sexta-feira, 20 de março de 2009

Uma temporada permanente

Finalmente um café da manhã mais agradável nessa fazenda. As pessoas estão conversando, ao menos mais amigavelmente, em torno da mesa. O clima ainda está tenso na fazenda Taurinos, mas acho que a tendência, agora que a cidade começa a voltar ao seu normal, é que as coisas se assentem aos poucos. São grandes ainda as seqüelas de tudo o que vivemos e descobrimos em pouco mais de um mês. Março de 2009 é um mês para nunca mais ser esquecido na história dessa gente, dessa cidade e da minha história. Que parece agora indissoluvelmente ligada à história de Taurinos.

"O "Sêo" Teixeira está vindo ver a senhora", disse Aparecida. "Ele ligou ontem à noite para ver se podia conversar com a senhora sobre o Renan."

"O bicho está pegando lá na casa do Renan. Ao pé da letra!", riu Adriano.

"Isso é lá assunto pra rir?" Duílio ficou impaciente.

"Ah, todo mundo sabe que o Renan é doido de pedra, pai", justificou Adriano, já na defensiva.

"Isso não é motivo pra ficar rindo do menino."

Adriano foi salvo pelo motor do carro soando lá fora. Duílio esqueceu as piadas e foi ao alpendre receber as visitas, "mas cheguem pra dentro, Aparecida acabou de passar café…", disse o imenso dono da casa.

Renan e Guilherme vieram junto. A mesa, incrível, não ficou pequena para os oito. Discutia-se a reconstrução da cidade. O preço da argamassa. Do Cimentcola Quartzolit®. Os meninos não entendiam muito de construção, mas curtiam a conversa. Aparecida perguntou se eu tinha provado o pão de queijo e eu disse que estava delicioso. Mencionei um ingrediente e ela disse que foi perspicácia minha ter notado. Ela me passa a receita e isso me distrai um pouco mais que os materiais de construção. Gosto de cozinhar. Especialmente quando não preciso.

Alpendre. Os meninos foram à Cachoeira dos Chifres. Me sento junto com "sêo" Octávio Teixeira (ele faz questão de me dizer que há um "c" antes do "t") para conversar sobre o pequeno e selvagem membro da família Teixeira que esteve (e está) junto conosco na Sociedade Antiga dos Taurinos.

"A senhora sabe, todo menino do mato em algum momento da vida faz uma maldade, por menor que seja, com os bichos do lugar onde ele vive", "sêo" Octávio explanava, "eu mesmo o mais leve que fazia era amarrar um barbantinho no rabo de uma lavadeira e ficar puxando ela como se fosse um cachorro enquanto ela tentava voar, sabe?"

"Interessante. Interessantíssimo."

"Mas o Renan, eu não sei… Ele tem andado tão agressivo, até brigar na escola brigou, sabe?"

Se eu ganhasse dez reais que fossem cada vez que ouço isso (especialmente aqui em Taurinos) eu não precisaria trabalhar. Parece um pouco com o famoso binômio, cachorro desaparecido + criança doente, usado até por casais sem filhos para reaver seus cachorros.

"Entendo."

"…esse nigucim de ficar assistindo filme de violência na TV, sabe, ele é tão novo, dez anos de idade e não deveria ficar assistindo essas coisas. Mas nem eu nem a esposa podemos ficar de olho nele o tempo todo."

Pais nunca podem ficar de olho o tempo todo. Mas se não é deles a responsabilidade, de quem mais será?

Estou sentindo dor de ouvido. Estranho, os dois. A voz de "sêo" Octávio vinha distante, como já tinha me acostumado, mas algumas de suas inflexões estavam entrando menos abafadas que outras. Perguntei a ele se sabia sobre o ritual no Mithraeum, sobre como foi violento. Ele disse que sabia cada detalhe, mas se apressou em dizer que tudo foi feito pela cidade, sem nenhuma outra intenção.

"Entendo o que quer dizer, "sêo" Octávio, eu mesma não participei com outra intenção a não ser a de ajudar a cidade."

"Taurinos soube de sua história, D. Stella, nunca vamos poder agradecer o suficiente a senhora…"

"O que quero dizer é que deixou umas seqüelas em mim. Fiquei surda, como o senhor deve ter ouvido falar e perdi parte da minha memória do que aconteceu lá naquela noite."

"Isso acontece com adultos, senão coisa pior. O que só aumenta a sua coragem, a meu ver. Sei que a senhora sabia do risco que estava correndo lá embaixo."

""Sêo" Octávio, me escute um minuto. Não estou falando disso porque quero lhe dizer o quanto ajudei a cidade. Quero lhe dizer que pode ter ficado nele uma seqüela parecida com a minha, mas na personalidade, entende?"

"Mas, não, é impossível, D. Stella. Nada ruim jamais aconteceu com uma criança em nenhuma das cerimônias. E não seria pelo meu filho que iria começar, não é?"

"Eu não sei. Acho que aquilo que foi feito lá embaixo deixaria qualquer pessoa diferente do que sempre foi. Eu estranho a tolerância à violência que eles mostraram lá. Todos incólumes, ilesos, mentalmente intactos, como se tivessem ido ao parque num domingo de manhã. Lembrando de cada detalhe, por mais sangrento que fosse."

"A senhora acha?"

"Não é nada definitivo, mas é uma impressão que tenho. Não posso lhe dizer o que é. Tenho que observar o Renan o mais perto que puder."

"Sêo" Octávio ficou pensativo. Me perguntou se eu não queria passar uns dias com eles, ver o que eu conseguia descobrir. Eu disse que nem tudo o que eu descobria era fácil de aceitar por parte dos pais da criança. Às vezes, nem tudo o que eu descubro é fácil para mim mesma aceitar.

Renan adorou saber que vou passar uma temporada em sua casa. Guilherme viu com bons olhos a quebra de rotina que minha presença em casa representava. A fazenda Teixeira era um pouco menor que a Taurinos, mas imensa para alguém que como eu vive (ou vivia) num sobrado pequeno em uma cidade comprimida pelos lados como Santos.

Um belo alpendre, com uma vista diferente, um outro ângulo da montanha, mas igualmente bonita. Se este alpendre for tão tranqüilo quanto o da Taurinos, já tenho meu novo escritório pronto. Aqui faltam azulejos portugueses mas sobram rendas portuguesas, samambaias, avencas. Me sinto bem neste lugar de cara.

"Essa é Donana," apresentou "sêo" Octávio, "minha esposa. Ana, esta é D. Stella, de quem eu já te falei…"

"Ah, e os meninos também, principalmente o Renan. Na época da cerimônia, então, um dia depois, ele quase me deixou surda." e ela sorriu, simpática.

"Sei bem como é que é. Os seis meninos me deixaram totalmente surda também."

"Sêo" Octávio nos olhava com a expressão de quem está em dúvida entre rir ou ficar sério. A segunda alternativa pareceu ser a escolhida.

Renan e eu sentamos no alpendre e voltamos o olhar para as montanhas de Taurinos na distância. O dia é nublado, mas um lindo dia; passarinhos cantam de todas as partes, embora minha audição ainda não possa perceber o todo de seu canto. A dor de ouvido que tive ontem e hoje de manhã retorna ligeiramente e começa a me incomodar. Renan olha para mim e me pergunta porque estou aqui. Espera, vê que estou levando eras para responder e atalha.

"É por minha causa, não?"

"É." Mentir para os clientes não faz parte do meu jogo. Omitir talvez, mentir nunca (olhaí, um ótimo lema para colocar no blog).

"Minha família pensa que eu sou louco", Renan disse, resignado.

"A tua família e o resto da cidade, Renan. Você tem que ser realista. Às vezes você apavora."

"Eu sei."

A carinha dele ao dizer isso foi um amorzinho. Exagerei eu também na colocação da situação dele dentro da comunidade, mas foi interessante ver que ele tinha consciência da situação, ao menos de como ele era olhado de fora.

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