terça-feira, 3 de março de 2009

Religião de mistérios

Depois do almoço, sentada no alpendre. O vento que ontem passava por aqui deu lugar a uma calmaria morta, onde o ar não circula. Como se houvesse um manto sobre a cidade. As coisas que vi ontem não deveriam acontecer em lugar nenhum. Que influência é essa, que coisa nefasta e subterrânea toma conta de Taurinos?

O telefone toca de tempos em tempos, trazendo as notícias do front que a cidade se tornou. O movimento frenético do dono da casa é digno de nota desde as primeiras horas da manhã, tentando ajudar a administrar a situação de uma cidade inadministrável. Começo a admirar esta gente de Taurinos e sua incansável e provavelmente invencível vontade de viver.

Um carro desce a estrada vindo nessa direção. Ele encosta próximo ao alpendre e há música tocando dentro dele. É estranhamente familiar esta música, quando me remete a tempos antigos em que eu freqüentava a União do Vegetal. Esta música — do católico Zé Vicente, agora me lembro — tocava dentro da sessão da UDV quase todas as noites em que lá estive. Difícil esquecer seus versos bonitos que agora transbordam de dentro das janelas abertas do carro que estacionou:

"Todas as coisas são mistérios. Por que tanta dor pela rua? Por que tanta morte no ar? Por que os homens promovem a guerra em nome da paz? Por que o cientista não mostra um jeito bem feito afinal, que seja vacina do amor contra o vírus do mal? Todas as coisas são mistérios."

Volto ao alpendre, recém-chegada de minhas recordações. Anderson está na minha frente, com uma lata de tinta em cada mão. Uma é azul, a outra é azul-escura. Ele sorri e me cumprimenta. Deixa as latas sobre o alpendre e vai ao carro atrás de outras. Ofereço ajuda e ele recusa educadamente. Enquanto ele fica no seu vai e vem com as latas, me aproximo da janela do carro e começo a conversar com o pai dele.

"É CD tocando ou essa música é do rádio, "sêo" Caldeira?", perguntei a ele, achando estranho que estivesse tocando no rádio.

"CD. Compramos em Canção Nova, lá em Cachoeira Paulista", informou o Sr. Caldeira, "espere… como é que sabe o meu nome?"

"Sei o nome completo do seu filho, tive que registrar para a ata de fundação da Sociedade Antiga dos Taurinos. Sendo que vocês dois são bem parecidos…"

Ele sorriu e perguntou se eu era católica também. Eu disse que não, mas que a música me trazia recordações de um grupo que conheci. Eu perguntei a ele como é que se sente sendo a um só tempo um mitraísta e um católico. Ele disse que as duas coisas têm muitas semelhanças. Penso que se a semelhança está em como as cerimônias são tramadas no mitraísmo local, deve ter mais semelhanças com os métodos usados na Inquisição Espanhola.

O Sr. Caldeira me pergunta sobre Duílio e eu digo que ele saiu. Ele se despede, deixando o menino sentado comigo no alpendre. Fico olhando as sete latas de tinta no alpendre, promessa de Anderson que os Caldeiras cedo materializaram aqui. Fico olhando para as latas sem preocupação de iniciar uma conversa com o adolescente. E ele acaba tomando a iniciativa.

"A senhora gosta de Zé Vicente?", perguntou ele.

"Não conheço nada dele, mas a música que estava tocando enquanto seu pai estava aqui, sim… Gosto dela. Me lembra sessões que eu freqüentava em um Centro Espírita."

"Ah, a senhora é espírita…"

"Não exatamente."

"Como se é espírita não exatamente? Ou é ou não é, uai."

"As coisa não são assim pão pão, queijo queijo. Algumas coisas que se vive no ensinamento espírita se é. O que você não vivencia não é parte de você. Você não é isso ou aquilo porque decidiu ser, mas porque uma vivência te trouxe até ali. Você é católico?"

"De pai e mãe", disse o jovem, sorrindo.

"E é mitraísta também?"

"Sim, sou. De pai e mãe também."

"Então você é mais ou menos as duas coisas. Não tem uma coisa parada, fixa, apesar de tudo o que a gente diz que é. Ou você vive aquele modo espiritual ou então dizer que se é isso ou aquilo é simplesmente palavra morta, sem vida e sem fundamento. Seu pai me disse que o catolicismo e o mitraísmo têm coisas em comum. Ele está certo. Encontrou o ponto em que duas tradições se juntam e é esse o ponto em que ele e você se encontram."

"A senhora vai estar na reunião agora à tarde na arena?", ele perguntou, aproveitando a deixa do mitraísmo.

"Sim, em todas, ao que parece."

"É a primeira vez que uma mulher toma parte na Sociedade, sabia?"

"Eu soube de uma mulher que tomou notas da última vez que a cerimônia foi realizada, em 1957."

Anderson abriu bem os olhos; aquilo era um item a mais em sua lista de aprendizado sobre as coisas que ele pensava que sabia. Disse que nunca soube disso e perguntou como eu tinha conseguido a informação. Eu omiti o nome de "sêo" Danilo, dizendo que não me lembrava de quem tinha me passado isso.

"Andrés deve saber, vou perguntar a ele", resolveu o garoto.



"Todas as coisas são mistérios. Por que tanta dor pela rua? Por que tanta morte no ar? Por que os homens promovem a guerra em nome da paz? Por que o cientista não mostra um jeito bem feito, afinal, que seja vacina do amor contra o vírus do mal? Todas as coisas são mistérios…"

Mistérios, Zé Vicente



Carregados na traseira de uma caminhonete. Não é o melhor modo de ir ao Mithraeum construído pelos homens de fazenda, mas é melhor que a pé sob o sol da montanha. Conversamos com Bruno e como ele salvou a vida do pai no incidente com o touro na sua fazenda. Andrés comentou que não era a situação ali (já que a única coisa que importava no momento era salvar o pai do Bruno), mas que os touros enlouquecidos tinham de ser sedados e trazidos para a arena. O carro avança por entre algumas manadas isoladas de touros inquietos com a sombra baça que tomou conta de tudo em Taurinos, vai seguindo um único fio da rede elétrica do lugar que parece ir se perder no infinito.

No final do fio, a caminhonete parou à pouca distância de um descampado e descemos em frente a uma estrutura de madeira protegida por um pórtico e um telhado, rente ao chão, que era… um alçapão enorme. A eletricidade saía da fazenda Taurinos e vinha ter ali. Imagino o quanto a Cemig deve ter cobrado por tanta exclusividade. Em quatro pontos diferentes cercando o alçapão havia entradas de ar protegidas das possíveis chuvas com seu formato de periscópio.

Os meninos já pareciam ter estado ali. Não notei deles qualquer movimento ou palavra que denotasse surpresa diante do que se via. Andrés desceu da cabine e tirando chaves do bolso, abriu o cadeado enorme do alçapão, revelando o que aparentava ser uma câmara subterrânea natural; o silo sobre o qual havia falado Andrés.

Os meninos se reuniram para descer. Andrés acendeu as luzes da escadaria e foi o primeiro a entrar. Os outros o seguiram e eu segui os outros, a última da fila. Quando chegamos ao interior escuro da arena, Andrés desligou as luzes da escada. A escuridão caiu total e pesada sobre nós. Então, depois de segundos que pareceram uma eternidade, ele acendeu as luzes no interior do santuário. Foi como se ele pulasse sobre nós da escuridão. A iluminação consistia basicamente de spots que emprestavam luz a certos pontos específicos da arena, deixando o resto na penumbra.

O recinto era totalmente um teatro de arena, todo circular e com arquibancadas que cobriam quase que metade do círculo. A outra quase metade era ocupada por sete estábulos que se conformavam no mesmo formato circular de tudo mais. Dois deles já estavam ocupados: os dois Sagrados que os Conselheiros tinham capturado ontem, as manchas bem visíveis de azul sobre um deles e azul-escuro para o outro. Os touros parecem imóveis, mas estão acordados. A luz reflete e brilha nos olhos deles, mas tem mais brilhando ali, não é apenas o reflexo das luzes da arena. Os dois Conselheiros estavam oficialmente prontos para a batalha.

"O azul quase me matou ontem", Adriano mostrava o touro com um gesto, "se eu não consigo atirar ia virar curau."

"É, porque pamonha você já estava sendo dando as costas pro touro. Não ia dar tempo de eu ou o pai chegar, você viu, não? Sorte que na hora resolveu deixar de ser pamonha pra não virar curau." zombou Andrés.

Todos riram, menos eu e Adriano. Algo me incomoda nesta escuridão. Não tenho problemas com a escuridão. Aqui não está completamente escuro, mas o lugar fechado como uma catacumba, a iluminação focada no centro da arena e os olhos brilhantes dos touros estavam me perturbando mais do que eu gostaria de admitir.

Nos sentamos na arquibancada. Bruno foi o primeiro a falar. Ao me ver na reunião pela segunda vez tomando notas, protestou contra a presença de uma mulher nos trabalhos da Sociedade. Isso desencadeou também os protestos de Arthur sobre o mesmo tema. Esperei que Anderson se manifestasse também. Ele ficou calado naquele momento.

"Isso nunca aconteceu na história da Sociedade. Por que tem que acontecer agora? Eu não sabia que ela estava sendo iniciada naquela tarde. E a gente tem que saber, não? Somos uma Sociedade ou não somos? Então o que um sabe os outros têm que saber."

"Nem eu sabia que estava sendo iniciada. Também eu tinha o direito de saber."

"OPCV", e o mineirinho parecia zangado.

"Agora eu só posso mesmo pedir desculpas à Sociedade e à D. Stella… pelo que eu fiz. Mas o que está feito, está feito. Não tem como desfazer."

"Posso apagar meu nome dos registros se isso fizer vocês felizes", interrompi Andrés quando ele já ensaiava iniciar nova frase.

"Não é simples assim. Não é o que ficou registrado no computador, mas na reunião em si. Quanto mais com seis testemunhas na nossa frente. Não tem como fingir que eu não lhe disse para colocar seu nome debaixo do nome de Renan."

"D. Stella é de boa", disse este último, "eu não quero que ela saia ou tire o nome do registro. Ela é da Sociedade agora, junto com a gente e os nossos pais."

Sorri interiormente. Os irmãos Teixeira pareciam ir com a minha cara mesmo. Desde o início. Guilherme disse que pensava do mesmo modo que o irmão. Anderson pediu licença para falar. Aguardo o que ele tem a dizer, embora já tenha uma idéia do que será.

"Andrés, é verdade o que eu soube, que na última vez em que a Sociedade se reuniu tinha uma mulher junto com os meninos? Anotando as coisas, como D. Stella?"

Andrés pareceu meio sem-graça. Olhou fixamente para mim, como se percebesse que eu andei bisbilhotando coisas.

"Quem lhe disse isso?"

"Não interessa quem me disse isso. Tinha uma mulher ou não tinha?" Anderson parecia resoluto. Os outros ficaram todos olhando para Andrés, à espera do que vinha. Este ficou acuado e acabou confirmando que isso aconteceu na classe de 1957. Houve um silêncio absoluto. Podíamos ouvir os touros respirando de suas baias.

"Vocês dois são voto vencido", disse Anderson aos dois membros recalcitrantes, "por mim ela é tanto da Sociedade quanto eu."

"Não tão rápido, Anderson. Eu não quero que ela faça parte da Sociedade. Isso não é coisa pra mulher. Já conversei bem com a D. Stella sobre isso. Ela conhece minha opinião, não é D. Stella?" e Adriano olhava para mim como quem realmente esperava uma confirmação (eu confirmei logo para ver se ele tirava os olhos de cima de mim), "então, estou com o Bruno e o Arthur."

"Isso não é mesmo coisa de mulher. Tem muita violência no meio, não é coisa que fique bem na cabeça de uma mulher, toda cheia de negócio sentimental", argüiu Arthur, contrariado, ao ver que iria perder a discussão.

"E o que ela pode fazer aqui, além de tomar notas?", ajuntou Bruno.

"Já chega… Vocês três estão perdendo tempo com isso. Ela pertencer ou não à Sociedade não está mais em discussão. Eu disse a vocês, está feito, está feito. Vamos em frente, que a cidade não tem mais como esperar." Andrés começava a ficar impaciente com a conversa.

Houve uma pausa. Andrés começou a falar sobre os princípios da religião local. De como ela se misturou à religião predominante no sul de Minas Gerais, o catolicismo, criando uma variante sincrética. Logicamente não disse isso com essas exatas palavras, mas em seu modo simples, parecia bem seguro do que dizia.

"Acho que vocês não têm idéia do que aconteceu aqui ou tem acontecido desde o início." Eu disse, repentinamente.

Todos voltaram os olhos para mim, todos curiosos, sem exceção. Arthur foi o primeiro a me perguntar o que eu queria dizer com aquilo. Eu os fiz ver que havia uma lacuna de pelo menos 10.000 anos entre o alvorecer da religião deles no Neolítico e o surgimento do mitraísmo na Índia, Pérsia e Roma antiga.

"E o que isso quer dizer?", perguntou Anderson, atento.

"Quer dizer que os princípios desta religião que influenciou indianos, persas e romanos podiam ser encontrados nesta cidade milhares de anos atrás. A religião de vocês é localmente independente e tem em comum alguns dos fundamentos do mitraísmo. Eu não tenho certeza se vocês sabem exatamente sobre o que estão sentados."

"Nas arquibancadas?", brincou Bruno.

Eu tive que rir, junto aos outros. É bom descontrair. Bruno tomou a dianteira para compensar pela brincadeira e disse que eu muito bem poderia ter razão no que eu afirmava. Perguntou se eu achava que a religião deles tinha influenciado o mitraísmo. Eu disse que não, mas que o simples fato dela existir em seus fundamentos, num lugar tão longe de onde o mitraísmo se originou já era algo muito além do fantástico mais fantástico que poderíamos imaginar. Muito além da própria imaginação humana.

Houve um silêncio. Ruídos de metal dos dois touros agitados dentro das baias, o som dos corpos se chocando ocasionalmente, a respiração densa e profunda dos animais preenchendo o vazio deixado pelas nossas vozes. Andrés e Adriano pareciam aturdidos. Como se nunca tivessem parado para pensar nisso. Bruno e Renan se encostaram nas arquibancadas, ofegantes, como se tivessem corrido quilômetros e sentado ali. Guilherme brincava distraído com os cadarços dos tênis. Arthur estava trancado em si mesmo, em silêncio pensativo. Pelo modo como me olhava, dava para ver que media ainda interiormente o impacto que minhas palavras pudessem ter causado. Anderson estava pensativo também, mas foi quem primeiro quebrou o silêncio.

"A senhora acredita que os touros fundaram a cidade?"

"Depois de se pensar há quanto tempo essas coisas acontecem aqui, antes de até mesmo a história começar, já nem sei se é importante acreditar ou deixar de acreditar nisso. Quando se vê tanta coisa acontecer ao redor que se achava impossível acontecer, já nem sei mais."

Mais uma pausa. Eu disse a eles que o sacrifício dos touros que simbolizam a Lua tinha um sentido diferente do que eles atribuíam. Que os homens sacrificando os touros, um elemento masculino, cujo sangue iria fertilizar a terra simbolizavam o derramamento do líquido que fecunda a terra. Cada um, feminino e masculino, tinha de dar a sua cota de sacrifício.

"Que líquido?" perguntou Arthur.

Anderson olhou para ele e riu.

"Que é isso, Arthur, quem ouve vai pensar que você nunca bateu uma punheta na vida… Ahn… Desculpe, D. Stella."

Risadas gerais, menos da parte do inocente lidador que tinha feito a pergunta, que ficou vermelho mesmo sob a luz baixa do ambiente da arena. Eu confirmei a resposta de Anderson mas fiquei de discutir com ele o método de ensino.

"Nossa religião não é exatamente o mitraísmo. Mas ele é o mais aproximado de todos, por isso nossa religião têm esse nome. A religião veio de uma coisa que só existia aqui, por causa de alguma coisa que era precisa aqui em Taurinos. No livro que meu avô achou…"

Não consegui resistir nesse ponto e o interrompi.

"E sobre esse livro, Andrés? Onde anda esse livro do qual eu só ouço falar e nunca vejo? Parece que ele é a base de tanta coisa por aqui, mas é um livro ausente, ninguém sabe o paradeiro de tanta informação valiosa."

"A pergunta é boa", ajuntou Anderson, "tudo o que a gente sabe sobre a cidade e os nossos costumes e religião está nesse livro. Eu acho que todos devíamos ler e estudar o livro porque isso tudo é bem complicadinho…"

Andrés coçou a cabeça. Disse que não sabia onde estava o livro. Perguntei como ele poderia não saber se o livro tinha sido achado por seu avô e, pela importância do assunto para a cidade, deveria ser uma relíquia ou um tipo de relíquia em sua casa.

"Seu pai nunca disse onde estava o livro ou ele também não sabe?", perguntou Renan, voltando à vida na discussão.

Andrés pareceu nunca ter pensado nisso do alto de seus 12 anos de vida. Vejo que tanta coisa ficou por explicar, mesmo para quem está no leme da situação.

"Eu vou perguntar a ele", ele disse, dando de ombros.

"Eu já perguntei isso a ele", interveio Adriano, atraindo para si a atenção de todos, "e ele respondeu que não sabia, mas que deve estar com um dos Taurinos antigos, da classe de 1957, porque todos eles leram o livro."

"Por que você nunca me disse isso?" Andrés parecia irritado.

"Simples. Porque você nunca perguntou."

Risadeira geral, eu incluída. Andrés ficou batendo o pé como sempre faz quando está nervoso. Adriano sorriu para mim, como se dissesse mudamente que tinha seus momentos de iluminação também. Arthur propôs que nós conversássemos com os pais de todos a ver se eles conheciam todos os Taurinos antigos e onde poderiam ser encontrados. Bruno então nos disse que seu avô tinha sido um dos lidadores, assim como o avô de Anderson. Os dois ainda viviam, ainda na cidade.

Andrés mudou de assunto (o assunto do livro o deixava francamente desconfortável). Disse que a data da cerimônia se aproximava rápido e que não teríamos muito tempo para preparativos. Perguntou aos outros o que sentiam com a perspectiva da cerimônia tão próxima. Bruno respondeu que se sentia pronto e que sua disposição era o melhor preparativo de que ele podia dispor. Adriano assentiu, balançando a cabeça. Acrescentou que sua raiva contra os touros e a força que os enlouquecia era o que o deixava pronto para a batalha.

"Você só tem que deixar a raiva crescer em você, até que você seja só raiva dentro e nada mais. É tudo muito simples."

Anderson afirmou que a lida era parte da vida de todos ali e que considerada a partir deste ponto de vista, não seria difícil. Mas manifestou preocupação pela energia a mais que a loucura emprestava aos animais, já grandes e pesados por natureza. Mesmo assim, ele sentia que estava preparado para a batalha. Renan se divertia contando aos outros como faria com o touro na arena. Foi perturbador notar que nada do que ele dizia era levado na brincadeira, fosse por ele ou pelos outros. Mais perturbador ainda era a sensação de que ele era capaz de fazer exatamente aquilo que ele propunha ali, com todo o poder de seus requintes de crueldade.

Guilherme riu do projeto do irmão e acariciou a cabeça dele como bom irmão mais velho. Disse que estava ansioso pelo dia e que acreditava que tudo ia correr como planejado. Andrés por sua vez, falou que todos conheciam suas motivações e sua vida diária com os touros e que isso bastava para firmar sua posição dentro da conversa.

"E… Arthur? Ficou faltando você. Então… Como 'tá se sentindo com a cerimônia assim tão perto?"

"Eu estou com medo", ele disse, os olhos começando a marejar.

Andrés se ergueu e veio para perto dele. Olhou o amigo nos olhos e se espantou ao ver no rosto dele uma lágrima rolando.

"Que é isso, irmão? Coragem, o ritual vai ser…"

"Eu não estou falando do ritual, Andrés. Essa noite, eu sonhei com um daqueles touros. Era hora do almoço (me lembro até do relógio marcando meio-dia e pouco) e ele tinha invadido a minha casa, e já estava pra vir pra cima da minha irmã menor. Eu chamei a atenção dele com uma pedrada na cabeça e ele veio. Eu estava até com um machado na mão, mas não tive tempo. Foi rápido demais. Ele me esmagou contra a parede, senti como se o chifre tivesse ido em mim de fora a fora; eu vi o meu sangue e uma parte das minhas tripas saindo…" Arthur enterrou a cabeça nos braços e o corpo se sacudia diante da consternação geral.

"Creio em Deus Padre!", murmurou Anderson olhando para Andrés e se persignando.

"…eu morria no sonho e antes de morrer, eu via o céu cheio de urubus. Me lembro que foi a última coisa que eu vi antes de acordar. Minha mãe veio ver porque eu tinha gritado e tudo."

O silêncio que se "ouviu" nesse momento foi denso. Pesado, oprimia, lançava sombras até pelos lugares onde a luz iluminava. Os ruídos dos touros contra as barras de ferro e seus ocasionais mugidos nos lembrando da ameaça sempre presente, tornando ainda mais insuportável a sensação de opressão dentro daquela câmara sombria. Uma angústia se desenhou dentro de mim, de vivenciar aquele momento em que, mesmo podendo estar redondamente enganado, uma pessoa daquela idade falava abertamente numa pré-experiência de sua possível morte. Não pela morte em si, que para isso caminhamos todos, mas pelo infinito terror de simplesmente deixar de existir. A vontade desmesuradamente cavalar de viver que se vê forçada a enxergar além de seu próprio véu. Andrés tomou a dianteira no processo e fez com que Arthur levantasse a cabeça e olhasse para ele.

"Isso é só um sonho. Você está impressionado com o que está acontecendo na cidade, é só isso", disse, tentando fazer o amigo voltar aos bons espíritos.

"Verdade", eu me apressei a fazer coro com Andrés, "está todo mundo muito nervoso na cidade e no campo. Vamos todos tentar manter a calma. Eu sei que está realmente difícil, mas a gente tem que tentar. Se vocês, a Sociedade Antiga dos Taurinos, que detém o modo de resolver isso tudo, começarem a ter esses problemas, não vai haver futuro para essa cidade nem para sua gente. Mantenham a cabeça e o espírito erguido. Mostrem aos touros, ao Grande Um, ou o que quer que seja de uma vez por todas qual lei tem que prevalecer!"

"Isso aí, D. Stella! É, Arthur; sai desse buraco, vamos pra cima deles, vamos mostrar quem é que manda aqui", gritou um entusiasmado Bruno em total aprovação de tudo o que eu havia dito.

"Eu bem sei", ele ainda soluçava, "mas foi tudo tão real. Tão real…"

Os outros se juntaram em torno de Arthur e sem aviso o agarraram e jogaram para cima diversas vezes, agarrando-o de novo antes que tocasse o chão, rindo como doidos. Incrível como ele parecia mais aliviado depois da brincadeira. Se bem que não fosse nada recomendável para alguém em sua condição, foi sem dúvida uma demonstração do calor humano reinante entre os membros da Sociedade que fez todos rirem, Arthur incluído.



"…eu morria no sonho e antes de morrer, eu via o céu cheio de urubus. Me lembro que foi a última coisa que eu vi antes de acordar."

Arthur



O aroma de café que vazava de dentro da casa pequenina em minha frente me atraía agora tanto quanto a conversa que quero ter com "sêo" Danilo. A noite caiu sobre as cabeceiras das montanhas em redor, trazendo para o céu o brilho da lua sempre crescente. Faz dias que não apareço, tenho muito para conversar. Ele ficou feliz em me ver como sempre cruzar a soleira da porta de sua casa para dois dedos de prosa. Sempre que venho aqui não consigo evitar de pensar em todo o isolamento que ele impõe a si mesmo vivendo aqui no meio do nada.

Uns poucos touros e vacas pela estrada. Estranhamente calmos quando eu passo, se bem que um deles ensaia me dar uma corrida. Estes touros não andavam por aqui nas vezes em que eu vinha, o que me remeteu à conversa de "sêo" Danilo com Duílio no carro, ontem de manhã.

"Vem pra dentro, "sá" Stella. Estou só terminando de passar o café", e depois de uma pausa, disse, "ontem não deu pra gente conversar direito, a senhora estava com toda a família junto…"

"Notei que o senhor não queria dar a entender que já nos conhecíamos."

"A senhora não levou a mal, não?"

"De jeito nenhum. Prefiro que seja assim mesmo."

"A senhora já foi à arena?" ele deu uma guinada no assunto.

"O Mithraeum?"

Ele me olhou surpreso enquanto lavava o coador de café. E sorriu.

"A senhora é danada pra descobrir as coisas, hein, "sá" Stella?"

"Eles não podem mais brincar de esconder comigo, sou um deles agora."

O rosto dele assumiu uma expressão grave e séria que chegou a me incomodar. Ele se sentou à mesa comigo, colocou duas canecas que encheu de café. Me deu o açúcar. Minha apreensão crescia enquanto o silêncio dele durava e eu estava a ponto de lhe pedir que falasse algo quando ele olhou para mim.

"Eu precisava conversar com a senhora sobre isso."

"Por favor, diga logo, que vai me matar de tanto esperar nesse suspense."

"Última vez que a senhora esteve aqui me contou sobre a reunião. Sobre como o gordinho fez a senhora escrever seu nome embaixo do nome do Renan, lembra?"

"Claro, isso deu pano pra mangas hoje à tarde na reunião no Mithraeum. Andrés teve que encerrar o bate-boca dos meninos que não me queriam lá dizendo que o que estava feito, estava feito."

"Esse é o ponto, D. Stella."

"Não estou entendendo, "sêo" Danilo."

"A senhora é uma dos Taurinos agora, como acabou de me dizer. E isso para todos os efeitos. Todos mesmo."

"Ainda não estou entendendo."

"Se um dos meninos não puder participar da cerimônia, se por algum motivo tiver um impedimento…"

"…eu vou ter assumir o lugar." Meus olhos fitaram o sertanejo por uns momentos. Eu não sabia o que dizer à parte da constatação de que eu era a próxima da fila. Comecei a tremer, tremores por todo o corpo que eu simplesmente não conseguia controlar.

"Por favor, tenha dó, "sêo" Danilo; diz que está brincando comigo."

"Quem dera eu estivesse de brincadeira, "sá" Stella", disse o sertanejo tomando mais um gole de café, "e tem mais: sua vida se tornou ligada demais a Taurinos para a senhora sobreviver à morte desta cidade; seria a sua morte também. A nossa. A de todos em Taurinos."

Sentada e desanimada. Um desânimo de tudo, mesmo quando "sêo" Danilo me encorajava a relatar a reunião de hoje no Mithraeum. Juntando as forças e os cacos, comecei a narrativa, tão detalhada quanto eu pude no estado de nervos em que estava, narrativa que ele ouviu com a habitual atenção sem jamais me interromper com comentários.

Notei que o rosto dele foi ficando tenso desde as minhas primeiras palavras. Me perguntava porque, mas não queria perder o fio de minhas próprias idéias para ver se não esquecia nada. Ao terminar, perguntei se tudo estava bem com ele. Porque comigo positivamente não estava tudo bem. Ele tinha os olhos arregalados, olhando para mim em total abandono à sua própria perplexidade.

"Alguma coisa tem que estar errada", ele murmurou, "isso foi exatamente o que foi discutido na nossa primeira reunião no Mithraeum, a presença de uma mulher na catacumba conosco. Até os dois touros estavam lá, tudo o mesmo, o sonho do menino, tudo, tudo."

"O senhor acha que estamos passando pelo mesmo que aconteceu em 1957 em cada detalhe? É isso que quer dizer na soma?"

"Sim, e é isso que está me preocupando."

"Isso quer dizer que o senhor já sabe o que vai acontecer?"

Minha pergunta o pegou, ou pareceu pegar desprevenido. Mas era fácil de saber que eu ou qualquer outra pessoa chegaria a essa conclusão. Se os acontecimentos têm se precipitado como em 1957, não seria lógico supor que tivessem a mesma conclusão?

"Isso quer dizer que eu me lembro do que aconteceu em 1957." Ele ficou sombrio ao dizer isso, mais do que costumava ficar diante das perplexidades do dia a dia.

Vi que não seria possível extrair muito mais dele no tocante àquele tópico em especial. Não gosto de mexer com o futuro. Me assusta até a medula dos ossos, muito mais que o passado. Eu disse que iria voltar à fazenda, tinha ainda muito que caminhar. Quase que no mesmo momento, se ouviu uma buzina lá fora. Olhei pela janela apenas para encontrar o carro de Duílio na estrada em frente à casa. Os três homens da fazenda tinham finalmente conseguido me rastrear até aqui.

"Carona, D. Stella? Hoje a senhora não vai recusar, vai?" Andrés sorria pela janela do carro.

Eu disse a eles que já estava saindo. "Sêo" Danilo me passou um papel dobrado e me disse que finalmente tinha descoberto, perguntando na cidade, o nome da mulher que participou da Sociedade em 1957. "Isso pelo menos eu acho que a senhora deve saber. Guarde isso no bolso, leia quando estiver sozinha e queime depois de ler. Tire daí as conclusões que quiser. E não esqueça, depois das seis da tarde, sempre me encontrará aqui. Venha sempre que precisar… e quiser."

Andrés desceu do carro para me abrir a porta e tudo. Agradeci a gentileza e ele disse que estava orgulhoso de mim.

"Orgulhoso de mim?" perguntei, quando Duílio já dava a partida e saía pela estrada.

"Orgulhosos", emendou Adriano, "eu achei demais o que a senhora falou na reunião. Falou pouco, mas falou bonito!"

"Não sei o que fazer para lhe agradecer pelo que fez na reunião. Essas coisas são tão desmotivantes para a meninada, como é bom ter alguém para levantar o espírito deles um pouco!", acrescentou Duílio enquanto ficava de olho na estrada.

"É o que quero conversar com vocês. Precisamos ficar de olho no menino."

Andrés, Duílio e Adriano (nessa ordem) olharam para mim, como se estivessem surpresos.

"Que é isso, D. Stella, não vai levar a sério, foi só um sonho", assegurou Andrés.

"A senhora mesmo disse, todos estão nervosos por causa da lei dos touros, isso é normal acontecer. Arthur está impressionado, já vem assim de uns dias", Adriano se apressou em acrescentar.

"E ele tem tido o sonho todos esses dias?"

"Só desta vez que ele contou, acho que foi só uma vez mesmo." respondeu Adriano.

"Mesmo assim, eu acho que a gente deve ir preparado até a fazenda dele nos próximos dias lá pelo meio-dia (a hora que ele diz ter visto no relógio) para assegurar que nada vai acontecer. Porque pode não ser nada. Mas e se ele "viu" o que não podemos "ver", como você, Andrés, sempre diz? Você mesmo não tem seus presságios? Seu pai não diz que eles funcionam? E se o dele funcionar?"

Silêncio dentro do carro, só o ruído do motor denunciava atividade ali dentro. O resto eram homens pensativos abandonados às suas reflexões. Os homens da fazenda terminaram dizendo que poderíamos ligar para os outros pais e revezar indo até lá aos meios-dias para ajudar a vigiar a casa contanto que eu fosse com eles nos dias que tivéssemos de ir. Aceitei imediatamente. Não sei porque, me senti como se tivesse tirado um prédio de cima de mim.

Na fazenda, me demorei um pouco mais no alpendre, enquanto os homens da casa já tinham entrado. Tirei o papel dobrado que "sêo" Danilo tinha me passado e abri. O nome no papel não poderia ser mais familiar. O nome dela era Estela.

Misteriosas barricadas | Dez homens

Rádio Universal: Um Amor Como Sangue

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