segunda-feira, 6 de abril de 2009

Neurose de combate

Depois do almoço, visita de "sêo" Danilo. Ele recusou educadamente as ofertas de almoço com os Teixeira, alegando já ter almoçado na cidade. Depois de certo tempo percebi que a visita era para mim, não para a família.

"Sei que devo ter lhe desapontado bem ontem e eu sinto muito, "sá" Stella", ele disse para mim quando nos sentamos no alpendre, "mas essa é uma cidade isolada. Um fim de mundo. As pessoas se defendem do jeito que podem."

Eu disse a ele que concordava com a parte do fim do mundo. Ele deu um suspiro puxado e afundou na cadeira, aparentemente sem saber o que dizer.

"Você não me desapontou, no fundo não. Entendo o medo de que alguma coisa possa acontecer. Como você mesmo disse, passei pela experiência, logo eu que acho tão calmas as cidades do interior."

"O menino só estava…"

"Você até agora não me respondeu o que foi que o cara da praça fez para merecer as estiletadas. A pergunta está no ar desde ontem."


"Nunca é o bastante. Nunca é o bastante até seu coração parar de bater. Quando mais fundo você vai, mas doce é a dor. Não desista do jogo até que seu coração pare de bater."

Neurose De Combate, escrita e gravada por New Order.


"A senhora quer mesmo saber?", disse uma voz com dez anos de uso atrás de mim.

Renan. Impossível saber quanto tempo já estava atrás de nós no alpendre, o quanto tinha ouvido de nossa conversa. Mas eu já deveria ter perguntado isso a ele há tanto tempo, foi mesmo bom que nos ouvisse. Ele cumprimentou "sêo" Danilo com um sorriso enorme e se sentou entre nós na única cadeira que restava livre. Me olhou com a expressão contrariada.

"Não adianta tentar convencer a D. Stella, "sêo" Danilo", ele disse sorrindo, "ela é dura de entender as coisas por aqui", ele tirou uma foto do bolso e, novamente sério e carrancudo, colocou a foto na minha mão, "conhece essa menina?"

Era uma foto de Renan com uma menina, provavelmente da cidade. Era linda e tinha um sorriso encantador, natural como toda ela, sorriso que já fazia alguém se sentir bem só de contemplar a foto por uns instantes. Era uma foto muito bonita dos dois sentados juntos conversando no mesmo alpendre onde estávamos.

"Não", eu respondi, embora eu já imaginasse por onde ele iria continuar a conversa e já sentisse pena da menina, "é sua amiga?"

"É. E o mesmo que aconteceu com a senhora aconteceu com ela na mesma segunda-feira. Uma brincadeirinha de roleta russa. Só que o cara abusou dela, ela não teve a mesma sorte que a senhora em me ter por perto. Nem tem a mesma personalidade forte sua que ralou o que a gente sabe que ralou por aqui. Agora ela 'tá que não consegue nem chegar na janela, com medo do que vem lá de fora."

"Eu não soube disso", falei revoltada, "jamais teria perguntado se soubesse. Se tivesse a menor idéia que uma desgraça dessas tivesse acontecido."

"É, mas aconteceu. Ninguém soube, só os mais antigos da cidade. Não deixamos a notícia se espalhar. Já imaginou a vergonha que ela ainda ia ter que passar além de tudo o que aconteceu?"

Entendi o silêncio de "sêo" Danilo sobre o tema. Ele guardava segredo da história nefanda pelo mesmo motivo. Me senti envergonhada pelo questionamento de ontem, embora não acreditasse na crueza da solução final proposta pelos homens da terra. Acrescentei que eu poderia conversar com ela, tentar ajudar a menina a vencer a síndrome do pânico que aparentemente tinha se instalado nela a partir do incidente infeliz.

"Ela está p'ra Varginha se tratando. Difícil vir p'ra Taurinos agora. Vem, passa uma semana e depois volta p'ra lá."

Houve um silêncio mortal. Só os passarinhos mantinham presença. Como poderiam parar de cantar? Devolvi a foto a Renan que ficou um tempão olhando, até que as lágrimas começassem a escorrer pelo rosto. Olhei para "sêo" Danilo, tanto eu quanto ele numa busca desesperada do que dizer para tentar amenizar a situação, nós que conversamos tão alto e tão perto dele sobre um assunto dessa sensibilidade. Renan ergueu os olhos lavados para nós e disse com ódio no olhar, "aquilo que eu fiz foi pouco… Eu não podia fazer o que queria com ele ali na praça… Eu podia ter esperado e pego ele em outro lugar mais sossegado, mas só de ver ele o sangue subiu, tinha que ser ali mesmo… Se eu pudesse tirava o filho da puta daquela cova e guardava em casa p'ra matar todo dia um pouquinho mais. Matava até a alma dele, se ele tivesse… Filho de uma puta desgraçado, queria visitar o inferno só p'ra ver ele lá, sofren'o…", ele se sacudia no transe dos soluços, até que se agarrou comigo como um bebê. Olhei para "sêo" Danilo atônita e o abracei durante um tempão que eu não soube precisar exatamente qual.

Donana assomou à porta do alpendre. Ao ver o quadro, se aproximou e pegou Renan no colo, levando o menino para dentro de casa sem dizer palavra. E sem dizer palavra ficamos eu e "sêo" Danilo até que ele desse sua visita como encerrada.

Estranha ciência | Vendaval

Rádio Universal: Teatro De Sombras

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