terça-feira, 17 de março de 2009

Os fins e os meios


E como tudo tem que terminar, hoje deixo a grande Taurinos e seu povo. Preciso rever minha cidade de Santos. Já sinto saudades antecipadas de todos aqueles que conheci aqui, sem exceção. Bem, talvez o prefeito seja uma exceção. Chato mesmo é a hora de cobrar os honorários, mas sem isso não se vive, então a gente tira coragem de onde não tem para poder fazer a cobrança.

Os meninos são os últimos a chegar à mesa do café. Café da manhã aqui geralmente é cheio de coisas sobre a mesa, sobra pouco espaço para as xícaras. Geralmente não consigo comer de tudo que há na mesa, a variedade é por vezes muito grande, como um café colonial de uma fazenda antiqüíssima, em que fartura é a ordem do dia. Hoje é um daqueles dias em que não conseguirei provar nem metade do que há na mesa. Bolo de fubá, pão de queijo, para dizer o mínimo; jamais daria a lista toda já que isso dificulta o carregamento da página do blog.

Andrés e Adriano nos cumprimentaram e sentaram. Aguardo dentro da conversa uma inserção para falar de minha partida e dos honorários. Demora, mas consigo falar sobre a conclusão do caso e sobre os meus honorários. Duílio me diz que vai fazer um cheque assim que terminarmos o café.

"Nossa, já sinto saudades daqui desde já", comentei eu, olhando o sol e ouvindo os passarinhos cantando em torno da janela da sala de estar.

Vi Andrés olhar para o pai e o pai olhar para Andrés. Duílio me perguntou quando eu estaria de volta. Eu disse que ele tinha o meu telefone, poderia, caso precisasse me telefonar. Passei a ele o meu e-mail para outras comunicações. Notei que Andrés foi ficando com a cara cada vez mais comprida à medida que eu falava, mas não atinei o que fosse. Talvez como eu, uma saudade antecipada de não mais nos vermos.

"No começo, eu não gostava da senhora…" começou o caçula.

"Andrés, você não seja abusado!" Aparecida mostrou os dentes ao menino.

"Aparecida, deixe ele falar. Sempre gostei da sinceridade dele."

"…mas agora eu não quero que a senhora vá embora."

"Andrés! Você está devendo explicações à D. Stella. Não me venha com essa conversa mole de não querer que ela vá embora. É muito mais do que isso." Duílio mostrava aquela costumeira impaciência com os filhos e mostrava que eu talvez nunca fosse chegar a saber 100% do que o menino tinha guardado. Não estou gostando nem um pouco do rumo desta conversa.

"Do que é que o seu pai está falando?"

No seu canto da mesa, Adriano não dizia uma palavra. Os pais, todos nós olhávamos a inesgotável caixinha de surpresas que Andrés era. Sempre um segredo novo à espreita, como um gato prestes a sair de um saco. Andrés olhou para mim e pela primeira vez eu vi um sentimento nele que ele aparentava não ter: medo. Pela primeira vez eu o vi engolir em seco por conta do medo. Medo de mim. De minha reação. Pelo contexto da conversa, começo a entender o medo dele. E começo eu mesma a gelar dos pés à cabeça.

"Então, Andrés? Que explicação é essa de que seu pai está falando? O que você quer me dizer é que eu estou condenada a ficar aqui para o resto dos meus dias, não é isso? Que sendo Taurino, não posso mais deixar a cidade como aqueles touros que você levou até o limite do município?"

Estremecendo ligeiramente, ele baixou os olhos, ergueu de novo e encontrou os meus. E disse, "com as pessoas demora bem mais tempo, 49 dias. Em 40 dias já começam os efeitos, mas é uma eternidade comparando com os animais…"

Eu arriei a cabeça por cima da mesa. Como ele mesmo tinha feito na casa de "sêo" Danilo, no dia em que confirmamos a sua vocação para ser reincarnado. Não queria mais levantar a cabeça do tampo da mesa. Encarar o fato de que já não tinha mais tanto controle sobre o meu próprio destino. Sobre minha vida. Andrés levantou e se aproximou de mim devagar. Eu via os tênis dele, um na frente do outro, cada vez mais próximo de mim.

"D. Stella…"

"D. Stella, porra nenhuma! Você tem a menor idéia do que você fez com a bosta da minha vida?" eu me recusava a levantar a cabeça da mesa.

"E agora agüenta que nem homem", a voz de Duílio era tão irritada quanto a minha.

"D. Stella… Olha pra mim, por favor…"

"Só se for pra saber que parte da tua cara eu vou socar pra não arrebentar teus óculos, seu moleque. Sai de perto de mim." eu me recusava a levantar a cabeça da mesa.

"D. Stella…"

Eu perdi a paciência e levantei a cabeça num jato, soquei o tampo da mesa com os dois punhos. O barulho resultante sacudiu o corpo de todos na sala de jantar. As pessoas na sala de jantar. Duílio se levantou, cada vez mais enfurecido.

"Andrés, agora chega. Coloca os teus óculos em cima da mesa, por favor", o chefe de família tirava o cinto. Andrés não discutiu. Colocou os óculos em cima da mesa e se preparou. O café da manhã estava encerrado. Ele apanhou ali mesmo na sala, na frente de todos. Não senti a menor vontade de intervir desta vez. Ele olhava para mim debaixo da chuva de cintadas. Não dizia uma palavra. O rosto contraía, as lágrimas rolavam da dor que ele sentia, mas não emitia um som. Ele ficou cinco minutos apanhando. Sim, eu disse cinco minutos. Adriano olhava a cena, mudo como um peixe, mas não parecia triste nem de longe. Aparecida se levantou revoltada e saiu com mais ou menos um minuto e meio corrido do evento.

"Agora ajoelha e pede perdão a ela. Ajoelha, porra!"

Vejo de onde o menino tirou essas coisas. Um regime democrático, as mais modernas táticas da psicologia infantil e adolescente. Tenho de intervir.

"Para com isso, Duílio."

"Isso é entre eu e o menino agora, D. Stella. Anda, de joelhos, senão vai ficar pequeno pra você!"

Ele forçou o corpo de Andrés até que os joelhos dele dobraram. O menino olhou para mim e me pediu perdão. A voz ainda abafada pelo meu estado auditivo ainda um pouco caótico. Duílio veio e torceu o braço dele. Tenho vontade de bater nesse homem agora. Violência, violência e mais violência.

"Eu não ouvi, você falou muito baixo."

Tensão. Não estou agüentando mais.

"Me perdoa, D. Stella…"

Duílio torceu o braço dele com mais força ainda.

"Mais alto! Mais alto porque você deixou ela surda também, lembra? Mais alto, seu bosta!"

"Me perdoa, D. Stella!!! Pelo amor de Deus me perdoa! Eu fiz isso pela cidade! Eu fiz pela cidade!"

Duílio largou o filho, ofegante. A surra tinha consumido mais energia dele do que do garoto. Andrés tem o rosto lavado de suor e lágrimas. Eu o ajudei a se erguer.

"E vai se enfiar no teu quarto, que hoje você não sai mais de lá. Não quero mais ver a tua cara na minha frente hoje." O chefe de família se deixou cair no sofá pesadamente, exausto.

Na casa de "sêo" Danilo, o cheiro habitual de café de seus finais de tarde. Que seria de mim sem seu café e seus pães de queijo? "Sêo" Danilo ouviu minha narração do acontecido e pareceu triste. Sabia o que seria de mim se eu deixasse a cidade. Confirmou o número de dias mencionado por Andrés, 49 dias. Disse que coisas estranhas começavam a acontecer lá pelo quadragésimo dia. Como efeitos estranhos ou estranhas capacidades ou habilidades surgindo do nada. Nove dias depois começaria a secar e começado não haveria como parar mais. Seria a morte, pura e simples.

"Acontecia com as pessoas que mudavam. Os médicos diziam que era desidratação. Pelas notícias que vinham e pelo intervalo entre a mudança e as notícias, começamos a entender. Muita gente daqui morreu pra que a gente aprendesse que era isso, "sá" Stella…"

Eu fiquei em silêncio, olhando pela janela aberta a Estrela D'Alva e as montanhas de Taurinos na distância. Como pode uma cidade tão bonita ter tanta maldição engastada nela que por vezes não se consegue ver a beleza, só a maldição como armadura, revestindo tudo com o chumbo da condenação e do irreversível? Começo a me preparar para mudar de vida. Santos é distante demais para mim agora.

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