sábado, 7 de março de 2009

Este pandemônio esta noite

Santuário. Mithraeum, cheio de gente em volta. De longe, pela gaiola da caminhonete já vejo a movimentação, gente da cidade em torno. Pergunto aos meninos o que é aquilo. Andrés explica que vieram da cidade nos saudar e desejar boa sorte nas profundezas da Catacumba Obscura da Morte, da Destruição e do Infinito Horror. Faltam vinte minutos para a meia-noite. No assento à minha frente, Anderson sentado como se preferisse não tocar a superfície dele.

"Ainda com medo de sujar a roupinha branca, Anderson?", Renan dava corda no amigo, suave vingança por Anderson ter dito a ele que nada para matar a sede como o nosso próprio sangue.

"Sangue bom é o que vem da língua, Renan", e o mineirinho deu uma piscadinha marota para o outro mineirinho.

Eu e seis minúsculos habitantes de uma cidade perdida de Minas Gerais na traseira gradeada da caminhonete, transportados como gado. Fazendo piadas para relaxar a tensão. Não sinto Renan tenso, só se for pela antecipação de em menos de uma hora estar a braços com um Sagrado gigantesco e visando a melhor posição para começar o Sagrado Retalhe. Retaliação aqui só se for com um "h" ao invés de um "i".

"A sua língua melhorou pra raio, hein Renan?", Andrés tentava relaxar através do exercício do escárnio.

"A senhora fica bem de branco, D. Stella" disse Bruno, até então conversando interminavelmente com Adriano à meia-voz.

"Você fica bonitinho de branco também, jovem Taurino", e eu ri uma meia-risada.

Anderson agora conversava com Guilherme e Bruno. Eu, Adriano, Andrés e Renan nos quedamos em silêncio total, à medida que a caminhonete se aproximava do Mithraeum. Ao chegarmos, juntou gente. Foi difícil descer da caçamba com tanta gente querendo ver os sete malucos juntos talvez pela última vez. Uma chuva de boas-sortes nos cobriu junto aos inevitáveis amuletos que recebemos de presente, abraços e uma torrente de tapinhas nos ombros e nas costas. Andrés me pediu os óculos, juntou aos dele e entregou os dois pares ao pai, enquanto eu tentava autografar a camiseta de uma jovem moradora de Taurinos que veio de branco também "pra trazer um astral de Mitra, uma boa luz", mesmo não estando condenada a participar da cerimônia como nós sete.

E um dos que nos vem desejar boa sorte é "sêo" Danilo. Sempre sorrindo, o tipo de mineiro que sabe o valor de um sorriso e do bom humor. Ele me fala em particular, "eu lhe disse, uma vez que o livro registre seu nome, é pra valer. O livro está vivo, ele pode lembrar de coisas que nem eu nem você lembramos mais. Boa sorte, "sá" Stella. O Astro Rei vai lhe guiar, tenho certeza", ele apertou minha mão firme nas dele. Não sei porque me senti melhor depois do aperto de mão, ele passava uma vibração positiva como a nativa e seu boa-sorte meio ingênuo, meio hippie. O caos aqui em torno é grande e já cobra bem dos meus nervos. E a cerimônia nem começou ainda.

Descemos as escadas longas do Mithraeum mais uma vez. Andrés teve trabalho para fechar a porta do alçapão, tamanha a quantidade de gente em volta. As luzes da escadaria iluminavam até certo trecho lá embaixo. O mais era escuridão. E sabíamos o que espreitava lá embaixo. À medida que descíamos, o ruído das pessoas ainda na porta Mithraeum ia se misturando ao ruído de metal das grades lá embaixo. Se eu antes não sabia como era uma descida ao inferno, agora eu tinha uma perfeita idéia de como deveria ser.

Ao chegarmos ao final da escadaria, Andrés apagou as luzes do caminho. Escuridão total, mugidos altos como apitos de navios, o ruído infernal das grades batendo umas nas outras. Os ruídos de pessoas ficaram no passado. O presente era esta escuridão e aquele ruído infernal, antes que Andrés acendesse as luzes do santuário.

Quando ele as acendeu, o santuário pareceu surgir vivo do nada. A meia luz por toda parte que se via, o foco de luz fantasmagórico exatamente sobre o centro da arena. Nos sentamos todos nas arquibancadas e nenhum olho conseguia sair do círculo da arena lá embaixo. O barulho dos Sagrados e das grades era alto, quase nos limites do insuportável. Andrés ligou um relógio digital pequeno que projetava as horas na parede do fundo do santuário, tornando o ambiente ainda mais fantasmagórico. Faltavam nesse momento dez minutos para a meia-noite. Renan conversava baixinho com o irmão e com Andrés. Não sabia o que era, mas Andrés foi rápido em dar a ele uma resposta negativa.

"Não, Renan, seu irmão não vai filmar você na arena pra colocar na porra do You Tube e ponto. Só não recolhi essa câmera antes porque não vi vocês com ela. O que acontecer aqui vai ser pra ficar só na memória."

Andrés trocou de lugares com Anderson para ficar do meu lado, "eu peço perdão pelo modo como falei com a senhora ontem na arena. O que eu disse que faria eu farei de verdade se a senhora falhar, mas existem outros modos de dizer as coisas pras pessoas. Estou perdoado?"

Eu não disse uma palavra. Ouvia a voz dele lá longe, como vinda de uma outra dimensão direto para uma fita cassete usada em psicofonia. Ele repetiu a pergunta mais tres vezes e desistiu, eu não dizia uma palavra. Ele então mudou de assunto.

"A senhora vai ser a última. Cuidado com o piso, porque a arena vai se tornar uma piscina de sangue, couro, chifres e tripas. A responsabilidade em terminar a cerimônia (e terminar bem) é totalmente sua… A senhora está prestando atenção?"

Ele olhou para mim longamente como quem procura ler o que se passa em minha cabeça. Não pareceu ter conseguido, e voltou para o lugar onde estava antes. Lancei um olhar ao relógio projetado na parede. Dois minutos para a meia-noite e, olhando também para o relógio, Anderson começou a cantar baixinho como se fosse Bruce Dickinson só para descontrair:



"Raça de assassinos ou a semente do mal, o glamour, a fortuna e a dor. Vá para a guerra outra vez, o sangue é a mancha da liberdade, mas não reze mais por minha alma. Dois minutos para a meia-noite. As mãos que ameaçam com a aniquilação. Dois minutos para a meia-noite. Para matar quem ainda não nasceu ainda dentro do ventre."

Dois Minutos Para A Meia-Noite, escrita e gravada por Iron Maiden.



"Anderson, concentre-se na cerimônia agora e em mais nada. É hora da guerra começar", repreendeu Andrés.

À meia-noite exatamente, Andrés disse que todos dessem as mãos. Pediu ao Astro-Rei a força necessária para a batalha e todas aquelas coisas bonitas que se dizem em orações e meditações, Pediu aos irmãos que dessem vazão à sua ferocidade máxima em fazer cumprir a lei dos homens neste inferno dominado por touros e incertezas.

Renan tinha o corpo agitado, febril por entrar na arena. Andrés pediu a ele que esperasse e ligou um outro dispositivo: um pequeno osciloscópio que começou a produzir um zumbido imenso que mudava de tom e modulação aleatoriamente, misturando-se aos sons de metal dos estábulos, criando uma barulheira além da mais forte produzida pela imaginação humana. Quando o ruído já tomava conta de tudo ao redor, irritando os Sagrados que escoiceavam as barras de metal em infernal confusão, ele finalmente liberou Renan para que começasse a matança.

Os outros começaram a gritar encorajando o menino (como isso fosse necessário para alguém como Renan). Ele caminhou resoluto até a entrada do círculo segurando sua espada, pisou numa pequena laje em frente ao portão de entrada, afundando ligeiramente a lajota e liberando o portão. Olhou para o teto do santuário, persignou-se, pisou em uma outra lajota, esta dentro do círculo. O portão se fechou por trás dele e a primeira baia se abriu, liberando o Sagrado contido ali dentro. Ele saiu, toda a energia represada por todos os dias passados na escuridão e na limitação daquele cubículo explodiram dentro do círculo como uma bomba.

Renan era o alvo. A única coisa a se mover ali dentro além do próprio Sagrado. O bicho investiu contra ele, mas encontrou a grade de proteção do círculo contra a própria testa. Renan se divertia em fazê-lo colidir contra a proteção e amassar a testa cada vez mais. Quanto mais furioso, mais o animal errava em suas investidas. Afinal, cansado da brincadeira, Renan veio com raiva na expressão e na atitude e arpoou o animal no topo das costas, como nos havia ensinado. A força que eu o vi empregar no ato não era fisicamente possível.

O Sagrado retorceu-se de dor, enquanto Renan montava nele logo atrás da espada e girava a lâmina dentro do ferimento como um torturador eficiente e devotado. Como se estivesse mexendo um caldeirão de sopa. O buraco se tornou visível mesmo das arquibancadas e enlouqueceu o menino assim que o sangue começou a jorrar da ferida mais que aberta. Eu vi Renan tirar a espada de dentro com um único puxão, enfiar a cara no ferimento e beber o sangue quente que transbordava dali. E o vi cravar a espada atrás de si mesmo, alargar a primeira ferida com as próprias mãos.

"Olhe pra ele e aprenda com um mestre de verdade", gritou Guilherme para mim, a voz quase sumida em meio ao ruído de fundo ensurdecedor. Eu estava abestalhada e engolindo em seco demais para conseguir lhe dar qualquer resposta, mas sabia que Renan mal tinha começado a apresentação.

Era o fim daquele Sagrado. O corpo coberto de tremores, o mugido lamentoso e insuportavelmente alto e cheio de dor que não parava, enquanto o diabinho ia rasgando cada vez mais a ferida e literalmente entrando dentro dela, como se o touro fosse uma fantasia e ele o estivesse vestindo. Em dado momento, Renan literalmente desapareceu dentro do touro, que ficou caído no centro da arena. Isso não está acontecendo. Quanto mais fundo ele ia, mais vísceras eram atiradas para fora como se fossem pedaços de lixo sem importância, aterrissando no piso da arena que já era uma piscina de sangue. Os outros gritavam entusiasmados até que tudo parou. Apenas o animal ainda tomado de tremores e estertores aparentemente sozinho no centro do círculo.

Repentinamente, as próprias costelas e ossos do animal foram lançadas para fora. O Sagrado se abriu como uma concha e de lá pulou Renan, coberto de sangue e fluidos, agarrando o animal quase morto pelo pé e passando a cortá-lo em fatias finas com nada a não ser suas mãos.



"Bom, sim, você fez o serviço muito bem. Aqui está um pequeno prêmio. A história do mundo."

A História Do Mundo, escrita e gravada por Gang Of Four.



"Gostaram da minha interpretação do nascimento?", foi a primeira coisa que o monstrinho coberto por camadas de sangue e outras nojeiras perguntou ao retornar às arquibancadas.

"Eu estou com vontade de vomitar", eu disse a ele, meio brincando, meio a sério, era difícil me ouvir falando em meio ao ruído.

"Pode vomitar na minha cara se quiser! O que é uma vomitada pra quem já está cagado?", e a coisinha minúscula e nojenta riu e de tanto rir, começou a se urinar todo, com grande cópia.

"Renan, chega dessa merda dessa nojice", ponderou Andrés, no fundo se segurando para não rir.

Eu tive de rir do bizarro da situação. Lá embaixo na arena, os cacos do que um dia tinha sido um touro. Nem mais um único espasmo de vida naquelas mantas de carne retorcida. Andrés olhou para Bruno e o liberou para descer para o círculo. Do mesmo modo que Renan, este também pisou a mesma lajota, liberando o portão. Dentro do círculo, ele olhou para o alto e se persignou.

"Certas coisas se aprende vendo", Andrés estava agora a meu lado nas arquibancadas enquanto Bruno já pisava a lajota interna, trancando o portão atrás de si e liberando a segunda baia. A mesma explosão de energia, a coisa imensa e escura voando sobre ele, mas nada que fosse intimidar um jovem matador como ele. Em dado momento, segurou o bicho pela pata traseira e o puxou para si mesmo com violência animalesca, talvez ainda mais animalesca que a do próprio animal que lidava.

Não consigo deixar de pensar que os movimentos tanto do animal quanto os do lidador não pertencem às leis da física como a conhecemos. Algo acontece naquela arena, que não sei o que. Mas tenho o meu palpite que muito em breve vou descobrir. A tensão em mim vai aumentando em meio à absurda violência do embate, o som enlouquecedor do osciloscópio zunindo, o metal das grades das baias e do círculo, a gritaria insana dos meninos comigo nas arquibancadas e o pior, a perspectiva de estar em muito pouco dentro do círculo pelejando um monstro de meia-tonelada e, como se isso não fosse suficiente, tinha de ser também o mesmo que tirou a vida de um de nossos membros.

"Violência! Sangue! Sofrimento! Morte! Issmêss! Mostra pro filho da puta quem manda, Bruno!", era a gritaria geral ao meu lado ao mesmo tempo alta e abafada pelo ruído maior.

Bruno agora submetia o animal a uma série de sofisticadas técnicas de humilhação, depois de ter enterrado a espada quase que até a empunhadura nas costas do touro. Ele agarrou o bicho pelos chifres e esfregou um lado de sua cara no chão até que nada mais restava daquele lado. O menino era realmente feroz. Era fácil de ver que o touro agora não tinha mais muito tempo de vida nas mãos dele. Antes que os olhos pudessem acompanhar, Bruno já tinha aberto o abdômen do touro com as mãos e se deitou dentro da cavidade como quem deita relaxado numa banheira de vísceras e sangue quente. Um amor como sangue, um amor distorcido pelo ódio, um ódio-amor que não cabia em seu próprio espaço de tanta contradição de si mesmo.



"Devemos viver nossas vidas como soldados no campo. Mas a vida é curta, e corro rápido todo o tempo. A força e a beleza se destinam a se degenerar. Então corte a rosa em plena floração até que os destemidos venham e o ato seja realizado. Um amor como sangue, um amor como sangue. Todo dia vivendo essa frustração e desespero. O amor e o ódio lutam com os corações em chamas, até que as lendas vivam, que o homem seja Deus novamente e que a auto-preservação não seja mais a ordem do dia. Devemos sonhar com terras e campos prometidos que nunca desapareçam engolidos pelo tempo. À medida que caminhamos para o que não tem fim, aprendemos a morrer, lágrimas de vermelho-rubro são derramadas sobre o cinza. Um amor como sangue."

Um Amor Como Sangue, escrita e gravada por Killing Joke.



De seu relaxamento emergiu um Bruno furioso que passou a descarnar o touro da maneira mais visceral, dolorosa e horripilante possível, chegando a lançar órgãos e partes do bicho por sobre a proteção do círculo, sobre as arquibancadas. Andrés comentou comigo que ele não tinha a menor idéia de onde estava jogando os órgãos arrancados, já que perdera a referência de onde estávamos e nada das arquibancadas pode ser visto de dentro da arena por causa da iluminação usada no Mithraeum.

Era o fim do segundo touro. Fim radical e completa aniquilação. Seus pedaços foram ficando pelo chão, ainda frescos e nervosos da batalha perdida. Alguns tremores ainda sacudiam estranhamente os membros arrancados do animal, como no magnetismo animal de Mesmer. Bruno deixou o círculo tão nojento como estava Renan e veio ter conosco, enquanto Guilherme sacava a espada de dentro da bainha e se preparava para a ação.

Ele cumpriu os mesmos rituais de entrada no círculo já executados pelos dois antecessores. O sincretismo do sinal da cruz num momento de sacrifício, uma luta que embora não parecesse difícil daqui de cima e tivesse movimentos que eram executados facilmente demais (e o que quer que haja naquela arena no momento da batalha é coisa da qual a cada minuto me aproximo mais de saber) devia ser complicada lá embaixo. O ruído em torno, eternamente insuportável e a sensação de algo crescendo dentro de mim que não posso definir. Deve ser o osciloscópio, o desgraçado osciloscópio.

"Nada de pânico, não é difícil como parece", me disse o Bruno, com pena da minha expressão e ainda pingando sangue e vísceras por todo lado.

"Não é pânico", eu expliquei, "estou sentindo náuseas."

"Já ouviu falar de Dramamine®? É um contra muito bom"

"Ah, mas hoje não vai funcionar", respondi quando Guilherme já se atracava com o animalão lá embaixo no círculo.

"Bom, foi só uma idéia…" ele concluiu antes que Andrés pedisse a ele para sentar por causa da ação lá embaixo. Só percebi que era isso pelo gesticular de Andrés. Está cada vez mais insuportável o ruído e mais difícil ouvir o que quer que seja aqui dentro.

A matança executada por Guilherme teve um padrão parecido com a de Renan, talvez um mal de família. A diferença é que Guilherme soube extrair os miolos do bicho sem despedaçar o conjunto; ele parecia mais metódico que Renan. Ele atirava as partes internas para cima fazendo chover sangue e vísceras sobre si mesmo e sobre o infeliz animal que lidava. Ferocidade máxima em produtos e serviços.

Eu estava no final das arquibancadas quase, de modo que qualquer um entrando ou saindo do círculo teria de forçosamente passar por mim. Grande lugar para recolher primeiras impressões; no entanto, senti que viriam me procurar em qualquer lugar, talvez porque sentissem que eu estava insegura e quisessem me encorajar, então todos eles se apressavam em conversar comigo depois de terminado o próprio festival de ferocidade.

Sobre o que eu estou falando? Terei de ser tão agressiva quanto eles. Terei de fazer o que todos eles estão fazendo, matando os touros todos um a um, num banho de sangue quente e atrocidade sem rival. Por que o meu próprio falso moralismo? Aonde é que eu vou para me esconder de mim mesma? Não existe saída daqui a não ser aquela por onde entramos. Não existe saída de um compromisso como o nosso.

Guilherme emergiu do círculo infernal todo coberto de sangue, partes pequenas do touro, vísceras, seu próprio sangue, até uma orelha grudada na camisa encharcada e pingando, e coberto de muita glória. Um verdadeiro guerreiro, ligeiramente ferido pelo touro e tudo. A arena é agora a piscina de sangue e vísceras bovinas prometida por Andrés. Agora Anderson se prepara para descer.

Tivemos Anderson arrancando as pernas do animalão uma por uma enquanto o animal mugia consumido pela dor e pela violência insana do qual era vítima consumada agora. Sem condições de continuar sem uma das pernas, foi fácil a Anderson arrancar as outras, o rabo e finalmente a cabeça do animal, num processo angustiante que pareceu levar horas. A facilidade com que ele faz tudo, como os outros antes dele continua a me intrigar. Chego a esquecer o medo de tudo, pela curiosidade de saber o que há na arena que faz os lidadores tão poderosos. A sensação estranha cresce mais e mais dentro de mim, como algo que pudesse se expandir para sempre sem nunca encontrar barreira para sua expansão. Andrés quer me enlouquecer e a todos nós com o maldito osciloscópio zumbindo e modulando sem parar.

Tivemos Adriano montando o touro e não sendo menos perverso que Renan em nenhum sentido. Pelo contrário, parecia superar o amiguinho por vezes. Eu engoli em seco, atônita com tanta crueldade e ferocidade tão extremada, o que não era café pequeno diante do que eu já tinha visto ali desde o começo.

Andrés finalmente desceu para a sua lida. A gritaria foi intensa enquanto ele cumpria os rituais de todos os outros e trancava o portão atrás de si. Sua lida foi uma das mais interessantes e tensas, mas ele sabia onde pisava em meio ao caos de sangue, membros, cabeças, chifres e vísceras que a arena mais e mais se tornava a cada Sagrado liquidado. Seria bonito se não fosse aquela desgraça que várias vezes narrei neste mesmo espaço. E sim, quem está lendo isto já sabe como o animal ficou depois que Andrés deu o seu trabalho por encerrado.

Andrés subiu do círculo com a cabeça do animal e a colocou do meu lado. A modulação do osciloscópio está até interferindo no meu campo visual. Bolinhas de todas as cores iam se formando enquanto Andrés falava comigo. Eu via os lábios dele mexendo e apontando para a cabeça do Sagrado, mas o som era uma única zoada. Eu tentei articular as palavras e pedir a ele que pelo menos abaixasse o som do osciloscópio, mas ele não só me colocou a espada na mão e me mandou descer para o círculo como também aumentou o som e a freqüência do osciloscópio ainda mais. Me preparei para o meu fim. Os meninos me observavam do alto de sua capa de excrementos e glória na arena, curiosos por ver como eu me sairia. Alguns pareciam meio assustados e isso foi deles a última coisa que vi antes de descer para esse círculo tão dantesco.

Paro em frente ao legendário portão por onde todos os Taurinos passaram (e quantos outros Taurinos antes deles?), sem exceção. Olho para a última baia, o monstro lá dentro chutando com nervosismo, e para a piscina dentro da arena, onde estarei me chafurdando em momentos. Piso na lajota em frente ao portão e ele se abre com estrondo que chega a me sacudir. Então, eu entro. Estou atravessando o Rubicon.

Agora só o que eu preciso para colocar um fim na minha vida: pisar na segunda e fatídica lajota. Me aproximo dela enquanto o touro que matou Arthur começa a escoicear ferozmente e agora deformando as barras da grade da baia. Me parece que se eu não liberar o animal para a arena, ele o fará por seus próprios métodos. Sou eu quem tem de pisar na lajota quando eu estiver preparada. Mas preparada pra que, caralho (só falando palavrão mesmo)? Quando na minha vida me preparei para isso? Começo a chorar e a violência do touro dentro da baia me enche do infinito terror de saber que ele vai sair com ou sem minha ajuda e eu terei de enfrentá-lo de qualquer modo. O portão ainda está aberto atrás de mim. A chance de fuga que ele simboliza não me comove nem me seduz. Sem mais delongas, aqui estou eu, olhando para o teto do santuário, fazendo o sinal da cruz e pisando a segunda e fatídica lajota. Esta hora vai ser para sempre.

Com um trovão forte no meio da barulheira infernal do osciloscópio, o portão se fechou e travou atrás de mim. Ao mesmo tempo, o portão da última baia se liberou com estrondo parecido bem na minha frente. O som que eu ouvia das arquibancadas não existe mais. Estou isolada aqui dentro. Finalmente, a morte. E o pior: vou assistir de camarote, já que não posso deixar de prestar atenção.

Nada acontece.

Cautelosamente dou dois passos para a esquerda para olhar dentro da baia. O animal está lá. Tenho de agir com minha própria iniciativa agora. Me aproximo da baia e ele me olha enquanto venho cada vez mais perto. De súbito, pula sobre mim e é tão macio quando me arremessa contra a massa da parede do outro lado da arena. Não sei de que lado da arena os meninos estão, perdi toda a referência. Este é o mistério, é por isso que os meninos se moviam com tanta facilidade aqui dentro e conseguiram fazer tudo o que fizeram? Não posso esquecer que há uma carantonha de um touro bem em cima de mim, estou presa sob uma de suas patas, a espada está fora do alcance camuflada no meio das vísceras e demais sub-produtos de gado bovino, o ruído do osciloscópio está me massacrando, o stress sob o peso do animal é intenso e apesar de tudo isso eu consigo levantar. Daí por diante, foi o desconhecido. A última coisa que me lembro é de ter me levantado a despeito de todo o inferno o meu redor.

Te prometi um milagre | Descendo a ladeira da memória

Rádio Universal: Um Amor Como Sangue

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