segunda-feira, 30 de março de 2009

Roleta russa

Eu tive um sonho esta noite. Sonho esquisito, aflitivo em que eu tentava chegar à fazenda Teixeira no cair da noite e era atacada por um homem. Depois, o latido de um cão enorme e não me lembro de mais nada. Minha audição está quase de volta ao normal, ainda um pouquinho abafada, mas quase de volta ao normal outra vez. Minhas recordações da noite na arena ainda não clarearam, e eu começo a duvidar de que um dia vão clarear de fato.

Contei o sonho aos irmãos Conselheiro depois do café da manhã e eles trocaram um olhar comprido entre si. Estranho, como se tivessem tido o mesmo sonho ou como se achassem que o sonho foi uma premonição. Taurinos tem um índice impressionante de pessoas com percepção extrassensorial e o que é o caso de Andrés pode muito bem ser o caso de Adriano também. Quem me garante que ele me contou sobre o irmão, mas não escondeu suas próprias faculdades extrassensoriais?

"Onde estava quando o tal homem atacou a senhora?" perguntou Adriano.

"Não tenho certeza, mas acho que já estava perto da fazenda Teixeira."

"Viu o cachorro latindo? Ou só conseguiu ouvir?", desta vez foi Andrés quem perguntou.

"Só ouvi, daí para diante não me lembro de mais nada…"

Houve um silêncio. De vez em quando os dois se entreolhavam e eu não entendia porque. Podia não ser nada, podia ser um mundo de coisas. Andrés passou a me contar que os Teixeira tinham ligado. Perguntaram se eu não poderia ir até lá para retomar as conversas com Renan, agora que o torneio tinha terminado. Disseram que Renan estava se recusando a alimentar seus cachorros. E que eles tinham ligado o cachorro latindo no meu sonho ao telefonema.

"Mas por que cargas d'água Renan ia parar de alimentar os cachorros?"

"Renan é doido, não faz coisa com coisa de vez em quando." explicou Adriano.

É fácil atribuir tudo à loucura ou ao miolo mole de certas pessoas, penso eu. O que motiva a loucura? Qual a origem de determinado comportamento? Ambiente, coisas que já estavam lá dentro e que nem mesmo a pessoa portadora desconhecia?

Eram seis e meia quando saí da fazenda Taurinos a pé. Pretendia voltar à fazenda Teixeira para continuar a observação do caçula da família. O sol já se ia bem baixo, sol de final de verão, onde o outono começa a querer dar as caras. Os últimos pássaros atrasados de volta a seus ninhos passavam por cima da minha cabeça, piando na pressa de retornar. Paro e me recordo do sonho dessa noite. Estou a meio caminho agora, nada de voltar por conta de premonições esquisitas. Taurinos é uma cidade calma. Às vezes, calma até demais. A beleza das montanhas em torno, as muitas flores de milhares de tipos de plantas do cerrado que se despedem de mais um dia. E lá se vai mais um dia, como disseram um dia os mineiros adeptos do Clube da Esquina.

A fazenda não é longe agora. A paisagem vai mudando à medida que contorno o sopé da montanha em cujo topo fica a parte urbana do município de Taurinos. Uma nova vista da montanha enquanto ainda há luz. Uma visão sempre renovada, a microflora do cerrado em sua estonteante beleza e exotismo. A mais ou menos um quilômetro da entrada da fazenda, ouço um animal se arrastando pelo mato. Um lagarto, talvez? Mais sons. Definitivamente não estou sozinha neste trecho de mata rasgada de estrada que leva à fazenda. Apuro a audição quase pronta. Os sons ainda me vêm algo abafados nos últimos restos da minha surdez temporária. O que pode ser? Estou pronta para saber a resposta?

A resposta não se faz esperar mais. Um braço corta a minha frente e se enrola em torno do meu pescoço, o aço frio de um cano encostado em minha cabeça. O sonho. Tarde demais para voltar atrás. Estou perdida. Ouço o estalido do cão da arma próximo ao meu ouvido e é o fim. Nada acontece. A risada de um homem — o dono do braço — soa atrás de mim, inconfundível.

"Já brincou de roleta russa?" disse a voz grave, como um gato brincando com a sua presa.

Eu tentei responder mas não houve tempo. Um segundo clique se fez ouvir, embaçado pela surdez, angustiante, segundos que pareciam horas.

"Onde será que está a bala?" ele riu, sarcástico, me enchendo de pavor, quando o sol já tocava o cume da montanha lá em cima, tornando tudo mais e mais escuro, "vamos tentar mais uma vez…"

De repente, o latido de um cão. Dois. O homem se virou, me largando no processo, mas não teve tempo de esboçar reação. Um cão enorme, grande como um leão já cravava os dentes no pescoço dele e o derrubava no chão. O outro veio em sua ajuda e os gritos do homem eram terríveis, lancinantes, me enchendo de tensão e de tanto pavor quanto quando o revólver estava encostado em minha cabeça. Era o fim da roleta russa. E o fim do homem também. Os cachorros não paravam de lidar com o homem quando percebi, para maior pavor meu, que eles o estavam devorando. Horrorizada, recuei diante da cena dantesca e os meus olhos foram se fechando até que uma luz repentina os abriu.

Eu estava caída na estrada e os sons medonhos de mastigação e de ossos quebrados pelas mandíbulas dos animais me devolveram à realidade medonha de momentos atrás. Renan me iluminava com a lanterna, me perguntando se estava tudo bem, indiferente à cena infernal a poucos passos de distância.

"Renan, a gente tem que sair daqui rápido, esses cachorros…"

"Os cachorros são meus. E a gente não sai daqui enquanto eles não terminarem de comer."

Eu olhei para ele, muda de espanto.

"Já faz uma semana que eu estou cercando o cara. A senhora foi mesmo a isca ideal."

"O telefonema…" Eu me recusava a acreditar nele.

"Eu imito bem o meu pai no telefone, não?" Ele riu, divertido, enquanto os cachorros despedaçavam o que restou do corpo do assaltante.

"Eu podia ter morrido, seu merdinha!"

"Pois é, mas quem morreu foi ele. Isso deve lhe ensinar a não andar por aí a essa hora da noite. Você é só uma mulher. É disso que eles gostam, uma mulher sozinha no meio da estrada ao anoitecer. Taurinos só é calma porque a gente mantém ela calma, não se esqueça."

Outra geometria | Ossos e estiletes

Rádio Universal: Teatro De Sombras

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe aí algumas linhas. Agora, sem essa de Viagra ou Tramadol ou coisas do gênero ou seu comentário vai para a lata do lixo.