segunda-feira, 2 de março de 2009

Misteriosas barricadas

No alpendre, quartel-general ao ar livre de todas as minhas reflexões desde que aqui cheguei naquela sexta-feira 13. Será um presságio, como sempre diz Andrés? Estou sozinha no alpendre. São sete horas da manhã. Um vento estranho varre as encostas da montanha em frente à fazenda em meio ao sol da manhã que mal começou por aqui. Tudo é silêncio dentro da casa. Hoje os Conselheiros parecem ter desligado o despertador e amordaçado os galos bem longe dali. Não posso culpar nenhum deles. Ontem, o dia foi de lascar. Para todos nós.

No entanto, me assusta a frieza com que as pessoas tratam a vida humana (seja um ladrão, seja o que for) em Taurinos e tantos outros lugares. Tudo é calculado, meticulosamente planejado e levado a cabo. Os ladrões são abortados depois de adultos. Termina ali seu ciclo de vida torta, sua permissão expirou. Duílio parece ver falta pior nos filhos em falar palavrões diante de uma mulher com quem não tiveram mais de um mês de convivência ainda do que em vê-los enterrar corpos de criminosos apanhados com a boca na botija em Taurinos (e, sabe Deus, até matar, porque nem perguntei quem realmente acabou fazendo os caras).

Aparecida me surpreendeu, tomando minha defesa. O resto era de se esperar. A pessoa que reza para que tudo saia bem, mas procura não interferir nos assuntos importantes do lugar, meio que uma Amélia, mulher de verdade, atrelada quase que cegamente aos desígnios do marido e dos filhos, verdadeira ilha cercada de homens por todos os lados. Noto que ela se permite uma discórdia marcada do resto do clã (ainda que manifestada timidamente, sem muita veemência). Mas acho que isso é muito pouco para a dimensão do problema.

Um som de motor de uma caminhonete descendo a estrada, vindo em direção da fazenda. A caminhonete encosta em frente ao alpendre e um funcionário desce da cabine com uma prancheta na mão.

"Sr. Duílio Lima Conselheiro se encontra?", ele me perguntou, após tirar o chapéu em cumprimento.

"Acordei uma meia-hora atrás, mas acho que devem estar dormindo. Não há um som dentro da casa…"

"E a senhora não poderia receber essa encomenda para mim? Senão tenho que voltar mais tarde e aqui é contramão pra raio. Depois ainda tenho que fazer Luminárias, São Bento Abade e Baependi, que já é bem pra outro lado… Olha, é só assinar, eu tenho caneta. A encomenda já foi paga, viu?"

Assino meu nome e ainda ajudo o funcionário a empilhar as caixas de papelão no alpendre. Ele agradece e desaparece na estrada em frente à fazenda Taurinos. Só então paro para observar as caixas, escritas em português e alemão, mas entendo finalmente que são dardos tranqüilizantes. Outras carregam uma medicação, chamada Rompun®. Outras três caixas são diferentes das outras. Dentro há rifles de dardos, como indicado na embalagem. Declaro aberta a temporada de caça aos Sagrados em Taurinos.

O silêncio volta ao lugar por mais algum tempo. Os pássaros cantam melodias estranhas no vento que sopra sem parar das encostas para cá. As nuvens estão altas, movimentando-se com preguiça pelo espaço azul que sobra entre elas. É uma bela manhã, sem dúvida, mas impregnada do estranho sentimento de que algo se quebrou. Em mim, que fiquei mais chocada do que gostaria de admitir ao desvendar a história das ferramentas.

Eu não tinha idéia do processo que estava por desencadear ao acender as luzes e pedir que todos se manifestassem com a maior franqueza possível. Mas aquilo foi o estopim para uma série de confirmações, algumas esperadas (como a das ferramentas, que confirmou minhas piores suposições), outras inesperadas como a reação de Aparecida ao incidente e a visão de Andrés da minha descoberta das formas-pensamento no telheiro no mesmo momento que eu, mas dentro do carro a quilômetros de distância daqui.

Sinto-me oficialmente ameaçada de morte na fazenda Taurinos. Mas dei a minha palavra de que irei até o fim dessa história (para mim, ajudar a resolver o que quer que esteja provocando o problema no cliente). Sei muito bem que mais provavelmente fui trazida aqui para ajudar Andrés a captar o bicho-papão que eles chamam de Grande Um. Não me importo. Se é isso que vai restituir seu eu anterior, irei com ele até o inferno disso tudo para ter certeza de que o tal Grande Um se foi.

Café na mesa, mas em silêncio. Nos cumprimentamos para manter os limites da decência comum. Todos parecem chocados ou aborrecidos com todos esta manhã. Nada surpreendente depois de ontem, mas breve teremos de nos falar. Não esqueço de que fui "tranqüilizada" pelos homens da casa quanto a poder sair da cidade ainda viva depois que todo este pandemônio passar. Se todo este pandemônio passar.

"Posso me considerar oficialmente ameaçada de morte ou haverá uma redenção para mim por saber mais do que deveria?"

Ninguém olhou para mim, senão que o pai e os dois filhos trocaram olhares significativos. O silêncio era agora algo a se usar para perfurar os tímpanos. Nem os pássaros cantando estranhas melodias davam o ar da graça. Escolhi a pergunta mais picante de meu repertório para abrir os trabalhos do dia.

"A senhora foi iniciada. Não corre esse risco. Não faríamos isso nem que quiséssemos, agora que é um membro da Sociedade Antiga dos Taurinos." Duílio falava como se o motivo fosse final e pudesse realmente impedir minha execução sumária. Mas eu fingi estar mais tranqüilizada. Hora de tocar pra frente. Até perguntei se os meninos não estavam atrasados para a escola.

"Não tem escola hoje, nem vai ter essa semana. A escola está fechada", esclareceu Adriano, " porque a cidade está construindo barricadas pra todos os lados, por causa dos touros que fugiram das fazendas e estão infernizando por lá."

Lá fora no alpendre Duílio ficou satisfeito em ver que sua encomenda tinha chegado. Ele e os meninos me agradeceram por receber a encomenda, desempacotaram os rifles e ficaram examinando as armas como se tivessem passado a vida inteira fazendo isso. Três rifles para um homem ansioso e dois jovens ansiosos.

"Pai, o Rompun® veio nessas caixas." Adriano olhou para Duílio.

"Rompun®?", lembrei o nome e aproveitei para perguntar a respeito mesmo sabendo o que devia ser.

"Ele está falando de um anestésico e tranqüilizante para gado bovino", explicou Duílio, "ele é colocado nesses dardos aqui que vão dentro dos rifles."

"Você vem para a cidade com a gente, D. Stella. O prefeito quer falar conosco." Andrés falava sem olhar para mim, enquanto examinava o rifle e os dardos que tinha nas mãos.

"E eu o que tenho com o prefeito?"

"Tem que nós dissemos a ele que você "vê" e pode ajudar a encontrar o Grande Um em um dos touros." Andrés esclareceu o ponto.

"Há um detalhe que não consigo entender", declarei, "se o Grande Um está em um dos touros ou bezerros ou seja lá o que for, é então uma questão de expulsá-lo da cidade? Digo, ele já está entre nós, certo?"

"Verdade", foi Adriano quem respondeu, "é a primeira vez na história que ele consegue entrar na cidade, parece. O poder dele está na cidade, não mais em volta como costumava ser para os antigos. Por isso essa semana vai ser louca desse jeito."



"Agora, o Souza tá com o mercadinho aberto mesmo assim. Diz ele que vai desafiar a lei dos touros… Famosas últimas palavras…"

"Sêo" Danilo



No perímetro urbano da cidade, misteriosas barricadas. Emprestando um ar de desolação à cidadezinha, que parecia ter sido bombardeada. Fogões velhos desmontados, restos de automóveis, arame farpado, madeiras e barris, entulho, muito entulho, toda a tranqueira disponível usada para aqueles muros temporários. Me toco que é a primeira vez que venho à cidade desde que cheguei a Taurinos. Me apercebo agora claramente da liderança que os Conselheiros exercem sobre a povoação; eles parecem mesmo fazer jus ao próprio sobrenome. Pelas ruas, dirigindo devagar por entre touros e vacas (e sem saber de onde viria o primeiro ataque) pudemos ver a expressão desolada das pessoas, a acenar e desejar boa sorte, "vejam lá o que podem fazer por nós", pessoas que não conseguiam sorrir nem para um cumprimento. Tudo é cansaço e uma sensação morna, embaçada, que a tudo envolve em dias de Grande Um. Um ar pesado que nem o vento constante da região montanhosa consegue renovar. Fomos assim cumprimentando toda a cidade acabrunhada de Taurinos, metida em meio à confusão de vacas e touros paralisando o pouco tráfego local, comércio fechado em plena segunda-feira.

"Que o Astro-Rei ajude todos vocês no dia 7!", gritou um senhor na rua, cuja voz eu reconheci. Era ninguém mais, ninguém menos que o "sêo" Danilo. Andrés o viu e o chamou para perto do carro. Ele veio com um passo tímido de mineiro e encostou na janela no lado de Andrés.

"Aopa, "sêo" Duílio! Andrés… Então… Estão de caça hoje?"

"! E como! OPCV!", e Andrés mostrou a arma carregada com os dardos ao antigo Taurino. Este aprovou, mas tinha o olhar cansado como todos os outros na cidade. Cumprimentou a mim e ao Adriano. Polidamente, mas como se nunca tivesse me visto na vida. Acho que ele não queria que os homens da fazenda soubessem que eu andava conversando com ele em sua casa. Talvez seja melhor assim mesmo.

"A coisa está feia dessa vez", "sêo" Danilo informou, "dois touros entraram na casa do Souza do mercadinho e ele teve que expulsar usando umas bombas de São João que ele tinha guardado. Mas quebraram vidros, imagina se entram no quarto em que eles têm a criança dormindo? Agora, o Souza tá com o mercadinho aberto mesmo assim. Diz ele que vai desafiar a lei dos touros… Famosas últimas palavras…"

"Seis dias mais e a lei vai voltar a ser a nossa", disse Andrés como numa promessa.

"Que o Astro-Rei te ouça, meu jovem", "sêo" Danilo sorriu.

"É, até o prefeito pediu pra gente vir", ajuntou Adriano.

"Mesmo? Leva lençol que vai ser pior que o rio de Piracicaba de tanta choradeira", "sêo" Danilo riu, "mas, entre nós, aquele também é um bundão que está lá, em vez de sair pra por ordem no galinheiro e ajudar a comunidade a resistir, fica escondido atrás da mesa, com direito à barricada especial de autoridade."

"Na sua área, como está a situação?", quis saber Duílio.

"Ah, "sêo" Duílio, pra lá tem menos gado, mas está parecendo que uns estão vagando a cidade toda. Vi uns touros com marca até do curral de vocês e são uns cinco quilômetros até a minha casa. Eles estão se espalhando pela cidade e se for para dar o golpe mortal vai ser quando não tiver parte da cidade que não tenha touro vagando por lá."

Depois de mais alguma conversa, tomamos o rumo da Prefeitura. As mesmas barricadas em todo lugar, impedindo a passagem do carro, forçando Andrés e Adriano a descer do carro, remover tudo e recolocar tudo no lugar, numa trabalheira tediosa e cansativa. O prefeito correu conosco para sua sala, mandou vir café, água, chá, o diabo a quatro.

"Graças a Mitra vieram, Duílio… Essa é a nossa vidente?"

"Não sou vidente; apenas tenho uns episódios de…"

"Ela mesma", cortou Andrés olhando sério para mim (mais uma tentativa e minha canela fatalmente pagaria o preço), "a gente tem rodado as fazendas juntos procurando os bezerros recém-nascidos."

"Eu rezo pra que vocês consigam encontrar logo e acabar com isso. Estão destruindo a cidade, vocês estão vendo aí pelas ruas. E eu não sei mais o que fazer; por mais que eu pense vai ter tudo no mesmo lugar. Não admira estar um inferno esta cidade, não se tinha registros dele ter entrado na cidade desde o começo de tudo."

"É, o nosso tempo é mesmo especial", murmurou Duílio brincando com uns pesos de papel sobre a mesa do prefeito, "falando nisso, nós trouxemos o Rompun® para os outros fazendeiros, foi uma compra conjunta que a gente fez não tem um mês."

"Deixe o medicamento aqui, eu aviso que eles venham recolher. Eles têm os rifles?"

"Sim, parece que os Conselheiros foram os últimos a encomendar os seus", informou Adriano, rindo.

Lá fora, o som de vidros quebrados e os mugidos próximos. Vão entrar aqui na Prefeitura? Os meninos olharam lá fora pela vidraça e lá estava ele, furioso. Andrés olhou para nós, sorrindo.

"OPCV, ele é de lá da [fazenda] Taurinos, o nosso "A" na traseira", e, ato contínuo, arrebentou a vidraça da sala do prefeito com a coronha do rifle e disparou um tiro certeiro no pescoço do animal. Ainda levou algum tempo, mas ele foi aos poucos obedecendo à sonolência da medicação.

"Vamos precisar de uma caminhonete de gado pra levar isso", Andrés comentou com o prefeito. Não foi um comentário, foi uma ordem. Em menos de dez minutos o bicho estava acorrentado à traseira do caminhão gradeado. Andrés nem se desculpou pelo vidro quebrado (até porque o que mais não estava quebrado em volta?), como nos filmes do Espaço Do Horror Produzido Em Hollywood, movimento que achei engraçado, mas nem um pouco criativo. Mesmo assim, provou ser um movimento eficiente.

Nas ruas, o movimento baço e lento contrastando com a inquietação nos movimentos dos animais que se viam por toda a parte, tomando praças, ruas, movimento de gente reforçando barricadas, o trabalho tedioso de descer do carro e remover as barricadas de tempos em tempos para podermos passar, ainda mais com a fera sobre o caminhão que vinha logo atrás de nós.

E foi numa dessas descidas do carro que ele veio. Desta vez foi Adriano quem o viu de longe, e foi de longe que percebeu que o animal viria direto para cima de nós. Disse que o pai parasse o carro, Duílio perguntou se ele iria arrebentar o para-brisas do carro também, como o irmão tinha arrebentado a janela do prefeito. Ele riu, pulou do carro e esperou. O bicho então parou a uns cinqüenta metros dele e se aquietou.

"Não é nada, é café pequeno", e ele virou as costas para o touro e vinha voltando para o carro quando nós gritamos o nome dele. Não houve tempo.

O café pequeno colidiu com a porta ainda aberta do carro e com Adriano, a uns 50 km por hora, atirando o adolescente uns bons metros dali. Como uma planária, ele se arrastou pelo chão, buscando a arma. Andrés e Duílio correram para fora com os rifles, mas um tiro desesperado de Adriano acabou jogando o touro no chão. Adriano ainda teve que rolar bastante na terra para sair do alcance do animal até que o tranqüilizante começasse a fazer efeito. Nem acreditou que conseguiu voltar ao carro, imundo de terra vermelha.

Começou a juntar gente. Andrés e o pai aproveitaram os curiosos para um mutirão a ver se colocava o bicho junto ao outro no caminhão, enquanto eu olhava Adriano para ver se estava tudo bem. Ele estava ralado e com uns hematomas, mas nada significante considerando o peso do ataque do touro sobre ele. Mas que operação. E eu e Duílio praticamente não estamos fazendo nada a não ser ele dirigir e eu sorrir para as pessoas de Taurinos que eu não conhecia e fiquei conhecendo hoje. A igrejinha da praça principal começa a dizer as horas com as preguiçosas batidas de seu sino, que agora são doze. É, tudo isso antes do almoço.

A hora dos ruminantes | Religião de mistérios

Rádio Universal: Um Amor Como Sangue

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe aí algumas linhas. Agora, sem essa de Viagra ou Tramadol ou coisas do gênero ou seu comentário vai para a lata do lixo.