terça-feira, 31 de março de 2009

Ossos e estiletes

Donana disse que já estavam sentindo saudades de mim na fazenda Teixeira. Guilherme e Renan, em plena mesa do café, só falavam na presença de seus advogados. "Sêo" Octávio perguntou se eu e Renan tínhamos enterrado os ossos. Dissemos que sim. Os próprios cachorros enterraram os ossos e teremos que torcer para que se esqueçam onde os enterraram. Renan mesmo pouco ou nada fez, a não ser encher o saco. Enquanto os cachorros ainda faziam a digestão, já eles mesmos iam cavando fundo no desbaste de uma cavidade que comportasse os ossos.

"Octávio, café da manhã não é hora pr'essas conversas." reprovou Donana.

"Sêo" Octávio se aquietou, mais pela curiosidade satisfeita do que pela reprovação da mulher. No caso de Donana, é como se repetisse à sua maneira o que foi dito por Aparecida para mim certa vez, de que "preferia nunca ter sabido daquilo, mais ainda daquela forma".

Renan se sentou no sol sozinho depois do café da manhã. Fui até ele conversar. Saber quem era o cara que ele estava cercando fazia uma semana, o mesmo que me atacou no começo da noite de ontem.

"Sei lá eu", ele deu de ombros. Renan não parecia disposto a conversar.

"Renan, você sabe quem é o cara. Deve saber, pois se estava cercando o cara há uma semana…"

"Eu sei que o cara era safado. Isso já não chega?" Ele olhou para mim, os olhos semicerrados pelo sol bem atrás de minha cabeça, aquela careta peculiar de quem recebe o sol nas vistas.

Depois de uma pausa, ele me contou que eram dois caras. O outro estava agora na cidade, mas andava junto com o que me atacou ontem. Ele perguntou se eu não me sentiria mais segura se encontrássemos o outro. Dizer a ele que eu me sentiria mais segura (embora com certeza me sentisse) seria o mesmo que passar a ele uma procuração para caçar e matar o outro também, provavelmente da mesma forma abjeta e nojenta que o primeiro. Um cara que nem conheço, que nunca chegou perto de mim. Mas concordei em ir à cidade com ele dar uma vista. Nós íamos aproveitar e passar no mercadinho do Souza para Donana, mercadinho que ele está reerguendo depois que os touros e as vacas destruíram o lugar já faz quase um mês.

Centro da cidade. Movimento normal de uma terça normal na cidade. O sol deixando tudo muito luminoso. Tudo muito berrante, cor de luz do dia. O camarada da fazenda Teixeira estacionou o carro na praça principal do centro. Aqui é virtualmente impossível a alguém se perder, tudo vem dar nesta mesma praça no final das contas.

No mercadinho, notei que Renan comprou lápis, borracha, papel sulfite e… dois estiletes. Na lista de Donana havia realmente estilete marcado, então tudo bem. Já é ruim criança comprar coisa que não foi pedida, por conta própria, ainda mais se tratando de um estilete. E os estiletes nem numa embalagem plástica apropriada vinham. Saímos do mercadinho com algumas sacolas que deixamos no carro. Renan se desculpou por uns momentos e foi ter com um homem que se recostava preguiçosamente num gazebo próximo. Vi Renan conversar com ele; não podia ver o que o homem dizia, tentar ler seus lábios da distância onde estava porque ele estava de costas para mim. Vi Renan acariciar ligeiramente a barriga do homem e voltar para o carro, sacudindo a cabeça.

"Coitado do hominho, tão bêbado que nem dele dava conta, quanto mais de saber se tinha visto o tal você sabe quem…"

"Mas então podemos dar mais uma volta por aí, ver se…"

"Depois se vê isso, agora é levar as compras da mãe", ele falou como se levar as compras tivesse se revestido subitamente de um estranho senso de urgência e alta prioridade.

"Mas nós nem…"

"D. Stella, dá pra entrar logo na porcaria do carro?"

Senti que ele estava a ponto de explodir se eu não entrasse logo no carro. Não parecia tão nervoso ao vir, mas agora estava uma pilha só para ir embora. Resolvi não ficar como uma pateta discutindo, eu que nem queria estar aqui fazendo isso realmente. As compras para Donana foram de bom tamanho como desculpa para vir à cidade um pouco.

Roleta russa | Teatro de sombras

Rádio Universal: Teatro De Sombras

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