dele. Absorvia cada detalhe do rosto, cada linha da expressão vexada do mineirinho.

"Ah, larga mão, D. Stella, não gosto…", começou Renan até que Andrés dissesse, "deixa ela se acostumar com você, Renan, não vai adiantar de nada você pedir para ela parar de olhar."

"Por que?" Renan estava intrigado.

"Porque ela nunca viu você antes." Andrés disse com tranquilidade e simplicidade na voz.

Renan franziu a testa, olhou para Adriano — cuja reação não pude ver por não conseguir tirar meus olhos do Renan — e para o irmão, e finalmente de volta para Andrés, "como assim, ela nunca viu a gente antes? E tudo o que aconteceu até agora então…"

"Ela conhecia a gente de antes dela abandonar o corpo, Renan. Ela estava em coma. O que ela conheceu foi uma sombra da gente, toda torta e embaçada."

"Isso que ele tá falan'o é verdade, D. Stella?", perguntou o mineiro minúsculo, olhando sério para mim, "e para de ficar me olhando desse jeito, por favor", pediu ele, ficando vermelho como um tomate.

"É verdade. Eu nunca imaginei que vocês tivessem essa aparência."

"O que… O que que mudou na gente?", estranhou Guilherme.

"Tudo. Vocês são maiores do que eu imaginava, não muito maiores, mas são. Nas cores, nos detalhes, é como trocar uma televisão preto e branco velha por uma de alta definição.", eu falava com Guilherme sem conseguir tirar os olhos de Renan, até que este ficou irritado e saiu para o alpendre, pisando duro (provavelmente por ainda achar que eu estava brincando com eles). Eu segui Renan com os olhos até que ele desapareceu porta afora. Fui atrás dele lá fora e olhando para o céu, disse, "Renan, eu não estou brincando, tudo está muito diferente pra mim, não fica bravo comigo." Ele começou a rir entre o divertido e o raivoso me vendo olhar para o céu e o riso dele atraiu meu olhar instintivamente para cima dele outra vez. Os outros saíram para o alpendre para ver o que acontecia e eu fiquei olhando para todos eles na luz exterior. Magníficos, pensei. Nunca tinha visto algo assim em minha vida, mas parecia ser algo que era seguro se encontrar depois que minha vida terminasse.

Nós nos sentamos no alpendre na luz maravilhosa da tarde de Taurinos e esperamos. Não eram três horas ainda, mas faltava pouco. De longe, ouvimos um rumor de carro. Andrés disse que era o Sr. Feletti trazendo Arthur e Anderson. Com efeito, eram eles. O Sr. Feletti sorriu e acenou pela janela do carro, e logo se foi pela estrada, como era costume sempre que nos reuníamos. Meu olhar caiu sobre os dois recém-chegados, aguçado, carnívoro, observando os detalhes, conhecendo-os pela primeira vez numa resolução inimaginável, como todos os outros, "que acontece com ela, nunca viu a gente?", fez Anderson intrigado.

"Não, o Andrés disse que esta é a primeira vez que ela está vendo a gente", esclareceu Guilherme, "como é que é?", disseram os dois em uníssono e Guilherme explicou tudo aquilo de novo ao Anderson e ao Arthur. E, desanimada e cansada da hipnose inconcebível que eles me causavam, eu sabia que ainda teríamos Bruno às quatro.

"Eu precisava falar com a senhora, D. Stella", disse Arthur repentinamente.

"Antes a gente precisa esclarecer um ponto sobre o Bruno, Arthur. Depois você conversa à vontade, sô." Andrés parecia ansioso em saber o que queria saber e olhou sério para mim abrindo a reunião informal com uma pergunta certeira.

"A senhora sabia que ele não iria se matar, não sabia?"

"Sim, e ele sabia disso tão bem quanto eu."

"Sabia?"

"Se você sabe dos eventos presentes da cidade, você sabia que ele tinha consciência disso. Por que é que está me fazendo essa pergunta, então?"

"A senhora disse aos pais dele que não tinha nada mais a fazer por ele, lembra? Por que disse isso?"

"Porque existem coisas que só a pessoa pode decidir. Eu tinha acabado de me matar…"

Ele ficou alarmado, "que é isso, D. Stella, a senhora só…" e eu o interrompi bruscamente, "não tem essa de que é isso, eu me matei, pronto, como chama largar o corpo voluntariamente e esperar que ele apodreça?", e continuei, "eu tinha acabado de me matar e pouco tinha a dizer a ele. Mas eu senti que mesmo tendo esse pouco a dizer, eu tinha que estar com ele naquela hora. Fui eu, mesmo sem querer ou saber como, que cavei o abismo onde ele estava jogado. Eu disse que ele tinha pessoas aqui precisando dele e deixei para ele a melhor companhia que alguém pode ter: a música."

"Mas se ele não ia conseguir se matar…"

"Não te ocorreu que talvez o que estivesse passando com ele fosse pior que a morte? Eu não tinha medo da cena que ele fez e ele sabia disso. Representou tudo como um símbolo, porque naquele momento foi importante para ele. A tentativa de suicídio era uma farsa, mas a situação de solidão dele não. Eu vi a solidão nos olhos dele. Era uma solidão infinita, como se ele fosse o último homem da terra, ou coisa parecida. Eu fiquei perdida por um tempo na solidão dele, naquele terror fúnebre que os olhos dele pareciam gritar num silêncio assustador. Vocês não saberiam o que fazer se olhassem nos olhos dele. Eu não soube. Se continuasse ali, eu poderia me perder naquela solidão sem vida e ele iria fatalmente se perder naquela coisa horrenda de vez e me levar junto com ele. Nem eu nem ele saberíamos como voltar daquele abismo. Íamos ficar como mortos-vivos, o mesmo que eu vivi naquela cama de hospital, só que para sempre. E você sabia (pelo menos tecnicamente) disso tudo, não, Andrés?"

"Por que Andrés então, não nos avisou?", perguntou Anderson, sem entender nada, olhando instintivamente para Arthur.

"Eu não pensei que fosse pra tanto…", começou Andrés, amedrontado com a perspectiva de se tornar o centro das atenções de novo.

"Não é culpa de Andrés, ele não se incomodou porque sabia que o Bruno não ia se matar. Mas ele não consegue sentir o que as pessoas sentem. Ele conhece o presente, sabe cada movimento, mas não o que vai pelas emoções das pessoas. Provavelmente nem pelas dele mesmo. Daí ele não ter idéia de que a situação era tão grave."

Andrés me olhava em silêncio. Parecia não conseguir pensar em nada concreto ou razoável para dizer, embora parecesse grato por eu ter advogado sua causa.

"Vocês talvez não saibam como ele tinha consciência de tudo o que a minha morte representava e como ele parecia ser o único nesta cidade a realmente ter a consciência de como exatamente era viver com isso. De como ele estava sozinho dentro dessa consciência. Posso falar disso sem medo, porque imagino que vocês não vão vivenciar aquilo como ele. Vocês podem até entender o que eu estou dizendo, mas sentir — mesmo — não."

Houve um silêncio enorme, denso, como aqueles que me torturaram antes que eu morresse. Arthur olhou para mim e eu fixei os olhos nele; disse que sentiu o mesmo que eu, muito antes de chegar à fazenda Pinho. Eu imaginava isso pela urgência com que ele chegou ao celeiro. Ele confirmou isso também. Disse que o que tinha sentido dentro do celeiro era uma atmosfera pior que a morte pela qual ele mesmo tinha passado durante a Lei dos Touros. E o que piorava as coisas, segundo Arthur, era o fato de saber que nem dar um fim à tudo aquilo puxando o gatilho ele poderia. Uma frustração infinita somada a uma solidão infinita. Quem resistiria?

"Quando eu entrei, ele estava entretido ouvindo música. Já tinha apoiado o rifle numa caixa e estava só ouvindo música. A música distraiu ele o suficiente para eu chegar e distrair o Bruno de vez. A surpresa de me ver de volta vivo foi tão grande que o desespero não teve mais lugar que pudesse ocupar dentro dele. Ele só precisava de uns minutos de distração de tudo aquilo. E, graças a Mitra, nós conseguimos esses minutos para ele."

O carro dos Pinho parou próximo ao alpendre e Bruno saltou. O Sr. Pinho acenou para nós, disse alguma coisa ao filho pela janela e se foi pela estrada. Meu olhar se fixou em Bruno, que era o único de todos os meninos que eu ainda não inha visto depois de Andrés me acordar e me treinar para ver com estes novos olhos que tenho. Eu fixei meu olhar nele e ele, bom mineiro que era, não tardou a ficar tímido como um jabuti e pedir explicações sobre o porque de eu estar com os olhos fixos nele. Renan foi quem explicou agora, mais treinado do que minutos antes para estas pequenas particularidades do nosso novo viver. Bruno se sentou na última cadeira ainda vaga no alpendre e esperou o que viria a seguir.

"D. Stella, não tem como a senhora olhar para outro lado?" fez ele, incomodado e levemente irritado. Nunca tive um bom relacionamento com Bruno e meu olhar fixo nos detalhes tridimensionais do rosto e do corpo dele não ajudava em nada, mesmo ele tendo entendido o porque de eu olhar assim para ele. Foi quando Arthur tomou a palavra, forçando o meu olhar em sua direção e ajudando a relaxar o Bruno um pouco.

"Eu queria me desculpar com todos pelo que aconteceu na noite da cerimônia, principalmente com a D. Stella", ele disse com um olhar circunspecto, "mas eu escolhi a D. Stella para ir para a arena e não podia deixar ela sozinha lá. Eu escolhi a D. Stella porque ela era a única que poderia ir; Andrés tinha colocado ela na Sociedade Antiga dos Taurinos, dentro da Câmara Interna e ela tinha um dom de ver as coisas que os outros não conseguiam ver. Eu sabia que Andrés e Adriano podiam também, mas nenhum de nós podia entrar na arena duas vezes…"

"Eu entraria", cortou Renan olhando para Arthur e Andrés, "me ajoelhei diante desse pulha, implorei pra ele deixar aquele touro pra mim e nada… Eu queria vingar você, irmão."

"Essa guerra [com esse touro] não era tua, Renan", explicou Arthur sorrindo, "era minha e de D. Stella. E nem era dela, mas acabou sendo. Acho que é a mulher mais corajosa que eu já vi."

"O teu pai bem que me pediu que eu fosse você na arena durante a lida. Ele parecia intuído de que você ia estar lá. Ele me entregou tua espada e me disse claramente, 'agora é sua. Faça o melhor que puder com ela. Lembre-se de meu filho quando usar essa espada. Seja meu filho quando usar essa espada.' Ele sabia, talvez muito mais que todos nós juntos, apesar da distância dele de tudo o que estava acontecendo na Sociedade."

"É, meu pai, às vezes sente as coisas de longe", o menino sorriu, "ele não falou por saber, mas porque ele sentia que a senhora tinha de lembrar de mim durante a sua lida. Porque isso ia ligar nós dois e eu ia poder guiar cada movimento que a senhora fizesse. E foi o que aconteceu. Uma pena que nada deu certo no final."

"Sim, por terem sido oito no Mithraeum, em vez de sete, não é isso?", perguntou Anderson, parecendo ansioso por uma confirmação do que realmente tinha falhado.

"Não.", disse Arthur circulando os olhos por entre os presentes.

A resposta surpreendeu a todos, mesmo Andrés. Ele mesmo não parecia fingir sua surpresa.

"Pelo que teria sido, então???", perguntou Bruno, refletindo a surpresa de todos na voz.

"Não se faz nada que preste com o ódio que eu sentia naquela hora. Eu estava frustrado por ter sido roubado da cidade na hora em que ela mais precisva de nós juntos. Na arena, eu não conseguia parar. A D. Stella foi como um desses fantoches de luva na minha mão. Eu não conseguia parar e era por isso que ela não conseguia parar. Com isso eu deixei ela surda, sem memória do que aconteceu — porque não era ela na arena de verdade — e toda quebrada por dentro, porque eu tirei tanta força dela que o corpo dela daqui acabou ficando doente. Eu peço desculpas, D. Stella. Eu nunca quis fazer mal nenhum para a senhora. Mas eu estava confuso e acabei fazendo com que a cerimônia não tivesse nenhum valor."

"Não há o que perdoar, ainda mais agora que a gente já sabe de onde começou toda essa confusão, Arthur. Você tentou fazer o que achou melhor pela cidade naquele momento e acho que isso desculpa tudo o que passou e o que mais vier. Quando vier."

Bruno se ergueu, apesar de Andrés insistir que ele ficasse sentado. Me lembrei de Renan, na primeira reunião que tivemos aqui mesmo e tive vontade de rir, mas me segurei.

"Somos oito agora, então. A Sociedade mudou de número, mas ainda é a mesma Sociedade. Apesar de tudo, é bom estar aqui. Ontem, quando a D. Stella e depois o Arthur entraram no celeiro para falar comigo, eu vi o quanto é bom estar aqui. Quando vocês começaram a me jogar para o alto, como fizeram com o Arthur no Mithraeum naquele dia, eu percebi que era entre vocês que eu tinha que estar."

Dito isso, ele se sentou, para evitar que Andrés tivesse um chilique. E sorriu para ele e para Renan, significativamente. Não consegui mais segurar o riso, mas Bruno sabia porque eu estava rindo desta vez. E aproveitei para mais algumas considerações.

"Acho que pelo menos por hoje, podemos encerrar a reunião, se ninguém mais quiser acrescentar ao que já foi dito. Bruno disse exatamente o que eu ia dizer sobre a Sociedade Antiga dos Taurinos. Acho que não há como colocar melhor as coisas do que ele colocou. Somos oito então. Vamos fazer o que for melhor para Taurinos dentro de tudo o que ficou para nós aqui. Nossa cidade é bonita. Mesmo no inferno, é bonita. E acho que o que sobrou para todos nós é lutar para que ela continue assim."

Eram quase seis horas da tarde. O tempo voou, passou por nós sem que percebêssemos. Duílio saiu para o alpendre para nos chamar para o café da tarde. Era a primeira vez que eu via o homem enorme ainda mais enorme na nova resolução com que eu o enxergava agora. Prevenido pela mulher do que estava acontecendo comigo, ele só fazia rir e me dar as boas-vindas a um novo tempo. O riso foi contagioso, especialmente quando eu tropecei na soleira da porta de entrada. Duílio se preparava para chamar a atenção dos meninos, mas eu disse que era assim mesmo. Era assim que tudo se passava num novo tempo.

Resolução | A morte tem quatro patas

Rádio Universal: O Dia Da Criação

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