quinta-feira, 2 de abril de 2009

Gente e urubus

Eu vi os urubus. Voavam cada vez mais baixo indo em direção da praça principal da cidade. Uma sombra passou por mim, rápida, ligeira e esperta, toldando minha visão por uns momentos. Depois foi o céu azul lotado de urubus que em círculos iam descendo cada vez mais. Depois foi o silêncio. O canto dos pássaros e eu estava em minha cama outra vez, na fazenda Teixeira.

Depois do café, Renan me perguntou se eu iria ficar e conversar com ele. Ele pretendia ir até a Cachoeira dos Chifres nadar um pouco. Eu disse que tinha de sair com Andrés, ir até a cidade. Uma sombra passou pelo rosto dele por um momento, enquanto ele considerava a idéia de ir até o centro da cidade com Andrés. Tentou me persuadir a ir com ele à Cachoeira dos Chifres, mas eu não iria lá de jeito nenhum, porque sinto que tenho coisas a aclarar antes que eu definitivamente possa sentar com ele e conversar.

No centro da cidade, burburinho na praça principal. Gente juntando próxima ao gazebo por onde passamos aneontem eu e Renan. Gente e urubus, gente espantando urubus dali, urubus tentando teimosamente chegar. Um cheiro de podre que ardia as narinas. Começo a ficar inquieta à medida em que eu e Andrés descemos do carro e caminhamos para a praça principal atraídos pelo rumor.

Eu conheceria aquela camisa de longe. Não vi o rosto, mas aquela camisa eu conheço. Recostado na mesma posição de dois dias atrás, o homem com quem Renan disse ter tentado falar. Na barriga, ainda um estilete cravado, a terra embaixo do banco do gazebo bebendo todo o sangue que a ferida drenou de dentro. O rosto semi-despeçado pelas bicadas dos urubus, o povo começando a arrastar o corpo para longe da praça usando pedaços de papel como luvas. Eu sinalizei a Andrés que viesse. Já tinha visto o suficiente. Pensei em ligar para Donana e perguntar quantos estiletes ela tinha pedido para as compras de ontem, mas se a notícia já tiver chegado lá a essas alturas, será o mesmo que dizer que foi Renan.

"D. Stella, que cara era aquela na praça? A senhora conhecia o cara morto?"

"Renan passou o estilete na barriga dele."

"Ah, foi o Renan? Ele conseguiu pegar o cara. Mas tinha outro com ele na cidade…"

"O outro ele deu de jantar para os cachorros dele na segunda."

Andrés assobiou, de horror de admiração.

"Aquele pestinha 'tá cada vez mais sanguinário… Como a senhora sabe que foi ele?"

Contei a ele o que se passou a caminho da fazenda Teixeira na segunda e o que eu vi no gazebo na terça. Que achei que ele estivesse dando uns tapinhas na barriga do homem, tapinhas cordiais, algo do gênero. Andrés riu e disse que Renan não era o cara para tapinhas cordiais ou qualquer forma de contato que não visasse tirar sangue de alguém. Ele disse que o que vi eram mesmo as estiletadas.

"Me lembro da pressa com que ele queria que eu voltasse ao carro. Quase gritou comigo quando eu sugeri que nós procurássemos o cara pela cidade um pouco mais."

"Ele não queria chocar a senhora ou coisa assim, sei lá, porque medo de ser descoberto não era. Se vocês compraram as coisas no Souza e se ele reconheceu o estilete, não demora muito para Taurinos toda saber que foi o Renan. No máximo ele vai apanhar em casa por ter feito isso em plena luz do dia em plena praça principal do centro da cidade."

Andrés mudou de assunto e disse que viu os urubus em sonho, descendo em círculos para a praça principal. Como se nos guiassem até aqui. Fomos encontrar Anderson, na loja de ferragens do pai, saindo do seu pequeno turno matinal. Subimos para a casa dele no topo da loja. Enquanto se bebia café, comparávamos os sonhos da noite passada e mais uma vez não havia sombra de diferença entre eles. A diferença única foi que Anderson não foi à praça como nós. Estava ocupado com uma lista de pedidos e foi com espanto que ele recebeu a notícia do dia.

"Nossa, Renan exagerou dessa vez… Mas não eram dois? Será que o outro fugiu?"

"Conte a ele, D. Stella", pediu Andrés.

Repeti a história dos cachorros jantando e Anderson apenas disse, "mas que maquininha de matar eficiente, hein?". Andrés riu mas eu não achava muita graça na história. Anderson disse que não fosse assim, eu mesma poderia não estar mais por aqui conversando e tomando café.

"Ele me atraiu até lá. Me usou como isca."

"Como a senhora pode saber?" tornou Anderson.

"Ele disse isso para mim na maior cara-de-pau."

"Eh, Renan…"

"Ele ligou para a fazenda Taurinos imitando a voz do pai dele."

"Fui eu que atendi. Não era o pai dele então? Nó, jurava que fosse." Andrés estava atônito com a notícia.

"Mas então, Renan está ficando abusado. Imagina, colocar a vida de um de nós em risco só pra pegar o cara?"

"Calma gente, deu tudo certo no final, não deu? Ninguém se machucou, não é?"

"Não é assim, Andrés e se fosse você? Será que ia ficar aí pedindo calma?"

"Deixa ele", eu disse, "não foi Andrés que ficou com um cano encostado na cabeça com um maluco brincando de roleta russa com ele."

"E esses sonhos agora? Que pode ser? Eu queria saber onde eu me encaixo nessa história. Porque Renan…"

"Isso se supondo que Renan seja a causa dos sonhos. Que é ele que aparece só com a sombra, disso já sabemos. Mas é ele a causa dos sonhos? Temos certeza disso?"

"D. Stella, tem gente na cidade e não é pouca que consegue se comunicar de boca fechada. No Zé das Profundezas uma vez eu vi dois caras da cidade quietos numa mesa. De vez em quando um olhava pro outro e os dois riam. Ficaram quase uma hora nisso, depois se levantaram, pagaram a conta e foram embora pra casa." contou Anderson.

"E o que isso tem a ver?"

"Tem a ver que se podem fazer isso, podem também mandar um sonho, qualquer coisa que utilize a mente deles, não?"

Quando cheguei à fazenda Teixeira, no final da tarde, Renan estava muito ocupado apanhando do pai. Donana tinha percebido que o troco das compras tinha vindo de menos e que a nota fiscal mencionava dois estiletes, não um como ela tinha pedido. Juntando com as notícias do dia, não foi difícil a ela somar dois e dois e perceber onde o outro estilete não-solicitado tinha ido parar. Obviamente, como disse Andrés, ele só estava apanhando por ter feito o que fez em plena luz do dia, por nenhum outro motivo.

Teatro de sombras | Penumbra em plena luz do dia

Rádio Universal: Teatro De Sombras

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe aí algumas linhas. Agora, sem essa de Viagra ou Tramadol ou coisas do gênero ou seu comentário vai para a lata do lixo.