domingo, 1 de março de 2009

A hora dos ruminantes

Fim de tarde. O Sol começa a tomar o caminho de casa. Estou de volta à fazenda e ao meu lugar favorito da fazenda, o alpendre, depois de uma boa volta pelos arredores. Adriano estava sentado ali, olhando a paisagem das montanhas e dos cerrados em torno da fazenda Taurinos. Ele me cumprimentou. Eu retornei e ele ficou me olhando, talvez esperando mais alguma coisa, mas nada aconteceu; eu fiquei como ele, olhando a paisagem em silêncio. Eu esperei, porque por algum motivo não queria tomar a iniciativa de quebrar o silêncio. Na maioria das vezes é melhor ouvir do que falar. Quem fala demais acaba dizendo algo que não deveria dizer. Ou não poderia.

"Já começou", Adriano disse para mim, o olhar grave, preocupado.

"O que começou?"

"Ontem à noite, um touro da fazenda Pinho enlouqueceu, arrebentou parte da cerca do curral e ia fazer mais quando acabou levando um tiro de carabina."

Pinho. Sobrenome do Bruno, um dos cinco que estiveram aqui ontem. Uma sensação de alarme correu meu corpo todo, um choque sensorial de susto e apreensão.

"Como está o Bruno? Ninguém se machucou, espero…?"

"Ele está bem, mas fica nervoso com essas coisas, né? O touro chegou a derrubar o pai dele no chão. Foi o "sêo" Pinho para um lado e a carabina pro outro. O Bruno pegou a carabina, apontou pro meio dos olhos do bicho e arrancou o tampão da cabeça dele. Se não fizesse isso naquela hora, o bicho tinha pisoteado o pai dele e não ia sobrar um osso inteiro no corpo. O "sêo" Pinho teve um corte na cabeça e ralou o braço, mas fora isso tudo bem."

"Vocês não comentaram nada disso no café, eu não sabia…"

"Ligaram da casa do Pinho quando a senhora estava fora", ele explicou.

"Nossa… Bom, menos mal já que ninguém se feriu, mas fica a preocupação, não? Se os bichos começarem a enlouquecer desse jeito, não sei, vai ser complicado."

"É só o começo", ele me olhou demoradamente, "e pensar que ainda tem seis dias até a cerimônia…"

Nova pausa. Penso no que as notícias da terra significam. No que Adriano quer dizer com a sua última colocação. Que algo está agindo dentro da cidade, ou como disse o "sêo" Danilo, manipulando de fora dos limites da cidade. O Grande Um, começando a se manifestar numa promessa apocalíptica. Como na história de José Jacinto Veiga, A Hora dos Ruminantes, em que touros e vacas aparecem do nada em uma cidade, tumultuam tudo e desaparecem como se nunca tivessem existido. Mas aqui nada parece indicar que os touros irão seguir o mesmo rumo. E, embora pareça a maior ficção, não é. Nem mesmo J.J. Veiga explica Taurinos e suas loucuras.

"O que vocês pensam em fazer?"

"Não tem o que fazer. Só temos que esperar pelo dia da cerimônia. Separar esses touros para trazer para a arena. Os ataques devem parar quando a cerimônia tiver chegado ao fim."

Agora me ocorre de volta a cerimônia. E eles querem pegar os touros enlouquecidos por essa força imanente para a carnificina total. Touros sendo feitos em pedaços pequenos para o bem de nossas vidas. Fecho os olhos e tento imaginar a cerimônia. O que irá acontecer. O clima de horror que vai se instaurar dentro da arena. Eu penso que preciso estar dentro dela. E eu penso se preciso estar dentro dela.

"Eu posso ir à cerimônia?"

O silêncio dele pareceu durar uma eternidade. Como o médico que diz haver um probleminha com você e leva eras geológicas dentro de uma conversa decidindo como lhe dizer qual o probleminha que você tem.

"Eu vou votar "não" se puserem isso para votar", ele disse com simplicidade.

"Por que?"

"Porque isso é não coisa pra mulheres."

"Isso não deveria ser coisa pra ninguém. Não deveria ser coisa para jovens como vocês. Por que então não deveria ser coisa pra mulheres?"

"Se qualquer coisa parecida com uma mulher estivesse na cerimônia, a gente podia sacrificar vacas junto com os touros. Mas não, é tudo masculino. É assim desde que as coisas começaram por aqui. Jesus ainda ia levar uns doze mil anos pra nascer e a cerimônia já corria desse jeito."

Houve uma pausa. Não posso culpar Adriano por ser sincero. Dizer exatamente o que pensa do meu pedido. Ele acrescentou que em última palavra, a Sociedade formava um Conselho e decidia.

"O que o Conselho decidir, está decidido. Pra mim vai ser lei. E eu vou votar contra. Ajudar que a senhora não vá. Porque eu acho que a senhora não está preparada pro que vai acontecer na arena."

"Por que eu sou mulher?"

"É, uai. As mulheres sentem mais as coisas que os homens, né? Elas não são brutas como o homem. Têm mais emoções, não é isso? Depois fica tudo aquilo na cabeça, sem largar mais. É isso que a senhora quer levar daqui? Uma lembrança ruim, de crueldade, de maldade contra os animais?"

"É maldade contra os animais? É disso que se trata?"

Ele se levantou num golpe e ficou me encarando, como um galo de briga.

"É, uai! Do que mais se trata? Se eu tenho que fazer o bicho sofrer pior que o inferno, do que é que se trata afinal? Eu vou entrar lá à meia noite com a Sociedade e vou fazer o meu melhor pelo meu Sagrado. Ele vai rezar lá na língua dele (antes de eu arrancar ela fora, claro) que ele nunca tivesse visto a luz do dia. Que ele nunca tivesse me visto na vida. Ele vai pedir pra morrer, isso vai."

"Você gosta disso, Adriano? Gosta de fazer animais sofrerem?"

"Não", ele voltou a se sentar, agora que seu corpo parecia ter liberado energia estática para dentro da terra, "mas na cerimônia esse eu que não gosta de fazer os animais sofrerem vai morrer junto com o Sagrado dentro da arena. Ele vai ficar em pedacinhos igualzinho ao bicho que eu vou lidar. Porque é assim que tem que ser. É assim que tem sido aqui há mais de quinze mil anos. No dia 7, é assim que vai ser. O Sagrado vai sofrer por tudo o que os da espécie dele fizeram e ainda vão fazer essa semana."

Ele explicou com frieza e requinte técnico que o sofrimento do animal tinha de ser prolongado o mais possível e mantido num processo calculado de atrocidade controlada (o que quer que isso queira significar) de maneira a não matar o animal rapidamente e ao mesmo tempo provocar um sofrimento sempre crescente, que só podia aumentar de intensidade, nunca diminuir. Perguntei a ele como manter essa frieza técnica e tão requintadamente calculada num momento em que se está abraçado a um objeto móvel de meia tonelada que está acuado e desesperado pelo sofrimento já provocado pelo lidador. Ele assentiu, em acordo com o que eu disse.

"É, é difícil, mas não é impossível. A gente tem que prestar muita atenção no que está fazendo. Tem que concentrar e não perder o objetivo de vista. Quando isso acontece, o resto acontece naturalmente."

Comentei com ele o quanto tudo aquilo me lembrava o mitraismo romano, pela questão do sacrifício dos touros que representavam a Lua. Ele assentiu com a cabeça, mas ficou me olhando de modo estranho como os dois irmãos sempre me olham quando tentam digerir as minhas palavras e intenções. Nesse caso pareceu que o nome da religião foi a causa do olhar estranho. E ele pediu que eu repetisse o nome, que achou familiar.

"Sim, o mitraísmo, o sacrifício de touros nos Mithraea, santuários em honra ao deus Mitra, o deus do sol. A descrição que Andrés fez do silo que vocês alteraram é parecida com um Mithraeum… Adriano… está tudo bem com você?"

Por que fui falar? E como poderia saber como ele receberia meu simples comentário? Ele se levantou, a expressão aturdida, como se tivesse levado com um taco de bilhar na cabeça. Tonto, agarrou-se na grade do alpendre, enquanto eu o segurava para não cair. Mas ele se equilibrou e retirou o braço que eu segurava bruscamente.

"Como pode a senhora saber o nome da arena? Andrés nunca iria falar disso com uma forasteira. Isso é aqui entre os nativos de Taurinos, ninguém mais sabe disso!"

Depois, o rosto do rapazinho assumiu uma expressão de raiva. Ele começou a andar em círculos pelo alpendre como um bicho enjaulado, me encarando, o olhar feroz, acusador. E começou a me questionar com um tom agressivo, tentando me intimidar.

"Quem falou? Foi um dos moleques, não foi? Fala! Fala, porra!"

Não consegui esboçar reação. Uma voz atrás de mim interrompeu a conversa.

"O que é isso, Adriano? Tratando a nossa hóspede dessa maneira???"

Duílio vem descendo pesadamente o alpendre, vindo em nossa direção. Adriano está mudo; olhos vítreos de horror, mas agora entendo que não por medo de ser repreendido ou tomar uns pescoções do pai. Agora entendo que é muito mais que isso. Ele começa a gaguejar e repetir frases que na somatória queriam dizer que ele não tinha passado a informação sobre o nome da arena. Entendi isso no momento em que ele se ergueu em pânico ao ouvir o nome. Duílio pareceu não entender. Ou entendeu e se fez de morto quanto ao que realmente estava causando aquele momento de stress no adolescente? Qualquer das alternativas, a bordoada foi forte. Eu esperava que ele fosse falar alto. Que fosse até mesmo gritar. Só não esperava aquela bordoada. A gente se acostuma à falsa noção de que pais modernos não farão esse tipo de coisa, mas no interior isso pode ainda acontecer dependendo de quão odiosa se considera a atitude dos filhos. Eu caí sentada na cadeira, desanimada e sem poder intervir.

"Não admito que trate uma hóspede desse jeito dentro da nossa casa!"

Aparecida e Andrés vieram para o alpendre. Nosso caso se tornou público. Andrés ficou parado, encostado na parede, sacudindo ligeiramente a cabeça a intervalos longos. Aparecida acolheu o filho nervoso e o levou para dentro, mas havia mais esperando por ele lá. A mãe, sempre a mãe. Sempre a fatia de compreensão. Andrés descolou-se da parede e veio ter com o pai enfurecido.

"É melhor saber por mim, pai. Eu falei palavrão pra raio pra D. Stella ontem na reunião."

Eu ia exatamente agora falar sobre isso. O pestinha me antecipou em alguns segundos. Uma análise lógica exigiria que eu revelasse que Andrés tinha me tratado pior durante a reunião, para que as coisas equivalessem para os dois. Por que só Adriano estava sendo punido pelo mesmo motivo? Seu único crime foi o pai ouvir a parte quente da nossa conversa. Porque o pai, o grande líder da casa, tem que mostrar a sua atitude franca em favor da manutenção da ordem no galinheiro. Duílio olhou para o filho e para mim.

"A gente vai conversar sério lá dentro. D. Stella, espere um pouco aqui fora, por favor."

Do quarto, vinha o som opaco das cintadas rasgando fundas valetas em pleno alvorecer do século XXI, a tensão característica das vozes no momento, "eu não criei filho meu pra tratar assim as pessoas". E, os dois apanharam juntos dessa vez.

Na maioria dos casos, nunca me importei com o modo como meus clientes me tratam. Mais do que não me importar, a não-intervenção ou não-reação me permite uma clara observação de por onde caminha a mente da pessoa com a qual estou trabalhando. Claro que há limites para procedimentos que podem causar lesões graves, psico ou fisicamente. Mas até lá se pode empurrar as barreiras e tentar entrever o que está além dessa cortina.

"Não quero ouvir uma voz humana nessa sala", declarou o chefe de família. E nenhuma voz foi ouvida, a não ser a dos pássaros cantantes nas árvores em torno da casa, moscas distantes e ocasionais abelhas. As abelhas e os pássaros.

Todos aqui estão tensos. Também pudera. É fácil sentir a tensão no ar, como força viva e imanente dentro da casa. A perspectiva da cerimônia chegando, um ritual do qual o futuro da cidade como um todo dependia. Quantos na cidade realmente gostariam de estar na pele de um dos lidadores? Quantos seriam capazes de assumir tamanha carga de responsabilidade? A fazenda Taurinos parece estar na liderança das coisas nesta cidade minúscula. Isto parece estar vindo de longa data. Eles são a cidade. Num lugar onde todos são aparentados ou amigos é um peso do tamanho de uma cidade para se carregar. Mas quem quer estar nessa posição tem de aceitar o peso. Trata-se de saber o quanto se quer existir, tocar em frente.

Os meninos estão um caco. Se a surra foi metade do que eu ouvi do alpendre, devem estar exauridos. Duílio parece mais velho esses dias, não parece muito melhor que seus dois filhos. Aparecida está perdida em uma névoa de confusão, como um neófito em seu primeiro dia numa religião de mistérios. Ela parece cansada da tensão crescente ao redor, e mais cansada ainda ao saber que tem uma semana de insanidade pura e crescente pela frente até que a cerimônia esteja consumada. Sabe que nada vai passar, só vai ficar pior. E sabe que não há garantias de que a cerimônia tenha sucesso total. São sete touros, sete chances de perder a guerra.

Ficamos na sala em silêncio abatido e total. Adriano não olhava além do tampo da mesa de centro. Andrés olhava para mim de vez em quando. Parecia estar estranhamente satisfeito depois da surra que levou. Como se ele tivesse tirado um peso da consciência por ter me esculhambado grande durante a reunião da Sociedade. Outra pista para isso foi a gentileza toda em querer me arranjar carona no final da tarde.

Não me importei com a esculhambação, eu tinha sido realmente satírica, porque meu bom-humor é difícil de resistir quando estou exposta a uma situação ou conversa que acho engraçada. Ainda que ela possa não parecer engraçada para os outros. Realmente achava que ele tinha de manter um mínimo de ordem, já que o assunto é grave. Achei que tinha de fazer agora a minha parte.

"Eu gostaria de falar", eu disse de repente. Os olhares todos se voltaram para mim. O chefe da família disse que a ordem para não falar se restringia unicamente aos dois animais selvagens que estavam conosco dentro da sala (disse com essas palavras).

"Foi minha culpa que Andrés ficasse irritado durante a reunião", eu disse, relativizando o palavreado do menino.

"É, ela quase me deixou doido com…" Andrés tentou começar.

"Cala essa boca, Andrés. Cala essa boca, que você entra na cinta de novo. Você quer entrar na cinta de novo? É só avisar. Não interessa se ela te deixou doido, você tinha mil maneiras de falar com ela pra pedir que ela parasse."

Eu pedi calma ao chefe de família. Disse que quando ele falou os palavrões era a segunda vez que me pedia silêncio. Duílio voltou suas baterias contra mim por alguns momentos, "a senhora deveria tentar entender a situação que estamos vivendo aqui" e eu reclamei que já tinha dito a ele uma vez que estava no escuro. As únicas peças que consegui juntar de toda a história foram juntadas por mim, não graças a nenhum dos membros da família (que deveriam ser os primeiros a me por a par de tudo o que envolve o mundo mental e emocional do menino).

"Vamos lá, Duílio, Aparecida, meninos, vamos à história. Eu cheguei a Taurinos quase um mês atrás. Vinha com a história de alguém que gostava de lidar com gado, tinha uma certa fixação pelo assunto a ponto de negligenciar seus estudos. Pouco tempo depois, a situação evolui para isso que temos agora. É óbvio para mim…"

"A situação não evoluiu, D. Stella. É assim que tem sido…" Duílio se apressou em me interromper.

"Não interessa", eu cortei de volta ligeiro e rente, "para mim, evoluiu. Vocês podem ter quinze mil anos de história nas mãos, mas eu só tenho pouco mais de vinte dias. Para mim, Taurinos nem mesmo existia no mapa de Minas Gerais até que o telefone tocasse em minha casa e nós conversássemos pela primeira vez. Hoje, essa confusão porque eu mencionei uma religião antiga para o Adriano e o nome do santuário onde se professava essa religião e o menino estava apavorado, dizendo que não foi ele quem entregou o nome da arena, me questionando quem dos meninos poderia ter me passado essa informação. Pois eu vou dizer quem me passou a informação. Foi a vida. Ou você acha, Adriano, que as coisas que existem aqui só existem aqui? Você não acha que as mesmas coisas podem existir em outros lugares, fazer parte da história e serem conhecidas por outras pessoas? Ou será que acha que Taurinos é o único lugar do planeta? Temos bibliotecas em Santos, elas podem dizer a qualquer pessoa o que eu disse a você naquela hora e como se isso não bastasse você pode encontrar mais de 18 milhões de resultados no Google sobre mitraísmo. Tudo isso no seu computador no seu quarto. Fui clara sobre a minha fonte de informação?"

Agora tenho Duílio e Andrés olhando para Adriano. Não me parecia um olhar feroz. Mas não tenho tempo para me entregar à medições de ferocidade ocular. Sinto que hoje é um dia para ser mais incisiva. Toda essa confusão foi começada por mim, então tem que ser resolvida por mim.

"A cabeça desse menino está uma lata de minhocas", eu disse, "ele parece prisioneiro de um segredo terrível que todo o resto da humanidade sabe, só ele pensa que se trata de um segredo. E agora isso está cobrando dele com juros. Tirem esse peso das costas dele, das minhas e de todos nós. Ou eu vou abandonar este caso e arquivar como mais uma conversinha mole pra boi dormir."

O silêncio caiu pesado sobre a sala, seguido pela escuridão da noite que vinha caindo. Adriano me olhava mudo, olhos marejados que eu via mesmo na escuridão da boca da noite. Fui até o interruptor, metafórica e teatralmente lancei luz sobre o assunto.

"Temos de ser tão limpos e sinceros quanto esta luz esta noite", eu disse buscando realizar minha melhor performance, "tão ingênuos e verdadeiros quanto um cabrito recém nascido e falar abertamente de nossos medos, esperanças, preocupações. Posso sentir a tensão de todos. As notícias sobre o incidente na fazendo Pinho me deixaram perplexa também. Não posso culpar vocês por se sentirem assim sabendo o pouco que sei. Mas se não tentarmos equilibrar nossos sentimentos já no primeiro evento, o que faremos quando outros eventos como esse acontecerem? Contra todo o nervosismo eu digo que temos de opor a tranqüilidade. Porque com tranqüilidade e uma cabeça fria temos a possibilidade de vencer a parada. Sem ela, não temos a mínima chance de sucesso. O preço da nossa desorientação vai ser cobrado. E vocês sabem o quanto ele vai ser alto. Já deu para sentir, baseado nos poucos relatos que tive de vocês até agora."

Nem uma palavra. Todos estavam me encarando, olhares perplexos, esperando o que viria a seguir. Eu me sentei ao lado dos dois irmãos. No outro sofá, Duílio e Aparecida. Esta fez menção de se levantar. Eu pedi a ela que ficasse.

"É tarde, preciso ir fazer o jantar", ela se desculpou.

"Eu te ajudo depois. Agora ninguém vai jantar enquanto não conversarmos. Hoje nós não vamos esconder nada, por mais absurdo que possa parecer. Cartas na mesa, verdade, franqueza. Eu vou começar por quando eu cheguei. A pergunta que não quer calar: qual foi o resultado da reunião dos fazendeiros — aquela sobre o roubo de gado?"

"A decisão foi que iríamos pegar os ladrões de gado nós mesmos", disse Duílio calmamente.

"E iam entregar os ladrões à polícia…"

"Que polícia?", interrompeu Andrés, "Não há polícia em Taurinos porque…"

"Não. O resultado da reunião foi que nós mesmos cuidaríamos de tudo", tornou o chefe de família friamente, olhando para sua esposa que começava a se sentir desconfortável.

"E nem é preciso dizer que na ausência de autoridade competente para lidar com o caso, vocês mesmos se auto-investiram com os poderes que bastassem para tarefas simples do dia a dia, como capturar, processar, julgar, condenar, sentenciar e finalmente executar sumariamente os criminosos pegos em falta na cidade."

"A senhora acha que nós estamos errados?", questionou Andrés acenando para o pai, "não, pai; por favor, deixa ela só responder isso pra mim. A senhora acha que está errado? Vivendo nesse ermo, sabe lá o que alguém assim pode fazer contra a gente dentro da noite?"

"Entendi. Então, vocês preventivamente fizeram o mesmo ou pior com eles. Olha, não me entendam mal. Não estou defendendo os caras não. Mas será que uma coça e expulsar os caras da cidade não ajudaria?"

"Não, não, tem que dar exemplo, que pra eles saberem como é que se trata ladrão por aqui. Já aconteceu outras vezes. Foram poucas porque a comunidade aqui é unida. Aqui não tem polícia. Se não mata, como é que faz? Outros acham que tudo bem, porque não vão presos e começam a entrar na cidade e roubar e sabe Deus o que mais?", argumentou Adriano.

"Aí, garoto! Esse é meu irmão…" e Andrés olhou desafiadoramente para mim.

"Eu concordo com os meninos", declarou Duílio.

"E eu concordo com D. Stella", interveio Aparecida, até então muda como um peixe, "uma surra das boas bastaria. Não acredito nesses absurdos de tirar a vida das pessoas", e continuou, "gostaria de nunca ter sabido disso. Ainda mais desse modo."

Eu disse que lidassem com a situação como achassem melhor. Eu temia pela minha própria vida, agora que sabia tanto sobre a família. Eles me disseram espontaneamente que não fariam nada comigo. Isso foi o mesmo que me ameaçar de morte. Uma ameaça velada, mas uma ameaça. Aparecida me olhou apavorada, como se dissesse, "não, não tenho nada a ver com isso".

"Fico feliz em saber disso", declarei, "agora podemos passar para outras questões."

Aparecida estava escandalizada, agora mais pelo meu sangue-frio do que pelo comportamento dos seus entes queridos. Ela mais provavelmente imaginava de onde tiro toda esta coragem. Simples. Do medo que estou sentindo agora. Os homens da casa esperavam pelas perguntas. Perguntei a eles sobre a arena, o estopim de toda a discussão e confusão do dia.

"Quem teve a idéia de denominar a arena como Mithraeum?"

"Isso é ancestral", respondeu Duílio, "não há um "quem teve a idéia", D. Stella."

"Por que então Adriano se sentiu tão ameaçado quando mencionei o nome da arena? Por que você, Andrés, bateu no seu irmão por falar demais? O que ele teria falado demais?"

"Adriano fala demais e às vezes nem precisa ser com palavras. Como na noite da reunião dos fazendeiros. Ele deixou as ferramentas no telheiro e a senhora deve ter visto, primeiro porque ele me contou que a senhora gosta de ficar ali quando não está no quarto ou no alpendre. Depois, porque eu "vi" a senhora "vendo" as ferramentas antes dele colocar as ferramentas ali. Eu ainda estava vindo pra cá e "vi" acontecer ainda dentro do carro, no meio do caminho pra cá. Estou certo?"

Olha só como o passarinho canta. E nem preciso colocar bateria. Mas chegou minha vez de cantar também. Ele disse tudo de vez, talvez porque soubesse que eu teria de por minhas cartas na mesa sobre os estar espionando também. O menino sem dúvida sabe jogar. Sabe se livrar dos anéis para conservar os dedos no lugar.

"Está. Eu estava escondida atrás de uma árvore no telheiro observando vocês."

"Eu sabia!", ele rugiu, socando a palma aberta da mão esquerda com força e mordendo os lábios, nervoso, "ainda perguntei pra esse porra se ele tinha certeza de que vocês duas estavam dormindo. Eu acho, eu acho, ele disse", ele imitava o irmão de forma caricatural, retratando a voz como a de um imbecil completo.

"Entendo todo o cuidado que envolveu a operação de vocês naquela noite, mas por que o mistério todo em torno do nome da arena?"

"Nossa religião é uma religião de mistérios", Duílio explicou, "para se saber certas coisas é preciso ser iniciado."

"Ela foi iniciada, pai", declarou Andrés timidamente, "o nome dela está na ata de fundação da Sociedade. Ela foi registrada depois do Renan, ontem na reunião."

"Você estava me iniciando, meu jovem? Sem me consultar?"

"Você iniciou uma mulher na nossa religião??? Você enlouqueceu?"

"Eu não sei o que me deu, foi na hora", ele estava constrangido diante do pai e do irmão (que estava presente à reunião e sabia que o meu nome tinha sido colocado na ata), "mas alguma coisa me disse que isso seria o melhor pra fazer. Um presságio, sei lá. Me desculpa…"

"Eu espero que esse presságio seja certeiro como os outros que você já teve. Vai ser melhor pra você", Duílio ameaçou, furioso com a quebra de protocolo do filho.

Eu disse que (por ora) não tinha mais perguntas. Me ofereci para ajudar Aparecida na cozinha. Eram quase nove horas da noite. Aparecida disse que faria alguma coisa mais leve para comer, já que não demoraria muito para irem dormir. Minha "profecia" sobre ninguém jantar esta noite se cumpriu.

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