domingo, 26 de abril de 2009

Patrulha de fronteira

Donana me recebeu com indisfarçável surpresa quando cheguei à fazenda Teixeira hoje de manhã. Era a surpresa de quem havia muito não me via, talvez desde o dia em que voltei de Santos para Taurinos definitivamente.

Conversamos brevemente. Perguntei por Renan e ela me disse que desde ontem ele estava calado, entocado no quarto, só saindo para comer. Me pediu que eu conversasse com o menino que ela sabia estar triste. Uma mãe conhece o filho, sabe ou imagina saber pelo que ele passa, mesmo que não saiba o exato motivo.

Fui encontrar o menino olhando através da janela e através do que estava através da janela. Dele não partia um único som. Parecia consciente de minha presença logo atrás dele, talvez por ter me visto no espelho que o vidro da janela formava contra superfícies mais escuras da paisagem lá fora.

"Renan", eu disse de repente.

Nenhuma resposta. Ele não se moveu. Continuava ali, imóvel, como se nada tivesse acontecido. Pensando bem, o que realmente aconteceu?

"Renan", insisti, "vim aqui conversar com você."

"E daí?", ele se virou e me encarou, como se tivesse sido tocado por uma corrente elétrica, "por que eu devia conversar com você? Ficou assustada comigo ontem por que?"

Mostrei a ele as folhas impressas com os emails da Meire. Ele leu os emails e se dividia entre ler e ficar me olhando com uma expressão interrogativa.

"A senhora sabia disso, eu mesmo lhe falei que eles eram de Santos e estavam atrás da senhora", ele disse secamente, com a cara fechada.

"O que quer que você tenha feito teve consequências físicas; me deu medo de você, mas eu pensava nas consequências que poderiam vir de tudo isso. Não vê o ponto central da coisa? Somos capazes, de algum modo somos capazes de traduzir as coisas que acontecem aqui em algo físico em Santos ou Deus sabe lá onde…"

"Mitra sabe", ele me corrigiu, com a expressão nada amigável.

"Ah, vamos lá, dá no mesmo…"

"Mitra é o nome dEle. O nome dEle está vivo. Você é Mitraísta também, não? Então aja de acordo, né?"

Agora, se o Renan resolver se tornar um mitraísta fundamentalista não demora muito entrarmos numa sinuca de bico. Ele continuou dizendo que não sabia que isso se refletia no mundo físico, mas que provavelmente podia acontecer mesmo. O que importava, segundo Renan, era que o que ele estava fazendo visava me proteger. Me disse que não fazia isso antes que eu viesse para Taurinos. Viu pessoas de fora pela primeira vez apenas depois que eu cheguei à cidade em fevereiro e não sabia o porque, mas sabia que deveria eliminar essas pessoas para que não me fizessem mal. Ele não entendia porque deveria me proteger, mas entendia que isso era vital para ele. Ele era movido a eliminar essas pessoas exatamente do mesmo modo que era movido a comer. Havia nele algo parecido com uma fome de eliminar essa gente.

"Eu não tinha idéia de quem a senhora era, só sabia que eu deveria proteger a senhora das pessoas que vinham de fora. Ninguém vem a Taurinos sem que eu saiba. Eu "vejo" a pessoa assim que ela cruza o limite de município. A única pessoa que eu não "vi" cruzando o limite foi a senhora. Agora eu sei que é porque a senhora era diferente de todos os outros que começaram a aparecer. A senhora puxa gente para cá como um imã, sabe?"

Eu não imaginava isso. Que eu ficasse atraindo pessoas aqui; imagino se os primeiros forasteiros mortos teriam alguma coisa a ver comigo. Renan me disse que não sabia e eu perguntei porque ele tinham sido mortos. Ele me disse que eles estavam na cidade havia sete dias, apesar de terem sido avisados para ir embora. Achei que era bem radical e ele me explicou que ninguém que ficasse na cidade por esse tempo tinha boas intenções. Suas más intenções já se manifestavam em sua permanência na cidade. Não havia muitos precedentes no que ele dizia, já que o fenômeno começou a acontecer desde que cheguei. Houve sete pessoas mortas. Sete dias. Sete é um número que aqui parece inquebrantável e não ficaria surpresa se a teoria de Arthur sobre o motivo da cerimônia não ter dado certo fosse totalmente infundada.

Renan parecia melhor quando eu o deixei. A buzina do carro de Duílio tocava na frente da casa da fazenda, me chamando. Ao entrar no carro, vi que Andrés tinha vindo com ele me buscar aqui na fazenda Teixeira.

"A senhora precisa ter mais compreensão, apesar de eu saber que é difícil para a senhora também como é para ele", Andrés me disse enquanto o carro partia, "criou o Renan para proteger os limites da cidade e a senhora mesma, mas é que não sabia disso. Ele faz isso automático, não tem como segurar ele porque foi para isso que ele foi criado. É uma polícia de fronteira em miniatura, mas não dá para deixar se enganar por aquele gordinho com carinha de bebê. Ele é um cachorro feroz protegendo a cidade e a senhora. Antes que a senhora viesse ele nunca tinha feito isso, porque sem saber ele esperava o momento em que a ferocidade dele pudesse ser útil. E agora que ele sabe para que é que ele serve, não vai parar nunca mais. A senhora goste ou não, fique sabendo ou não, ele vai fazer isso sempre que alguém entrar na cidade."

A morte tem quatro patas | Polícia Obscura

Rádio Universal: Polícia Obscura

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