quarta-feira, 11 de março de 2009

Livro de coisas brilhantes

Laptop marcando seis e quinze da manhã. Estou no alpendre, olhando a paisagem do cerrado, cada dia mais estranha, cada dia mais triste, a despeito do belo amanhecer de Taurinos.

Eu tenho o livro sobre a mesinha de canto onde o laptop também está. Minha curiosidade recai sobre as anotações mais recentes que ele fez, sobre o ritual da classe de 2009. E lá está ele. Tudo o que vi e mais o que não vi. Pulo as passagens dos outros e vou direto à minha. Talvez seja possível me lembrar do que realmente aconteceu lendo pela linguagem seca do livro.

De início, descubro que a narração de Renan (acordada por todos ao redor, até por Andrés) está ligeiramente errada. O que vi estava correto. O touro realmente não saiu de imediato da baia. O livro menciona até os meus passos para o lado, para olhar lá dentro. Descreve como me aproximei e como ele pulou sobre mim, a queda da espada no meio da nojeira animal no chão (a parte que coincidiu com a narração de Renan), exatamente o que eu contei a eles que me lembrava. Li, mais e mais, absorvida por toda aquela nojeira sem paralelo. A descrição seca parece tornar as minhas ações ainda mais asquerosas do que realmente foram.

A leitura de tudo aquilo me fez mal. Não pelo touro. Não senti remorso nenhum pelo destino dele porque era o que ele merecia. Não hesitou em atravessar um de nossos bons amigos com seus chifres. Por que eu teria remorso, então? O que realmente me fez mal foi o encontro tão detalhado com o meu lado escuro. Muitas coisas coincidiam com a narração de Renan, mas na somatória, ele viram muito diferente do que realmente aconteceu na arena. Nossa auto-imagem de gente boazinha e decente suprime essas recordações de como podemos ser sórdidos e sanguinários às vezes. Passa um pano, faz aparentar que somos gente civilizada para que o horror dessas recordações não nos provoque dano. Aqui é onde entro na história.

Ouvi as molas barulhentas da porta de tela do alpendre se abrindo. Andrés surge no alpendre, olhos colados, cara amassada e cansaço de quem tentou dormir mas não conseguiu. Ele é só desânimo, dos pés à cabeça. Não posso culpá-lo por isso, mas eu preciso sacudir esse menino.

"Se eles acham que eu vou engolir essa história de julgamento sumário e sem a presença do réu, eles podem tirar o cavalinho da chuva", eu disse a Andrés assim que ele se sentou.

"Hoje de manhã eu não queria acordar pra essa vergonha… Que aconteceu com todos nós ontem? Estava tudo certo… E logo depois, tudo tinha dado errado. Como é que as coisas chegaram nisso?"

Disse a ele que estava lendo o livro. Mostrei a ele a descrição que ele fazia de minha batalha, o começo dela (assunto de toda a discórdia entre nós na noite anterior). Ele arregalou os olhos para mim. O mineirinho ficou estarrecido ao descobrir que eu fui a única realmente fiel aos fatos. Ele se perguntou o que foi afinal que eles viram.

"Muito dos que vocês viram aparece aqui nas páginas do livro. São vinte e poucas páginas. Considerando que o livro resume as coisas e só deixa o essencial, temos aqui as quatro horas que vocês mencionam."

Andrés começou a ler para a frente. Um sorriso aparecia ocasionalmente em seu rosto. Perguntei do que é que sorria. Ele me disse que tinha chegado à parte em que eu esfolava o animal vivo. Disse que como os outros, me venerava como a mais atroz de todos os lidadores que já tinham passado pela cerimônia. Disse que, como Renan, não se importaria em ser uma mulher para poder ser eu. Eu respondi que com aquele comportamento, ele e Renan me lembravam muito as preguicinhas do desenho longa-metragem A Era Do Gelo 2, um filme do diretor brasileiro Carlos Saldanha, adorando a preguiça que era um dos protagonistas do filme. Ele entendeu e começou a rir muito, lembrando daquele trecho do filme em particular.

"Ah, D. Stella; só a senhora pra me fazer rir numa hora dessas." ele baixou a cabeça e começou a olhar para o chão.

"Olha pra mim. Não deixa eles te verem de cabeça baixa. Você fez o melhor. Todos nós fizemos o melhor, vocês mesmos disseram. Agora estão tentando te enquadrar por você ter iniciado uma mulher."

"O julgamento é assim mesmo, D. Stella."

"Não é. Estão se aproveitando do fato de eu ser mulher. Bruno deixou isso claro. Ele disse abertamente, para quem quisesse ouvir, que alguma coisa deve ter dado errado por ter sido uma mulher."

"D. Stella, a senhora acha que dá pra anular o julgamento em cima dessa frase do Bruno? É muito mais que isso. Eu arrisquei muito mais que podia quando iniciei a senhora. Nunca houve mulheres na Sociedade, só nas duas últimas vezes. É lógico que o Bruno e o meu irmão iam se pegar nisso. A senhora foi a única que não lembrou o que aconteceu. Mas a senhora pode ficar tranqüila que nada vai lhe acontecer. O problema da Sociedade agora é comigo e mais ninguém."

"Isso não me preocupa, Andrés. Me preocupam vocês e a situação da cidade. Faz dias que a cerimônia ocorreu, nada parece ter mudado na confusão que está. A paisagem da cidade está cada vez mais estranha, a paisagem do entorno também preocupa, e não me parece que o fato de eu lembrar ou não vai mandar os touros de volta para os currais e pacificar tudo como mágica."

Ele me perguntou algo que não pude entender, olhando para as montanhas.

"Olha para mim quando falar. Não ouço você."

"O que vai adiantar então pra resolver isso tudo?" ele perguntou, olhando para mim desta vez.

"Eu não sei. Quisera saber mais do que eu sei sobre tudo isso."

Eu fiquei olhando para ele por um longo tempo. Tempo demais até para um olhar brasileiro. Ele me perguntou o que eu estava olhando. Por uns momentos, não sabia como começar a idéia. Levei mais algum tempo para responder.

"Andrés, eu quero ajudar você. Quero ajudar tua gente, teus amigos. Mas você vai ter que me dizer se ainda tem algo que eu precise saber."

"De novo aquela história dos ladrões de gado?"

"Aquela foi mais uma de muitas coisas mantidas em segredo."

"E houve outras?"

"Por exemplo, quem veio com essa idéia de ontem de que todos deveriam lembrar o que aconteceu na arena para que a cerimônia pudesse ser concluída?"

Ele olhou para mim, confuso. Olhou para as montanhas, para mim de novo e não parecia chegar a uma conclusão.

"Então? Quem trouxe essa idéia? Não me lembro de ter visto nada no livro sobre isso."

No final, Andrés não soube me explicar de onde veio a idéia. Ficamos matutando de onde poderia ter vindo. Um tempão dando tratos à bola. Nada. Começamos a procurar no livro. Nada sobre o assunto. Em nenhum dos relatos se relatava um pós-cerimônia como aquele que tivemos. Eu olhei para Andrés e ele devolveu o olhar. Ele parecia envergonhado por nunca ter parado para pensar nisso.

"Mas Andrés, põe a cabeça no lugar, os caras vão te sacrificar por conta de uma coisa que nem no livro tem e portanto nem é um rito da Sociedade?"

Ele engoliu em seco. Não conseguiu dizer nada, a garganta travada.



"Obrigado pela voz, os olhos e o brilho das memórias. Obrigado pelas figuras da vida em um lindo branco e preto. Dizem que ficaremos juntos por muito tempo. Dizem que nossas primeiras impressões não mentem. Eu abro o livro para ver seu brilho e a luz refletida no esquema aberto das coisas. Livro de coisas brilhantes. Livro de coisas brilhantes. Te agradeço pelas sombras. Precisa-se de dois ou tres para fazer companhia. Te agradeço pelo raio que cai e as faíscas na chuva. Dizem que pode ser o Além. Algum dia, dizem, nossos corações vão bater como as rodas do trem veloz ao redor do mundo."

Livro De Coisas Brilhantes, escrita e gravada por Simple Minds.



Seis da tarde. Há uma ameaça de chuva no céu. Só ameaça, apesar de toda a água que tem descido sobre Minas Gerais esses dias. Aqui a intenção não parece ser chover. Há algo que começa a barrar a umidade da cidade. O ar em Taurinos está cada vez mais seco.

Duílio parou o carro em frente à casa de "sêo" Danilo e me deixou lá, com Andrés e o livro. Adriano queria vir mas nós dois o impedimos. Duílio também interveio e o irmão mais velho teve de ficar na fazenda. Eu tinha aproveitado e dito a Adriano que nós traríamos o livro na volta para que ele apontasse onde tinha visto a tal reunião de memórias da arena. No carro, tive um zumbido nos ouvidos, algo como se minha audição estivesse voltando à vida lentamente. Saí do carro cheia de esperança.

"Sêo" Danilo nos recebeu na porta, o habitual sorriso e disposição de conversar.

"Ei, o gordinho está aqui também, boa-noite "sô" Andrés, "sá" Stella, cheguem pra dentro. E "sêo" Duílio que nunca entra? A casa é modesta, mas é de vocês."

Andrés explicou que o pai tinha ido à cidade. "Sêo" Danilo terminava de passar o café. Nos deu uma caneca cada um e pôs o açucareiro na mesa com algumas colherinhas. Começamos a conversar. Ele logicamente estava louco para saber como foram as coisas na arena, já que não nos víamos desde a entrada do Mithraeum.

"E dei sorte. Não veio um Taurino só pra me contar. Vieram dois!"

Andrés disse a ele que ele poderia ouvir seu relato, mas não o meu. Disse que além de ficar surda na arena, perdi minha memória do que aconteceu e ele pareceu triste ao saber das notícias. Ele desmentiu a reunião de memórias após a cerimônia, dizendo que era viagem dos meninos. Ele entendia a regra das cores por ser inócua, mas achou que basear o resultado tão importante da cerimônia em memórias da arena era um pouco demais. Andrés sorriu para ele de orelha a orelha, satisfeito em saber que poderia desafiar a Sociedade.

"O que tem que ser seguido é o livro. É ele quem lembra o que não lembramos mais. É dele que vem a segurança pra todas essas práticas dentro da nossa religião", explicou ele, "mas "sá" Stella, não me conformo com o que lhe aconteceu. Eu acho que se criou uma mentalidade masculina tão forte dentro da Sociedade que agora tudo conspira contra as mulheres. Parece que até as forças invisíveis são contra, mas é a má-vontade contra as mulheres que fica como força, agindo contra todo o tempo até contra a integridade física delas. E isso acontece também por ser adulta. As crianças da cidade criaram uma mentalidade infantil tão forte para a cerimônia que os adultos são atingidos pela onda de má-vontade delas. Viram Duílio saindo? Não era tão importante ir para a cidade de repente, mas ele sente que não tem nada a ver com esse negócio de Câmara Interna."

"Será isso, "sêo" Danilo?", Andrés se interessou.

"Bom, isso é coisa que eu tenho pra mim. Posso estar completamente errado, mas é o que eu penso."

Andrés contou resumidamente a ele os embates na arena. Em seguida, contei a ele o que me lembrava. Ele ouvia fascinado, os olhos brilhando. Mostrou especial interesse no que Bruno fez na arena.

"Eu fiz exatamente a mesma coisa que ele. Mas não é expressão não, eu digo, foram os mesmos movimentos, puxei pela perna, esfreguei a cara dele no chão, os mesmos golpes e eu abri o danado no meio e me deitei dentro, igualzinho como você falou que o Bruno fez. E, como ele, eu fui o segundo a entrar na arena."

Andrés olhou para mim e eu devolvi o olhar. Ele ficou fascinado com a coincidência, mas segundo "sêo" Danilo não houve coincidência; a cerimônia foi a mesma de 1957. Ele sugeriu que víssemos os registros de 1957. Afirmei que nós não tínhamos encontrado nada. Ele disse que era natural, que nós estávamos emocionalmente envolvidos demais para localizar o trecho. E indicou claramente onde estava: exatamente antes de nossos registros de 2009.

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