sábado, 18 de abril de 2009

O dia da criação

Vejo hoje daqui do alpendre da fazenda Taurinos o mesmo sol triste de ontem. Embaçado, coado pelas nuvens, descendo como mormaço sobre as montanhas bonitas de Taurinos e sobre todos nós. Sensação baça, estranha num mês em que a temperatura deveria estar em declínio, assim como o verão. E porque hoje é sábado, relembro uma poesia de Vinícius que li há um tempão atrás, mas que nunca me saiu da cabeça.


"Neste momento há um casamento
Porque hoje é sábado
Hoje há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado
Há um rico que se mata
Porque hoje é sábado
Há um incesto e uma regata
Porque hoje é sábado
Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado
Há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado
Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado
Há um grande espírito-de-porco
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado
Há criancinhas que não comem
Porque hoje é sábado
Há um piquenique de políticos
Porque hoje é sábado
Há um grande acréscimo de sífilis
Porque hoje é sábado
Há um ariano e uma mulata
Porque hoje é sábado
Há uma tensão inusitada
Porque hoje é sábado
Há adolescências seminuas
Porque hoje é sábado
Há um vampiro pelas ruas
Porque hoje é sábado
Há um grande aumento no consumo
Porque hoje é sábado
Há um noivo louco de ciúmes
Porque hoje é sábado
Há um garden-party na cadeia
Porque hoje é sábado
Há uma impassível lua cheia
Porque hoje é sábado
Há damas de todas as classes
Porque hoje é sábado
Umas difíceis, outras fáceis
Porque hoje é sábado
Há um beber e um dar sem conta
Porque hoje é sábado
Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado
Há um padre passeando à paisana
Porque hoje é sábado
Há um frenesi de dar banana
Porque hoje é sábado
Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado
De uma mulher dentro de um homem
Porque hoje é sábado
Há uma comemoração fantástica
Porque hoje é sábado
Da primeira cirurgia plástica
Porque hoje é sábado
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado
Há a perspectiva do domingo
Porque hoje é sábado."


O Dia Da Criação, Canto Segundo, escrito por Vinícius de Moraes


"O que é sífilis?", perguntou Adriano, de súbito ao meu lado.

Esclareço. Não estava recitando a poesia. Estava pensando nela. Como Adriano poderia ter "lido" a palavra se eu não a tinha pronunciado em viva voz?

"É uma doença antiga, que infelizmente existe até hoje.", me apressei em dizer. Não queria que ele percebesse que eu tinha ficado encafifada com aquilo (nem deveria, porque sei que eles tem a percepção extra-sensorial desenvolvida aqui em Taurinos). Mas eu não estava preparada para o que iria ouvir.

"A senhora estava bem doente no começo de fevereiro, não?", ele disse me olhando sério.

"Quando, exatamente?", eu mal conseguia disfarçar minha surpresa.

"Quando meu pai visitou sua casa pela primeira vez."

Andrés saiu abruptamente de dentro da casa e até o som das molas barulhentas da porta de tela do alpendre soava furioso desta vez. Ele pulou sobre o irmão e os dois rolaram no chão entre socos e joelhadas até que eu conseguisse fazer os dois pararem quando já estavam próximos demais do meu laptop. Duílio assomou à porta, já com o cinto na mão para sua costumeira e medieval dose de manutenção da paz.

"Quem começou?"

Foi divertido ver os dois dizerem um o nome do outro simultaneamente. Dali para a frente, já não foi mais tão divertido.

Na mesa do café, os meninos com marcas vermelhas. Não ousaria perguntar a Andrés a razão do ataque furioso ao irmão, não na mesa, não naquele exato momento. Me contentava em seguir seu olhar enfurecido em direção a Adriano, do outro lado da mesa.

Mais tarde, eu vi Andrés ao telefone. O que ele dizia eu não conseguia compreender, só sei que ligou para todos os outros membros da Sociedade Antiga dos Taurinos. Anderson, Bruno, Guilherme e Renan. Mais tarde, saiu a cavalo: destino ignorado.

"Alguma idéia de onde o seu irmão possa ter ido, Adriano?"

Ele olhou para mim e não parecia saber onde o irmão estaria indo. Mas parecia saber porque.

"Por que acha que ele te atacou daquele jeito?"

Adriano desconversou bruscamente. Tentei ler nele algum sinal, alguma coisa, mas nada parecia evidente, ou mesmo perceptível na atitude fechada dele. A pergunta sobre o porque dele ter chamado os membros da Sociedade Antiga dos Taurinos permanecia. As perguntas mais cruciais sempre permanecem.

Tive uma idéia. Fui até o estábulo de onde Andrés tinha tirado o cavalo. Eu disse a Adriano que me ajudasse a procurar qualquer objeto que Andrés tivesse tocado antes de sair, ou qualquer coisa que segundo ele estivesse fora do lugar. E ele não demorou muito para achar algo.

"O relho. Não deveria estar no chão. Ele deve ter deixado cair quando saía e não percebeu."

Ele me passou o relho e voltamos ao alpendre. Eu me sentei, segurei o relho e fechei os olhos, enquanto Adriano aparentemente tentava entender porque eu fazia aquilo. Num primeiro momento, nada aconteceu. Nenhuma imagem parecia se formar. Me ocorreu que o relho poderia estar a dias jogado ali, sem qualquer conexão com a saída de Andrés hoje. Quando eu já me preparava para abandonar o experimento, ouvi claramente a voz de Andrés. Envolta em eco, dizendo aos outros o que ele mesmo costumava me dizer: que Adriano falava demais. Ouvi a voz de Bruno, discordando e dizendo que o apoiava. Que já era hora de se contar a história. Depois, mais nenhum som foi ouvido, como uma transmissão que se encerra ou é cortada.

"Eles vão me matar?"

"Talvez."

"Estavam falando de nossa conversa hoje de manhã, não?"

Eu não respondi, mas nem precisava. Ele sabia mais que eu o que se passava. Não precisava do relho ou da memória contida nele. Pensei em dar seqüência à nossa conversa, mas me contive naquele momento. Talvez por achar que Adriano estava realmente ameaçado de morte.

Sol triste | Advento

Rádio Universal: O Dia da Criação

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