segunda-feira, 23 de março de 2009

Êxtase técnico

Andrés e Adriano nos visitam aqui na fazenda Teixeira. Guilherme é quem faz a sala, Renan está colado na internet o dia inteiro, ocupadíssimo com suas listas de discussão ou sabe-se mais o que.

"A senhora acha que foi por causa da cerimônia?", perguntou Andrés.

"Porque ele abriu um touro ainda vivo na frente de seis testemunhas e entrou dele como um corpo estranho e começou a atirar os órgãos do bicho para fora e depois os ossos, e depois a carne, a pele, o couro e et cetera? É isso que está perguntando?"

"É, é, é, D. Stella…", eu consegui deixá-lo impaciente (o que geralmente não se precisa mover céus e terras para conseguir).

"Olha, a partir do que foi feito lá embaixo, acho que alguma coisa fica. Não que fique um trauma, porque Renan é bem resistente, mas alguma coisa. O desejo de continuar, mesmo que de uma outra maneira."

Perguntei a Andrés se sabia que tanto o pai dele quanto o de Renan tinham dito que os dois brigaram na escola. Não que fosse importante, mas me chamou atenção pela coincidência. Os dois usaram as mesmas justificativas para colocar os filhos sob minha observação.

"Era Renan e eu brigando um com o outro", confessou Andrés, sorrindo.

"Eu devia imaginar", eu disse entre uma risada e outra.

"Renan não sai da Internet porque ele está organizando um campeonato", informou Guilherme, "ele começou com essa idéia um pouco antes da cerimônia."

"Campeonato de que?", Adriano se interessou.

"Rinha de todo tipo de bicho que você possa imaginar."

"Mas isso é proibido no Brasil", estranhou Andrés, olhando para mim. Eu disse a ele que tanta coisa era proibida no Brasil e isso não poderia impedir ninguém de fazer assim mesmo.

"E outra coisa: o que pode impedir o menino de realizar o campeonato se ele disser que tudo se resume a alimentar os animais em público? Em um ambiente mais fechado ele poderia fazer aquilo que num mais aberto não poderia e por aí vai."

"Mas ele vai jogar nosso nome na lama desse jeito" Adriano parecia assustado.

"Adriano, quanto ao respeito com os animais, o nome de Taurinos já está até o pescoço enterrado na merda. Nunca entendi essa tua preocupação com esse assunto."

O rapaz me olhou com os olhos arregalados e não disse mais nada. Talvez faltasse a ele um argumento do qual só iria se lembrar horas e talvez até mesmo dias depois. Eu continuei em minha teoria:

"Toda a necessidade da cerimônia de se impor sofrimento aos animais de uma maneira tão técnica deve ter deixado alguma marca. Não é possível que não tenha sido isso."

"O livro nunca registrou alguém se sentindo desse jeito depois de uma cerimônia", redargüiu Guilherme, "de mais a mais, lembra que eu disse que ele começou com isso um pouco antes da cerimônia?"

"Ele pode até ter começado antes da cerimônia, mas ela deu o empurrão que faltava. A teoria já estava dentro dele e ele só a colocou em prática. No momento em que ele fez tudo aquilo e viu os outros fazendo…"

"A senhora incluída", disse Adriano, com um sorriso deliciado.

"Como queira", eu disse, contrariada pelo aparte, "nesse momento, algo de toda essa loucura deve ter ficado dentro dele."

"Como um cachorro de caça ele deve ter sentido o gosto do sangue e gostado. Deve ter visto que não queria outra vida." aparteou Guilherme.

"Você entendeu tudo, rapaz. Eu mesma não poderia colocar isso melhor que você em palavras."



"Nunca pensei que um lindo frasco tão pequeno pudesse comportar, meu Deus, tanto veneno. Foi dose mortal, fez tão grande mal, mas eu quero outra vez. Basta um só olhar."

Gotas de Veneno, escrita e gravada por Nei Lopes.



Os meninos ficaram em silêncio. Provavelmente pensando no que a cerimônia tinha significado para todos eles. Renan emergiu da Internet e juntou-se a nós, sorrisinho de orelha a orelha. Propus que nós sentássemos no alpendre e conversássemos sobre o que a cerimônia representou para eles.

"Adriano me disse antes da cerimônia que o Adriano que não gostava de maltratar animais ia morrer no momento em que ele pisasse na arena. Ele morreu, Adriano?", perguntei, assim que nos sentamos.

Os outros prestaram atenção no irmão mais velho de Andrés. Ele ficou sem-graça com o foco em cima dele. Sorriu amarelo e disse que não. Que era um modo de dizer quando ele disse isso para mim.

"Eu só queria que a senhora entendesse a necessidade de se fazer as coisas daquele jeito. E deu certo."

"E como deu!", Renan esfregou o meu braço direito, reverente.

"Renan…"

Mais do que nunca, tenho de ser paciente com Renan. O momento é delicado. Preciso tentar tirar dele essa reverência por quem ele acha que eu sou.

"Eu gostei de ter feito aquilo. Sei que foi pela cidade, mas eu gostei do que fiz e do jeito que eu fiz. Não me envergonho de dizer", declarou Guilherme.

"Eu precisava daquilo naquela hora", disse Andrés, "o nervoso descarregou tudo numa noite só, em cima de um touro só. Foi bom, mas não faria aquilo de novo…"

Renan olhou para ele e para Adriano com a cara fechada de quem não está gostando da história. Eu disse que de todo os lidadores, os que mais tinham me impressionado tinham sido Adriano e Renan. Este último sorriu o sorriso dos anjos. Caídos, mas anjos assim mesmo. O primeiro se espantou (e pareceu gostar bastante do que ouviu).

"Eu? A senhora está falando sério?" perguntou Adriano, sorrindo orgulhoso e desconcertado até a última.

"Adriano, eu não lembro de ter visto muita gente feroz como você. E olhe que já vi coisas que você não acreditaria. Eu fiquei muito, muito perturbada com a tua lida. A do Renan também me deixou bem abalada. Ele segurou o frio no meu estômago durante o tempo todo da lida, o que me fez pensar dali até o momento de entrar na arena."

"E eu deixei a senhora assim, é? Paraíso ouvir isso."

""Sêo" Danilo me disse que vocês eram maus e eu só fui acreditar no dia em que estive na arena."

"Ele falou de mim?", Renan se apressou em perguntar, ansioso por conhecer a opinião do veterano.

"Ele disse que você era o membro mais monstruoso e sedento de sangue da classe de 2009. Se admirou até a última de tanto veneno ficar armazenado num vidro tão pequeno."

Os olhos de Renan brilharam num lampejo que lembrava um flash de maquina fotográfica ao ouvir isso. Posso estar fazendo mais mal do que bem a ele dizendo isso, mas se quero que nada seja escondido de mim devo começar revelando tudo o que sei. Como posso cobrar omissão me omitindo todo o tempo?

Renan se voltou para os Conselheiros, "taí, dito por um mestre como "sêo" Danilo. Quem sabe, sabe. E vocês dois são dois cuzões que tão aí, com esse papo furado de fazer tudo pela cidade. Vão se foder os dois!"

"Que é isso, Renan; pirou???" Guilherme fora pego de surpresa.

"É isso mês, Guilherme! Só vejo eu e você dizer que gostamos. Vocês dois gostaram e ficam nessa cuzice de não gostei disso, não gostei daquilo. Eu falo mesmo, gostei e quero fazer de novo, e de novo e de novo! Não fico me escondendo atrás desse nigucim de Grande Um, de fazer o que a gente fez só pra espantar o bicho do mal. Fiz ele sofrer o inferno e gostei pra raio. Eu fiz pela cidade, mas também fiz porque queria ver sangue, queria ver o sofrimento dele até o fim. Eu senti o gosto do sangue e gostei. Isso é tudo. Não sejam falsos, irmãos. Não somos anjos."

Eu fiz assim mesmo | Esperando ser acordado

Rádio Universal: Temporada Permanente

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