quarta-feira, 4 de março de 2009

Dez homens

Seis horas da manhã. Alpendre (onde mais tenho a visão magnífica dessas montanhas e o frescor dos azulejos portugueses que me devolvem a infância perdida?). Meu laptop. Abro o arquivo de texto com a ata da fundação da Sociedade Antiga dos Taurinos e apago meu nome. Ao tentar salvar o arquivo, o laptop me avisa que ele está protegido contra gravação, configurado para somente leitura.

Fecho o arquivo, abro a pasta dele e peço as propriedades de arquivo. Realmente, está ajustado para somente leitura. A diferença é que eu não posso tirar o tick da caixinha ao lado do atributo de somente leitura. Eu jamais configuro somente leitura e mesmo que tivesse configurado, a caixa de verificação não tinha que estar desabilitada com o tick dentro dela. Clico outras caixas de verificação para ver se ela se habilita, mas qual o que.

É como se o arquivo tivesse se auto-travado. E mais, ao tentar deletar, tudo o que consigo é acesso negado. Impossível deletar o arquivo. Reinicio, mas dá no mesmo. Tento deletar a pasta, mas o arquivo lá dentro não pode ser deletado, portanto nem a pasta que o contém pode ser deletada. Assombrada, faço mais algumas tentativas, mas acabo desistindo.

Meu mp3. Não o tinha tirado da bolsa desde que cheguei. Canções de todos os tempos e todos os estilos. A loucura tem sido grande neste lugar. Faz esquecer tudo mais. Coloco os fones no ouvido e configuro para aleatório. Adianto uma faixa para ativar o aleatório. Entra uma música balançada. Começo a prestar atenção na letra.



"Dez homens em um único filho pródigo. Dez homens transcendem. Estamos sentados de boa, apreciando a vista. Nos permitindo prazeres que não podemos levar conosco. Sim, estou obcecado. E devo confessar: preciso descansar. Dez homens todos enrolados em um. Dez homens em um filho pródigo. Dez homens transcendem. Desta vez, a vida é curta demais. Preciso de experiência, como um adolescente. Preciso de toda essa exuberância, vamos deixar esse negócio de crescer para depois."

Dez Homens, escrita e gravada por Morcheeba.



Sorrio interiormente observando o quanto uma música aleatória pode falar do momento em que vivemos, quanto da letra coincide com o que está à sua volta. Brincando nos Jardins Sagrados do Reino Divino da Escolha Aleatória, me abandono ao ritmo e à melodia da canção.

Sete horas no relógio de tela do meu laptop. Atualizo o blog, antes do café. Antes do telefone começar a tocar sem parar. Antes que o caos e a confusão de Taurinos cheguem pondo a porta abaixo. Duílio é o primeiro a empurrar a porta de tela do alpendre. O rosto é não só de sono, mas das noites mal-dormidas. Ele me pergunta se o telefone tocou enquanto ele estava fora do ar. Eu digo a ele que não.

Hoje resolvi fazer o café. Deixei na garrafa térmica. Trouxe um bom gole para o alpendre para ficar no computador enquanto o dia terminava de amanhecer sobre as montanhas de Taurinos. Duílio senta-se numa cadeira ao lado da minha e fica ali, aquela cara típica de uma manhã de ressaca. Ele começa a pescar. O pobre homem está no limite das forças. São precisos dez homens em um, como disse a canção. Dez homens metidos nesta história: Duílio, "sêo" Danilo, Adriano, Anderson, Andrés, Arthur, Bruno, Guilherme e Renan. São nove, não dez. Será que a canção tem razão? Quem é o décimo homem?

Como que para responder minha pergunta, um som de motor na entrada da fazenda. O mesmo carro que ontem tocava a canção de Zé Vicente. Não há música hoje e sim um volume que o pai de Anderson traz de dentro do carro. Ao ver Duílio e eu nos cumprimenta e conversa com o chefe de família sobre a situação na cidade. Os touros, segundo ele, estão se espalhando cada vez mais pelo município. Ele diz que chegará um ponto em que nenhum fazendeiro terá uma cabeça de gado que seja em seu pasto. O pai de Anderson fica intrigado sobre como os animais conseguem passar pelos mata-burros. Duílio diz que provavelmente estão arrebentando as cercas, a exemplo do que acontece em sua fazenda.

"Dá pra dizer que foi isso pelas cercas caídas e manchas de sangue no arame farpado, Alberto", ele afirmou, "mas, chega pra dentro, vamos tomar um café."

Sete e meia. Aparecida veio ao alpendre, me chamar para o café. Diz que encontrou o meu e fez mais um pouco. Na mesa, Alberto (agora eu sei o nome do pai de Anderson, então não é mais o pai de Anderson), Duílio e os irmãos Conselheiro em torno do volume que tinha sido trazido.

"Conseguimos o livro, D. Stella", disse Adriano sorrindo de orelha a orelha.

Alberto é mesmo o décimo homem. A canção estava certa. Fico me divertindo com a letra da canção e como ela vai se encaixando no que eu penso que ela vai se encaixando. Oh, Escolha Randômica! Oh, Escolha Randômica!

Nada na fazenda Feletti. Com exceção de uns touros realmente zangados ainda nos currais, nada de alarmante. No entanto, algo aqui é estranho, não exatamente negativo, mas a perfeita impressão de que um dos objetos da sala vai se quebrar em muito breve.

Por convite dos pais de Arthur almoçamos lá mesmo. De sua fazenda, iríamos direto para o Mithraeum para um pouco mais de discussão, desta vez com a base mais sólida do livro dos Antigos. Arthur parece mais calmo que ontem. Perguntei a ele como tinha passado a noite. Ele disse que foi calma, sem nenhum sonho do qual se lembrasse. Duílio passou parte do almoço fora, em longa conversa com o Sr. Feletti, titular da fazenda.

Mithraeum. A mesma luz focada no centro da arena. A mesma arena, o mesmo tudo, mas há sutis diferenças: mais dois Sagrados, um com uma mancha amarela e outro com uma mancha vermelha sobre o dorso. Foram capturados pelos irmãos Teixeira reinando na cidade sem freio e sem controle. Noto que eles ocupam as mesas posições nas baias que as cores ocupam no espectro solar. O Sagrado de Renan está primeira baia, o de Guilherme na terceira, os de Adriano e Andrés na quinta e sexta baias respectivamente. Agora faltam apenas os de Bruno, Anderson e Arthur. Guilherme e Renan estão oficialmente prontos para a batalha.

Há algo de caprichoso no esmero dos detalhes ritualísticos com que os homens da fazenda Taurinos trataram este santuário. Ao menos o que o escuro deixa entrever, a riqueza de detalhes é flagrante. É difícil acreditar que um lugar tão refinado será palco de uma carnificina nos moldes planejados pela Sociedade Antiga dos Taurinos.

No livro, a capa dura com médio-relevos de uma cabeça de touro, a Lua à esquerda, o Sol à direita. A riqueza de detalhes nos relevos e o acabamento do livro em si assombram. Não há nada escrito na capa. Os meninos estão em volta de mim, de Andrés e do livro e iniciamos todos juntos o exame do que tem ali. Sete mineiros minúsculos e sua própria cultura, que eles estão ansiosos por conhecer melhor.

"A cerimônia deve começar à meia-noite do dia marcado embora esteja marcada para a sétima hora do dia, ou seja, as sete da manhã. O motivo é que são subtraídos sete touros — representados pelas sete primeiras horas do dia — portanto são subtraídas sete horas, já que representam os bichos sacrificados, o que deixa zero." eu li em voz alta. O ruído dos Sagrados nas baias aumentou ligeiramente. Se ouve sua respiração daqui de cima a cada pausa na leitura. Como se a própria leitura do assunto os incomodasse.

"Émêzzz? Não sabia que esse era o motivo, sabia a hora de começar, mas…", declarou Arthur. Bruno e Renan também confessaram não saber uma vírgula sobre o motivo do horário estranho. Na verdade, acho que apenas Andrés sabia o tal motivo.

O livro desfiava as histórias que Andrés já tinha me contado — e provavelmente contado a todos — sobre o alvorecer dos tempos na região, a fundação, os ataques, o surgimento das primeiras cerimônias. Ali era descrito em detalhes sangrentos todo o processo de descarnamento do desgraçado animal ainda vivo num ritmo vertiginoso e nauseante de ferocidade humana ultrajante, inimaginável e incomensurável.

Olhei para Renan enquanto ele ouvia atento, os olhos soltando faíscas; um brilho no olhar que era difícil esquecer. Quanto mais sangrentos os detalhes, mais o corpo dele se agitava e mais os olhos brilhavam. Não pude deixar de lembrar do retrato dele feito por "sêo" Danilo. Se dúvida, o homem havia descrito Renan em sua inteireza. Eu continuei a ler, entrando em outro ponto e o menino me interrompeu.

"Ahn… A senhora pode ler de novo a parte do desmembramento? Tem umas coisas que eu não entendi."

Do lado dele, Guilherme olhou para o irmão e abriu bem os olhos.

"Entendeu sim, que ela não está falando japonês. Pode continuar tranqüila, D. Stella, não faça caso dele."

"Renan é um tranqueira que só pensa em sangue", riu Bruno diagnosticando o amigo instantaneamente.

"Ah, e vocês não?", o menino assumiu uma expressão zangada.

"Nós temos um objetivo, lembra? É a nossa cidade, é a nossa vida. Ou pra você é mais importante cortar um animal em pedaços vivo só pelo prazer de cortar um animal em pedaços vivo?" Andrés ficou nervoso. Os outros olhavam a cena, sabedores do tipo de energia que Renan tinha para despender. Arthur tinha atenção presa, mas não na cena. No livro.

Renan ficou em silêncio. O clima deixado pelo comentário jocoso de Bruno tinha se esvaído em algo pesado, grave. Nas baias lá embaixo, os touros se agitaram, o clangor do metal se ouvia, assim como a respiração pesada dos animais, ecoando em profundidade dentro da catacumba que era o Mithraeum.

"Eu também gosto disso, Renan. Gosto muito. Mas nós estamos fazendo isso pela cidade. Não esquece disso, a gente não pode esquecer o objetivo maior.", e Guilherme acariciou o irmão no ombro, suavemente.

"A gente bem que podia continuar a leitura. Por aqui, por exemplo. O que é esse nigucim que fala aqui sobre esse trem, Aqueles Que Retornaram?" reclamou Arthur.

Olhei em volta, pega de surpresa pela pergunta (não tinha ainda chegado nesse ponto) a ver se algum dos meninos tinha a resposta, apenas para notar que Andrés foi puxado para o livro, a face pálida como se o sangue tivesse fugido do rosto. Os outros prestaram atenção, porque como eu não tinham idéia alguma do que se tratava. Arthur passou a ler daquele ponto. Ele não lia mal, mas suas constantes auto correções de entonação me deixaram um pouco entediada.

"De 104 em 104 anos, um dos lidadores retorna a Taurinos com o mesmo corpo que possuía na cerimônia anterior. Ele vem trazer sua experiência e a luz que herdou do grande Mitra para os seis lidadores que o aguardam neste plano. De duas em duas vezes ele vem a este lugar. Dos 104 anos será tirado o zero por nada valer. O número que cabe duas vezes no que restou do número de anos é o número dos lidadores, dos Sagrados, da data e das horas da cerimônia. Prestem nele toda a atenção que tiverem, pois não retornará outra vez. Pois que é um risco imenso para este lidador retornar à Terra, pois que Aremã está sempre à espreita. Posto que ele conseguirá retornar com o lidador para dentro de seu corpo físico, se alguma das condições não for cumprida corretamente em seu retorno."

Olhei para Andrés furtivamente. Ele parecia ofegante. Ondas de vermelho e pálido se alternaram em seu rosto. Efetivamente algo que ele não sabia, a julgar por sua expressão espantada.

"Arreda, capeta!", brincou Bruno, seguido por Adriano e Guilherme.

"Creio em Deus Padre! Isso é lá assunto pra brincadeiras?" Andrés agitou os touros lá embaixo nas baias com sua onda de raiva. Os choques de metal eram a única coisa a se ouvir no silêncio que se formou após sua explosão emocional. Entendi como exagerada a reação dele. Entendo que precise estabelecer a ordem, mas uma exclamação inocente não fará qualquer mal.

"Aqui o livro fala sobre os casos em que o tal Aremã veio a esta cidade dentro do corpo do lidador, junto com ele", e Arthur levantou a cabeça do livro para olhar para os outros, "a descrição parece tão familiar que…"

"…que te faz pensar no Grande Um?"

Os outros olharam para mim tão bruscamente que pude ouvir seus pescoços estalando. Pareciam alarmados.

"Vejam, não há nenhuma descrição de um Grande Um em nenhum lugar do livro, mas Aremã é citado cada vez que se fala no mal que acontece à cidade de 52 em 52 anos. Vêem? As características são as mesmas. Quem quer que tenha começado a chamar isso de Grande Um queria tornar as coisas mais acessíveis para quem não tinha um bom conhecimento do assunto. Ou embaralhar as coisas para aqueles que não fossem iniciados na religião de mistérios."

"O que é uma religião de mistérios?", quis saber Bruno.

"É uma religião onde você tem de ser um iniciado para ter acesso ao conhecimento dela. O caso da de vocês, com certeza", expliquei.

"Como, de vocês? Se a senhora foi iniciada, é sua religião também, não?" aparteou Anderson, até ali calado, ouvindo tudo atentamente.

"Sim, sim, a nossa. Me desculpe, vocês estão mais acostumados à rotina desses rituais, estou ainda um pouco perdida."

Que mais poderia dizer ao menino? Fui iniciada e de certo modo lutei pouco para que isso não me acontecesse. Que fascinação é essa que sempre tenho em tentar penetrar no universo dos clientes até não haver mais como entrar nem voltar?

"…então queria dizer que esta não é a primeira vez que ele vem à cidade! Mas o que eles faziam quando os lidadores vinha para Taurinos com esse Aremã?", perguntou Renan, vivo e curioso.

"Se diz Ariman, na verdade", eu corrigi o menino, "o nome Aremã é um jeito tupi-guarani ou português de dizer o mesmo nome original do mazdaísmo."

"E que diacho é mazdaísmo?" perguntaram Anderson e Bruno a um só tempo.

"É uma das religiões que se misturaram ao mitraísmo no caminho dele para a Europa, parece (isso é o que eu tenho pra mim, posso estar completamente errada); o mazdaísmo persa falava de dois princípios universais: Ormuz, a eterna luz do universo e Ariman, a eterna sombra do universo."

"Foi fundo", disse Guilherme parecendo bem espantado.

"O trem que está na cidade é essa sombra eterna do universo? Ariman?", perguntou Renan, numa voz alta que sacudiu os touros nas baias novamente. Desta vez, ouvia-se o estalar das trancas tão claro como som de um copo de cristal. Uma agitação como nenhuma até o momento. Teria sido a menção do nome?

"Ariman!", eu disse em voz alta como num teste. O ruído de metal então se tornou insuportável, enchendo o ar de um barulho ensurdecedor, que o eco dentro da câmara secreta elevava à bilionésima potência, que perdurou por quase um minuto antes que retornasse à vibração antiga. Os meninos olhavam apavorados para mim; me desculpei e disse que queria fazer um teste. Gritei algo como "tomate" e não recebi 10% da resposta anterior, mais como a respiração pesada típica dos animalões. Voltei a gritar o nome da entidade e o tumulto recomeçou igual. Perguntei a Andrés se as grades eram fortes o suficiente e ele disse que sim. Ele me pediu que eu parasse o teste mesmo assim, mas eu já tinha terminado.

"Ninguém respondeu minha pergunta", reclamou Renan assim que todos se acalmaram, "o que ele faziam quando o lidador vinha junto com o Ariman?"

"Eles o afogavam nas águas da Cachoeira dos Chifres, em um…" leu Anderson e se virou para mim, "que diacho é ordálio?"

"É uma prova duríssima para determinar se alguém deve morrer por um crime", expliquei.

"…e ele ficando vivo por pelo menos cinco minutos isso tiraria o trem de dentro dele, segundo aqui o livro." finalizou Anderson.

Terminamos a conversa com uma olhada no início do livro que não tínhamos visto ainda. Reproduções coloridas belíssimas de cenas de caça aos touros no Neolítico de Taurinos. A língua escrita aparecendo como sinais estranhos, desenrolando-se em outras línguas à medida que avançávamos as páginas para chegar ao português arcaico, o nhengatu e outras línguas do Brasil colonial até o português de nossos dias que era a parte que examinamos à tarde inteira. O livro fascinava a todos e especialmente a mim. Penso no que ainda há para ser achado aqui.

Andrés encerrou a sessão, desligando os ventiladores. Nos preparamos para subir de volta à superfície.


Religião de mistérios | O menino mais sanguinário do país

Rádio Universal: Um Amor Como Sangue

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