quinta-feira, 9 de abril de 2009

Grande sono

Engraçado, hoje acordei pensando no aniversário de Cubatão. 9 de abril. Talvez por ter morado em Santos, tão perto de lá. Ter morado. Já é como se eu tivesse vivido toda a minha vida por aqui em Taurinos. Santos parece agora algo tão remoto. Muito embora eu não tenha vivido aqui por tanto tempo ainda para considerar Santos algo remoto. Fico lembrando de Meire e de alguns outros amigos que tenho por lá. Meire deve estar apavorada com meu sumiço, mas e-mails dela mesmo não tenho recebido, o que pode querer demonstrar que ela pode não estar tão apavorada no frigir dos ovos.

No café, Renan parecia um pouco mais calmo que ontem (era difícil que ficasse mais agitado que ontem, então isso é perfeitamente natural). Ele ficava me olhando por longos períodos em silêncio total às vezes, como se tentasse me desvendar. O mesmo nariz comprido que ele mostrava ontem quando nós nos sentamos para conversar, mas definitivamente mais controlado que ontem.

Hoje me lembro (também do nada) que de todos os membros da Sociedade Antiga dos Taurinos, só não tenho visto mais Bruno, a voz discordante da Sociedade. O garoto sumiu do convívio daqui ou não se mistura freqüentemente, a não ser em caso de força maior, como quando os touros invadiram a cidade vindos das fazendas, no mês passado.

"Eu ia arrancar a pele dele. Como a senhora fez com aquele touro na cerimônia", sob o sol do pátio externo, Renan ainda estava aborrecido com Anderson e Andrés e seus últimos traços de aborrecimento remetiam a frases de efeito moral como essa.

"Ah, não me lembre dessas coisas", eu pedi a ele, "não gosto de ficar lembrando disso."

"A senhora nunca mais conseguiu lembrar o que aconteceu na cerimônia, afinal? O que a senhora fez?", ele insistiu.

Quem me dera agora. Distrairia o menino um pouco das minhocas que devoram seu cérebro. O assunto esquisito substituído por um outro assunto esquisito, mas que já não tem a mesma importância e atualidade. Estou me recusando a pensar. No porque dele ter sonhado ter apanhado dos outros dois, mas de nunca ter sonhado o que sonhamos juntos quando ele era apenas uma sombra passando ao redor. No porque dos outros dois não terem tido o mesmo sonho que eu, quando eram eles mesmos que me instruíam sobre tudo ao redor e me davam a sensação mais que nítida de estarem tendo o mesmo sonho lúcido que eu cinco noites atrás.

"D. Stella, eu 'tou falando com a senhora", insistiu Renan, me puxando pela manga.

"Não. Não me lembro de coisa nenhuma."

Ele pareceu desanimado. Me lembro da cerimônia, um gigantesco ritual de exorcismo de uma força maléfica da cidade, tão velha quanto o universo. Tão grande que dela sempre restam cacos para infernizar nossas vidas presentes. Sete touros foram sacrificados — da maneira mais violenta, cruel e horripilante possível — por mim e por seis meninos da cidade (incluindo este que conversa agora comigo, o irmão dele e os dois que ele diz terem lhe aplicado uma surra enquanto sonhava). Tudo em vão. Se soubéssemos que tudo se resumia em empurrar um deles dentro da água e segurá-lo lá por cinco minutos, todo aquele ritual insano — do qual emergi surda e com amnésia — poderia ter sido evitado. Soa bizarro? Acredite, não o bastante para esse mundo de Taurinos.

"No que a senhora está pensando?", perguntou Renan num modo mais bem-humorado.

"Nesse monte de sonhos esquisitos que nós temos tido."

Ele fechou um pouco a cara. Não me olhava diretamente. Eu disse que o assunto me incomodava também, mas que teríamos de lidar com ele mais cedo ou mais tarde. Então, seria melhor que saíssemos na frente.

"A gente podia aprender como fazer esse nigucim de ficar acordado no sonho, como a senhora disse que fez com os dois…"

"Mas eles nem mesmo se lembraram do sonho que tiveram. Já nem sei se isso deu certo. Como o Andrés disse, eu posso ter tido esse sonho sozinha (o que eu acho que aconteceu, já que nenhum dos dois lembrou esse sonho), daí não adiantou nada se tentamos nos reunir assim."

Ele novamente pareceu desanimado. Mas insistiu em que podíamos ao menos tentar. Falei que iria ligar para os outros dois, sob protestos de Renan. Ele ainda parecia ter um pouco de raiva recolhida de Andrés e Anderson por conta do tal sonho. Eu disse ao pequeno Teixeira que se quisesse tentar o tal processo, teria que ser com eles. Os únicos ligados à questão dos sonhos além de nós dois eram eles. Portanto, eles teriam de fazer parte no experimento.

"Eles vão dormir na minha casa, é?"

"Eles vão dormir no teu quarto. E fale com os seus pais se quiser que eu telefone."

"Tudo jóia, eu falo com… No meu quarto???"

"É, todos nós temos de dormir no mesmo lugar."

Vi pela carinha dele que ele estava quase desistindo. Esperei que não o fizesse. Num primeiro momento, torci o nariz para a idéia, mas me lembrei de que gostaria mesmo de tentar o processo em condições controladas. E esta era uma boa oportunidade.

O primeiro a dizer que a idéia não passava de uma cilada foi Anderson. Em ordem alfabética, Andrés disse mais ou menos o mesmo com outras palavras. Anderson de longe era o mais preocupado. Ele alegou ser uma idéia de Renan para assassiná-lo secretamente durante o sono. Eu respondi que a idéia foi minha e que o pequeno Teixeira relutou bastante em deixá-los dormir em seu quarto. Não sei porque isso pareceu mudar sua opinião. No fim, consegui que os dois viessem.

Meu pesadelo favorito | M.R.O.

Rádio Universal: Teatro De Sombras

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