domingo, 19 de abril de 2009

Advento

Eles estavam no Mithraeum. Eu disse isso a Adriano e ele pareceu concordar. Eu fiquei impressionada pelo eco que envolvia as vozes de Andrés e Bruno, pelo menos até onde eu consegui "ouvir".

Não tinha muito tempo antes que a casa acordasse para o café. Saí com Adriano pela fazenda para conversarmos um pouco. Pelo que entendi, o que ele me disse ontem se desfez hoje. Ele não parecia lembrar de uma palavra do que tinha me dito, como pai-de-santo que acorda de um transe.

Isso me acendeu uma curiosidade: se Adriano não se lembrava do que tinha me dito, os outros se lembrariam de ter ido ao Mithraeum? Mais que simples curiosidade, era um ponto que me incomodava como vital na situação: se ele não lembrava do que me tinha me dito, mas os outros se lembravam de ter ido ao encontro, ele poderia ser acusado de algo de que simplesmente não se lembrava. Como na noite em que ele viu a Meire com a polícia em seu quarto.

Meire é apenas mais uma das peças do imenso quebra-cabeças que esta história se tornou. Outras sendo: de onde tirei a conclusão de que a Sociedade Antiga dos Taurinos quer julgar e condenar Adriano à morte? De simplesmente "ouvir" Andrés dizer que ele falava demais, o ataque raivoso de ontem, a saída súbita a cavalo ao cair da tarde?

Por outro lado, Adriano não se lembrará, mas me perguntou claramente se eles queriam matá-lo. Eu disse que talvez, porque compartilhava do mesmo receio que ele. Receio de quem vive dentro de uma sociedade secreta estranha a tudo que já se viu, onde se corre o eterno risco de ser julgado, condenado e executado por violar leis e regras que parecem saltar do bolso dos membros.

Deixei Adriano no alpendre, fui caminhar um pouco. Voltei em não menos de dez minutos, passo calmo, silencioso, sobre os tocos de madeira que serviam de caminho em meio ao cascalho. Ao chegar ao alpendre parei; podia ouvir claramente o que se passava na mesa.

"Nós nos reunimos ontem no Mithraeum", disse Andrés na mesa do café. Provavelmente o mesmo olhar furioso em direção ao irmão mais velho, mas só o que eu podia ouvir já confirmava minhas suspeitas de que Adriano poderia se encrencar sem nem mesmo saber o porque. Era evidente para mim que o menino não se recordava de nada do que tinha me dito.

"E qual foi o caso dessa vez?", perguntou Aparecida, já preocupada com a reunião extraodinária.

"Adriano estava tentando contar à D. Stella sobre o Dia da Criação.", ele respondeu com boca cheia de pão.

"Dá pra parar de falar com a boca cheia na mesa?", Duílio ralhou.

Houve um silêncio. Que diabos pode ele querer dizer com Dia da Criação? Adriano estava apenas me perguntando (ou afirmando que?) eu estava doente quando Duílio foi à minha casa relatar os "problemas" de Andrés. O que tem isso a ver com Dia da Criação? A única referência que havia no ar sobre o tema foi a poesia de Vinícius de Moraes. Ele teria intuído, como o irmão, a poesia de Vinícius na qual eu pensava ontem e a confundiu com um assunto que para eles era sagrado?

"Eu não lembro de nada disso", sustentou Adriano com a voz espantada, mas firme.

Tive de entrar. Não podia mais ficar ausente quando o meu nome tinha sido pronunciado na mesa.

"Por que você mesmo não me conta a história do tal Dia da Criação?", perguntei de súbito assim que apareci ao campo de visão do povo da sala.

Ele ficou branco ao me ver e ouvir. Como se fosse possível aquela coisa ficar mais branca do que já era. Positivamente não esperava me ver flutuar para dentro da sala de jantar em busca de novidades sobre a nova sensação do momento.

"Sim, o que é o tal Dia da Criação?", quis saber Aparecida.

"Isso não pode ser dito na frente de pessoas de fora!", gritou Andrés, alterado.

Duílio e Aparecida olharam o filho, desconfiados. Adriano nada entendia. Eu, pouco mais que o próprio Adriano e com certeza muito menos que Andrés. Mas era óbvio para mim que Andrés usou a desculpa mais esfarrapada possível no último momento. O que restou de forasteira em mim depois de tudo o que vivi e pela residência permanente forçada em Taurinos, cidade que tentei localizar no Google Earth tantas vezes sem sucesso. Seria pela população tão pequena? Seria eu tentando me enganar?

Uma buzina soou lá fora. Duílio foi ver quem era e se espantou ao ver a cena lá fora: ao sair, vimos o mesmo carro aberto que nos transportou para a cerimônia no Mithraeum. Nele, todos os membros presentes da Sociedade Antiga dos Taurinos e "sêo" Danilo, sentados, como um pequeno exército. Tinham vindo para julgar Adriano? Se for, serei a melhor advogada que puder. Essa insanidade tem que parar.

Eles entraram respeitosa mas decididamente na sala. Olhavam para Andrés, olhares que pareciam estranhamente divididos entre a raiva e a compaixão, uma mistura de sentimentos que juro, nunca vi em minha vida.

"Acabou, Andrés. A cidade inteira está vindo para cá." "sêo" Danilo tomou a dianteira.



"Ei, ei, estamos aí pro que der e vier
A fim de saber a verdadeira verdade
Estamos a fim de saber, a fim de saber
Você que luta para se manter
Você que pede pra sobreviver
Você que olha com toda curiosidade
A fim de saber a verdadeira verdade
Estamos a fim de saber, a fim de saber
A fim de saber a verdadeira verdade"


Falar a Verdade, escrita por Cidade Negra


E um trovão de trombetas ao longe, como as que derrubaram as muralhas de Jericó. Buzinas, muitas buzinas, primeiro bem ao longe, depois num crescendo assustador. Minha apreensão crescia. O que Andrés teria para contar que ainda não tivesse contado? Quando e como se chega ao fundo de todo esse mistério?

E a frente da fazenda Taurinos se encheu de carros. Todos buzinando ao mesmo tempo, num compasso ensurdecedor, apavorando Andrés com a perspectiva de um juízo final? Eu olhava para Adriano aturdida, perdendo lentamente o que restava de meu autocontrole, enquanto o adolescente parecia recolher pela sua expressão fragmentos de memória do dia anterior ou quem sabe muito mais que isso.

Taurinos e seu povo estavam em frente à fazenda dos Conselheiros. Todos, sem exceção de um só, parecia. Rapidamente reconheci o prefeito entrando na sala de jantar, me olhando, os olhos mudos de espanto, do mais puro espanto.

"Que porra que me importa? Que venha o estado de Minas Gerais inteiro… Que me importa?", Andrés estava chorando, "e você, Renan, é um traidor! Começou você com aquela história de que a gente era do jeito que ela tinha sonhado!"

"Mentira, moleque! Tudo já estava aparecendo pro Adriano, ele não ia demorar pra dar com a língua nos dentes!", rebateu Renan, enfurecido, babando, olhos injetados de sangue na direção de Andrés.

"Desgraçado…" e, tirando os óculos e os jogando em cima da mesa, Andrés partiu para cima de Renan como ontem tinha partido para cima do irmão mais velho. Indignada com a loucura, tentei intervir, mas os outros meninos me seguraram e até Duílio ajudou.

"Agora é entre eles", disse o chefe de família.

O som dos socos e dos pontapés certeiros um no outro era violentíssimo e enjoativo; palavrões, xingamentos, olhares e ataques ferozes. A ferocidade de dois meninos levada a extremos. Eles vão se matar, pensei. E, novamente, nada posso fazer para deter aquela violência estúpida e absurda. Em meio ao horror que começava a tomar conta de mim, houve um momento em que Adriano largou o meu braço e começou a caminhar em volta. Sua voz se ergueu por sobre a confusão reinante na sala, quando o prefeito e os demais moradores que já formavam uma pequena multidão assistiam a tudo completamente perplexos.

"Sua amiga Meire está aqui. Nesta sala, junto com a polícia. Eles estão conversando. Eu consigo ouvir o que eles estão dizendo."

A briga parou. A cidade em torno parou. Mais nem um som se ouvia naquela sala. A própria natureza em volta, os sons de pássaros matinais, tudo parecia ter se congelado quando Adriano se fez ouvir. Ainda embolados no chão, Renan e Andrés olharam para Adriano, olhos cheios de infinito assombro. Renan se ergueu devagar, largando Andrés, os dois com as camisas rasgadas da briga feroz, o nariz de Andrés e o canto da boca de Renan gotejando sangue. Andrés soluçava, rastejando até o irmão.

"Adriano… Eu te dou tudo o que é meu. Meus touros… Minhas coisas… Tudo! Eu juro! Não faz isso, pelo amor de Mitra, não faz isso comigo…"

"Eles estão tentando reanimar a senhora", continuou Adriano, aparentemente não ouvindo uma palavra do que o irmão caçula dizia, "E não conseguem… Meire está dizendo que ela achou estranho a senhora ter dito que não estava muito bem e ter desligado sem se despedir. Está contando aos guardas que tocou a campaínha muitas vezes e ninguém atendeu. Um dos guardas está dizendo que o melhor é levar a senhora para o hospital…"

Não sei porque, olhei para "sêo" Danilo, próximo aos outros meninos. Ele me olhou de volta, olhar grave de quem compreende finalmente o que se passava. As crianças foram as primeiras a intuir tudo, isso o olhar dele me dizia de forma clara, sem margem para enganos. Eu estava começando a entender mais do que antes e um súbito horror tomou conta de mim. O inexplicável horror de saber que essa vida é verdadeira. O horror de conhecer e cada vez conhecer mais.

"Meu pai já tinha lhe telefonado e tocado a campaínha de sua casa. A senhora atendeu e conversaram sobre Andrés. Combinaram que a senhora viria para Taurinos conviver com Andrés por um tempo. Quando a Meire chega com os policiais e eles decidem levar a senhora para o hospital, meu pai e minha mãe já estão encostando o nosso carro na sua porta. A senhora põe suas malas no nosso carro e vem para Minas Gerais. E a Meire coloca a senhora numa ambulância com a ajuda dos policiais e leva para o hospital."

Aparecida já demonstrava os primeiros sinais de faniquito descompactado e pronto para se instalar. Eu não estava em melhor situação. Estava suando frio, pedi uma cadeira, me sentei em puro estado de choque. Nesse ponto, Andrés já subia pelo irmão como hera que escala pacientemente um muro.

"Por favor, não… Adriano, não…"

Adriano olhou nos olhos o irmão agarrado a ele e sorriu.

"Que bom, ainda está sem óculos!"

O que se seguiu foi um soco que atirou Andrés a metros dali. Espantados pela reação do mais velho, a ação repentina e fulminante provocou uma onda de choque em todos os presentes. Calafrios, calores, súbitas mudanças de pressão. Andrés gemia enquanto Duílio tentava colocá-lo no sofá.

"A senhora está no hospital desde fevereiro. Desde que veio para Taurinos. Até agora."

"Pelo amor de Deus, chega, Adriano!" gritou o irmão mais novo, já sem forças no sofá, "ela vai matar todos nós! Ela vai matar todos nós!"

O desespero de Andrés, minha situação no hospital, tudo isso abriu finalmente os meus olhos. O Dia da Criação. O dia em que entrei em coma. O dia em que tudo o que existe em Taurinos, incluindo a própria Taurinos foi criado. Eu era o Grande Um, eu era cada um dos touros sacrificados, eu era a Sociedade Antiga dos Taurinos, era Adriano, Anderson, Andrés, Arthur, Bruno, Guilherme e Renan. Eu era tudo, o Alfa e o Ômega. O início, o fim e o meio, como um dia cantou Raul Seixas.

"Quando viemos para Taurinos, no carro, Aparecida me disse que o Google Earth se esqueceu de Taurinos…", eu disse, procurando reunir os últimos restos de força para entender de forma plena onde eu tinha vindo parar, "mas eu acho que não havia nada no mapa para se esquecer. A cidade mais próxima é Varginha, que fica a 200 quilômetros daqui. Foi o que Aparecida me contou na viagem de vinda e não consegui entender. Lembro de que começamos a subir de Varginha para cá e parecia a subida não ter mais fim. Na verdade, são 200 quilômetros para cima. A montanha mais alta do mundo, o Everest, só tem oito quilômetros de altura. Estamos 192 quilômetros mais alto que a montanha mais alta do mundo. Onde no mundo inteiro uma cidade destas poderia existir?"

"Meu Deus…", e Aparecida dava plena vazão a seu mais poderoso faniquito de todos os tempos. Pagava ela também o preço que eu pagava de saber de menos, do pouco se imiscuir em assuntos de machos numa sociedade que foi, era e seria exatamente do jeito que eu sonhei. Andrés era o Grão-Mestre, era o senhor de todo o conhecimento, sabia de tudo desde o início. Toda a sua luta fora por viver, já que tinha sido criado, provavelmente à imagem e semelhança de alguma peça desajustada em mim ou algum de meus pacientes pregressos. Criei um passado neolítico, uma mistura de religiões para a cidade e um futuro incerto. A única coisa neste mundo estranho é a incerteza.

Me virei para Adriano. Perguntei se podia ver o hospital. Ele disse que era um lugar imenso, de corredores quase infinitos. Pela descrição, eu estava internada na Santa Casa de Santos. Nesse meio-tempo, Bruno veio caminhando até perto de onde estava. Tinha os olhos vidrados do que tinha aprendido. Perguntou se eu o havia criado. Respondi a ele que tudo indicava que sim.

"Eu sabia que tinha coisa estranha acontecendo e era por causa da senhora. Eu nunca entendi a senhora, desde a primeira vez, na primeira reunião da Sociedade Antiga dos Taurinos. O que a gente faz quando fica sabendo que foi criado desse jeito?"

"Eu disse a vocês que ela só podia ser uma deusa. Vocês nunca acreditaram muito em mim. Como o 'Eram Os Deuses Astronautas?', né?"

"Cala essa boca, Renan. Que idiotice de se dizer isso numa hora dessas!", ralhou Guilherme, revoltado.

"Eu sempre quis ver nossa cidade nos mapas de internet e nunca consegui. Tentei o Google Earth, o Maporama, tudo quanto foi lugar", continuou Bruno, com expressão desanimada, "agora deu pra entender porque. Acho que como eu, deve ter acontecido com muita gente da cidade."

No sofá, Andrés chorava por sobre as ruínas de seu império de segredos. Repetia que queria viver, que não queria morrer, que não queria que a cidade morresse. E foi então que vi uma cena que nunca pensei que veria: Duílio abraçou o filho e o beijou no topo da cabeça repetidas vezes, dizendo, "se tivermos que não existir mais, o que é que se há de fazer? A era dos grandes mistérios pode muito bem estar acabando aqui, mas o que é que se há de fazer?"

Milagres da fome de viver. O momento me enterneceu. Numa situação-limite para toda a comunidade, foi com a vontade de se agarrar à vida que o menino tinha conseguiu finalmente comover um pai de família medieval e durão. Nunca vou me esquecer dessa cena.

Eu disse que precisava estar junto ao meu corpo físico e decidir o que fazer. Andrés chorava mais violentamente como se a própria vida dele estivesse sendo arrancada de si pela decisão que acabo de tomar. O medo. Tres meses na cidade do medo. Tres meses dentro de um hospital.

"A senhora pode voltar ao que era, "sá" Stella. Basta deitar no leito e desejar voltar à sua vida normal", disse "sêo" Danilo, de repente, "nós nunca teremos existido, nem nosso passado, nem nosso presente, nem nosso futuro. Eu lhe disse que Renan foi o único que disse algo significativo naquele dia, lembra-se. Eu não entendi direito, mas sabia que era alguma coisa grande no ar."

E "sêo" Danilo continuou resoluto, "Por muitos e muitos anos se difundiu a idéia por aqui em Taurinos que você viria. E que viria numa manhã de domingo, veja só! Se desde o começo de nossa história, não tenho a menor idéia de quantos séculos atrás os nativos daqui já esperavam por você. Diziam que você traria a Imortalidade, se quisesse, mas que para isso teria de morrer você mesma. Diziam que você teria de optar por sí só. Que traria a vida eterna ou a morte junto de si. Agora entendo como isso é possível. Sou um privilegiado e ao mesmo tempo um azarado por viver em tempos como esses. Mas que sensação melhor que a vida que temos tido? Que tudo o que vimos, experimentamos, todos os sentimentos. Mes, "sá" Stella. Não sou digno de que entre na minha casa. Mas que privilégio ter partilhado meu humilde café com a senhora! Isso eu nunca vou esquecer, nem dentro da não-existência, sô!"

Contendo a custo minha vontade de chorar, agora entendendo na plenitude a importância do momento em que toda a cidade nos observava entre atônita e chocada, eu disse, "muito me honrou seu café costumeiro. Quero que esteja ao meu lado no quarto do hospital quando eu finalmente me decidir."

Nunca vou me esquecer do brilho que relampejou nos olhos do sertanejo. O limiar da experiência do tudo ou nada. O limite entre minha fantasia comatosa e a realidade. Ele me olhava com assombro, como se fosse ter o tempo e a intensidade de sua vida todo ali em um segundo. E me agradeceu comovido pela confiança.

Pedi a Duílio que se preparasse para ir a Santos comigo e "sêo" Danilo. Ele me sacou de lá, deve saber bem como retornar. Os meninos me cercaram enquanto o resto da população ainda se quedava em pé sem ação. Em resumo, queriam saber se iriam viver ou morrer. Eu respondi que estava tão chocada por tudo e pelo repentino de tudo que não sabeia responder a pergunta. Pode parecer uma resposta cruel, mas a situação era extrema para todos nós.

O Dia da Criação | Isolado

Rádio Universal: O Dia da Criação

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