quinta-feira, 5 de março de 2009

O menino mais sanguinário do país

Outro almoço na fazenda Feletti. Hoje conheci a irmãzinha de Arthur, Simone. É engraçadinha, mas sacudida demais, como se diz por aqui. A mãe de Arthur continuamente vai buscar a menina lá fora e quando se dá conta, a pequena já está ao ar livre outra vez.

Em particular, perguntei ao chefe de família daqui se Arthur lhe tinha contado o sonho duas noites atrás. Ele disse que o menino contou o sonho a ele, mas se apressou em relativizar o problema, "todo mundo está tão nervoso na cidade, as aulas foram suspensas, as pessoas estão dentro de casa imaginando minhoca e isso acaba aparecendo nos sonhos. Eu só posso agradecer a vocês pela preocupação, mas não há nada a fazer aqui que a gente não possa fazer como família. Nossas cabeças de gado são problema nosso e de mais ninguém. Sabemos nos defender."

O orgulho é uma instituição falida. Mesmo assim, apostamos todas as nossas preciosas fichas nele como única chance de manter nossa auto-estima. Como na estrada da vida confundimos auto-estima com orgulho… Se ao menos pudéssemos entender que às vezes precisamos uns dos outros.

Aberta a sessão no Mithraeum. As baias estão quase completas. Hoje foram preenchidas a segunda e a quarta baia. Só faltava a sétima. Anderson e Bruno tiveram um ótimo dia de caça esta manhã, segundo eles mesmos. Eles contaram cada um de sua experiência.

"Você tinha que ver como ficou o mercadinho do Souza, o coitado do hominho estava desesperado. É um hominho sacudido que só ele, mas ficou no prejuízo dessa vez", contou Anderson.

"É, o Souza e a Prefeitura estão atraindo um número bom de touros, não sei o que eles vão buscar lá dentro. O meu eu tirei de dentro da sala do prefeito. Que barricada de luxo que nada, aquele só o que segurou foi o Rompun®. Adivinha como ficou lá dentro, era só mobília quebrada e esterco pra todo lado." Bruno engasgou diante das risadas gerais e parou para rir também.

"Arthur", disse Andrés depois que a risada geral terminou, "só estamos agora esperando pelo seu. Você acha que dá pra trazer um desses amanhã?"

"Ele vai vir. Amanhã mesmo." Arthur parecia tão convicto do que dizia que animou todos ao redor.

"Bom, a gente fica mais tranqüilo então, porque amanhã já é dia 6…"



"Quanto ao desmembramento, ele deve ser executado tão lentamente quanto possível em um longo, nojento e agradável ritual de sangue, sofrimento e morte…"

Renan



Voltamos ao exame do livro. Todo ele é um diário de registros de tudo o que tinha a ver com a Sociedade Antiga dos Taurinos. Se uma folha caísse de uma árvore isso não seria registrado, logicamente. Mas se ela caísse durante uma sessão da Sociedade, isto com certeza iria para os autos, tamanha a preocupação com os detalhes na descrição de tudo o que tinha a ver com ela. Renan teve a idéia de ver o final do livro. Verdade. Temos o livro na fazenda Taurinos e no entanto não mexemos em 10% desse livro. Como se interiormente, sem perceber, tivéssemos medo de manipular o objeto ancestral.

"Doidimais essas páginas em branco no fim, queíss? Óiqui, legal, você anotou a reunião de ontem também" Anderson, Bruno e Adriano tinham se adiantado. Na verdade, eu é que tinha me atrasado, pensando as minhas coisas sábias. Mas eu disse a eles que não anotei uma palavra no livro. Começou uma chuva de expressões de estranheza, a minha incluída. Andrés negou ter encostado no livro depois que o levou para casa. Adriano também não se daria ao trabalho.

"Letra do meu pai não é, e mesmo que fosse, ele não esteve presente…" justificou Andrés.

"Então, o livro está se escrevendo sozinho… Nuémêss ?", Adriano parecia fulminado por um raio.

"Creio em Deus Padre, quanta besteira", Andrés fulminou o irmão mais velho com o olhar.

"Você tem explicação melhor?" tornou Adriano.

E aconteceu que Andrés não tinha nenhuma explicação para o fato da reunião estar registrada ali. O livro finalmente chegou às minhas mãos. Tive de me conter para não soltar um grito de espanto. A minha letra no bendito livro. Era a minha bendita letra no bendito livro.

"É a senhora que está escrevendo, não é, D. Stella? A letra é sua, não é? Tô vendo pela sua cara", provocou Bruno.

"A letra é minha… Mas não sou eu quem está escrevendo."

Risada geral. Não dá pra culpar nenhum deles por não acreditar. Eu viro mais uma página, leio o conteúdo e pergunto se esta letra é a mesma minha. Ele olham por cima, apenas julgando a caligrafia de palavras soltas, comparam com a outra e me dizem que é. Passo o livro para Andrés, aponto um parágrafo e peço que ele leia em voz alta.

"Comentadas as páginas em branco no final da publicação e o registro da reunião anterior da Sociedade Antiga dos Taurinos por Anderson Nascimento Caldeira, seguido por Bruno Linhalis Pinho e Adriano Silva Conselheiro. Os membros da Sociedade Antiga dos Taurinos começaram a estranhar o fato de a reunião anterior estivesse registrada neste livro sem que nenhum deles tivesse aberto o livro para escrever nele. A letra de Stella Freitas-Grisam foi reconhecida como tendo sido a escolhida para anotar as sessões de encontro da Sociedade Antiga dos Taurinos. Adriano Silva Conselheiro e Andrés Silva Conselheiro negaram ter pego no livro depois que o levaram para casa. Andrés Silva Conselheiro também esclareceu que seu pai não tinha tal caligrafia e mesmo que tivesse tal caligrafia, não tinha estado presente à sessão por…"

"Creio em Deus Padre…" espantou-se Anderson olhando o livro de olhos arregalados, "esse trem ficou todo esse tempo dentro da minha casa???"

Andrés me olhava ligeiramente apavorado. Lá embaixo nas baias, os touros ficaram francamente indóceis, o som metálico das barras parecia mais forte e as barras mais fracas a cada novo dia aqui dentro desta catacumba (e agora são seis). Arthur se quedava pensativo, mas não parecia aturdido com os outros em relação ao que se tinha acabado de descobrir. Arthur nem mesmo parecia estar ali. Essas introspecções me preocupavam nele, eu chegava a eclipsar minha própria estupefação em descobrir que algo está usando a minha caligrafia para escrever a história daquela Sociedade e de sua classe de 2009 em tempo real.

Procuramos para trás. Meu nome está ali completo sob o nome de Renan, na reunião de fundação da Sociedade, o resto da reunião é contado da mesma forma seca e burocrática, como um escrivão o faria, inclusive o fato de Andrés ter chamado a atenção de Renan e a minha durante a reunião. Cada vez mais fascinados, corremos para onde nunca tínhamos ido: à cerimônia de 1957. E onde está ela? Em lugar nenhum, ao que parece. Mais para trás temos a descrição do processo em 1905, no início do século vinte. Depois o que há vai cada vez mais para trás, 1853, 1801, 1749 e assim por diante (ou para trás?). Nada sobre 1957.

"Que estranho, será que está em outra parte?", intrigou-se Anderson.

Viramos o livro de ponta cabeça. Nada. Como se a classe de 1957 nunca tivesse existido. A surpresa era geral. Nos registros da classe de 1905, vimos que aguardava um novo Advento de um lidador dali a 104 anos, que segundo o registro traria sua experiência, tudo aquilo que vimos ontem.

"Oiquí, é seu antepassado na classe de 1905, Luís Felipe Mattos Conselheiro é antepassado de vocês, não?" perguntou Arthur, curioso com seu achado.

"Porra, faz tempo que o teu povo combate esses bichos, hein Adriano? Hein, Andrés?" ajuntou Bruno, admirado.

"Alguma coisa não se encaixa", eu disse a eles, "ou se encaixa até demais."

"O que eu percebi", declarou Guilherme, "foi que se em 1905 eles esperavam o Advento de um lidador, como chamou ontem? Aqueles Que Retornaram. Isso. Aqueles Que Retornaram. Então, se esperavam esse Taurino para dali a 104 anos, ele está nessa arena junto conosco. Ele… é um de nós sete. Nuémês?"

Os meninos começaram a olhar uns para os outros numa paranóia típica de um jogo do assassino. Nenhum deles confirmou essa idéia de Guilherme de ser um d'Aqueles Que Retornaram, embora todos achassem que só podia ser isso, já que seguiam pelo livro e por seus registros.

"E muito provavelmente ele sabe quem ele é. Pois se o mais difícil que é retornar ele fez…" acrescentou Adriano, em suspense.

"Acho que ele não vai dizer quem ele é", explanou Renan, "deve ter os seus planos ou sei lá o que."

"Seria você, Renan?", perguntou Adriano.

"Não. Seria você, Adriano?" devolveu Renan.

Eu disse a eles que isso não adiantava nada. Se ele estava mesmo entre nós, ou se acusava de pronto nesse ponto do aprendizado com o livro ou se não se acusava teria lá os seus planos, como Renan muito bem havia colocado. Eu disse que talvez ele não se desse a conhecer. O importante agora era que a Sociedade se preparasse para a cerimônia que aconteceria em dois dias.

Eles concordaram. Andrés passou para a parte mais dolorosa do processo. O processo de descarnamento total dos desgraçados animais que aguardavam sua mais completa aniquilação lá embaixo na baias. Como que os animais percebessem, a agitação nas baias foi realmente audível. Renan foi chamado a ficar em pé e dar aos outros uma oficina rápida e informal sobre como provocar o máximo de sofrimento no touro antes que ele fosse cortado em bifes pequenos, adequados ao consumo em churrasqueiras e grills por toda a Taurinos. Via-se que Renan estava em seu elemento.

"A espada é enterrada no dorso, na parte superior. Tem de ser bem enterrada, com força, mas principalmente com jeito. Nada de compaixão, porque vocês precisam relaxar os músculos do dorso que é o que vai chupar fora toda a energia do animal e garantir uma batalha mais segura para…"

"Relaxar é uma palavra meio humorística para descrever o que acontece, não?" eu ameacei tumultuar a sessão com meu sarcasmo.

"D. Stella e seu senso de humor… Por favor, deixe o irmão continuar", rosnou Andrés.

"…o lidador que estiver na arena. A espada pode ser girada para abrir mais a ferida antes de ser retirada. Tem de ser retirada, porque é uma maneira de deixar fluir mais sangue e enfraquecer ainda mais o bicho. Gostou do "enfraquecer", D. Stella? Melhor que relaxar?" O mineirinho sabia ser sarcástico também.

"Quanto ao desmembramento, ele deve ser executado tão lentamente quanto possível em um longo, nojento e agradável ritual de sangue, sofrimento e morte." Ele continuou olhando fixo para mim como numa provocação. Renan é um amorzinho, o que não quer dizer que ele seja um amorzinho o tempo todo.

"Renan, sabemos o quanto você ama muito tudo isso, mas por favor não fique babando nas arquibancadas", avisou Andrés debaixo de uma chuva de risadas dos outros Taurinos.

"E principalmente não fique babando sangue", ajuntou Anderson assombrado, "puta merda, esse porra mordeu a língua…"

Renan sentiu o gosto do próprio sangue e ficou inquieto. Se sentou para não cair, ficou ofegante, cuspiu mais sangue. Minha pressão está oscilando, meus olhos não tem como fugir do evento, o restante é pura escuridão. Meus olhos voltam sempre ao mesmo ponto.

Andrés resolveu fechar a sessão. Ainda precisavam levar Renan até a Unidade Mista do município para ver aquela língua. Capaz do menino dizer que eu o enfeiticei. Não fui eu. Anderson ainda brincou com ele, dizendo que nada como o próprio sangue da gente para matar essa sede imensa.

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