quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

A vida inteira

São cinco horas da manhã. Ainda está tudo um pouco escuro, mas as vistas já se acostumam rápido a essa hora da manhã. Saio para a estrada de terra que passa em frente à Taurinos. A porteira com o nome da fazenda, a legenda para aqueles que se perdem na escuridão dos tempos e das noites daqui.

Um vulto na estrada. Um homem, dá para distinguir. Um passo trôpego de quem já caminhou demais pelas estradas da vida. Agora perto, o peso dos anos, a velhice manifesta num rosto até simpático, mas pesado da vivência que ele arrasta até aqui. Ele para e me cumprimenta. Começamos a conversar. Seu montanhês é carregado e as palavras nem sempre são as mesmas que eu utilizo (e o oposto é verdade também), mas com boa vontade de ambas as partes fomos nos entendendo.

"A senhora está perdida por aqui?"

"Não, na verdade estou hospedada com os Conselheiros, na fazenda Taurinos, aqui em cima…"

Ele me olhou com a expressão ligeiramente alterada, talvez surpresa. Seria surpresa para alguém me encontrar vagando tão perto do lugar onde estou hospedada?

"A senhora conhece os irmãos que moram lá, então", ele perguntou, aparentemente interessado.

"Sim, o Adriano e o Andrés", respondi.

Ele me olhou de modo conhecedor. Ficou me fitando muito tempo desse modo. Como se ele se empenhasse numa guerra interna sobre se continuar a conversa ou seguir em frente.

"Aqueles meninos… São maus. São muito maus. Cuidado com eles."

"Adriano também?"

"Ele também. Mas o gordinho…"

Ele fez outra pausa imensa. Como aquelas de filme que parecem ter congelado o momento numa única eternidade.

"Que tem ele?"

"Ele é pior. Ele é muito, muito pior."

Eu precisava encontrar alguém de fora da fazenda. Agora me toco que esse homem é a única viva alma de fora que encontro desde que cheguei aqui. Todas as pessoas que conheci até aqui estão de alguma maneira relacionados à fazenda. Tento fazer o homem falar.

"Você conhece bem os meninos?"

"Conheço e era amigo do avô deles."

"Então, acho que preciso conversar com o senhor."

Ele sacudiu a cabeça negativamente.

"Aqui não. Na minha casa, se quiser, às seis horas da tarde de hoje ou qualquer dia que tiver tempo. Pergunte pelo "sêo" Danilo. A senhora é…?"

"Stella. Meu nome é Stella."

Eu disse a ele que me esperasse hoje. Que eu tinha muitas perguntas a fazer. Ele me deu instruções sobre como chegar à casa dele (distante uns 5 km dali) e desceu a estradinha sem mais. Passei o resto do dia pensando em como Adriano (do modo como eu o via) poderia ser o que "sêo" Danilo chamava de "mau".

São mais ou menos cinco e meia da tarde quando me ponho a caminho. Apreciando as paisagens ao redor, conhecendo mais a parte rural de Taurinos cada vez que saio da fazenda. Penso em quando vou conhecer o centro da cidade. Só não será hoje.

Uma casinha isolada num vale próximo. Perdida sozinha no meio do nada. Como viver num isolamento desses? Sabendo que o próximo vizinho está tão distante. À parte as vantagens de não ter ninguém fazendo barulho, há o lado da infinita solidão que se pode viver num lugar assim. Não há luz elétrica, nem comunicação com ninguém ou nada.

A casa é modesta. Uma tapera, feita em pau-a-pique. De dentro vem uma luz frágil, provavelmente um lampião de "criosene".

"Sêo" Danilo me recebe, uma expressão estranhamente mista de surpresa, satisfação e cautela. Me indica uma cadeira e me diz que está preparando feijão e galinha caipira. Me convida a jantar com ele. Aceito, pensando em poder prolongar a visita e extrair dele o máximo que puder. Fico observando o trabalho de "sêo" Danilo no fogão de lenha, tudo ao redor iluminado pelo lampião. A tarde vai se acabando lá fora; a Estrela D'Alva se deixa observar pela janela aberta ao lado de minha cadeira. O ambiente dentro da tapera é de um certo aconchego e intimidade, talvez pela iluminação tão frágil.

"O senhor mora sozinho aqui, "sêo" Danilo?"

"Sim, há uns quarenta anos, quando comprei esse pedaço de terra, "sá" Stella."

Ele coloca dois pratos brancos de ferro esmaltado na mesa. Diz que a casa é pobre, mas que ele faz questão de manter tudo arrumado. Olho em volta e vejo que ele não está mentindo. A casa é incomumente limpa para uma casa de um homem sozinho. "Sêo" Danilo traz os talheres, as travessas com a comida e provando o feijão, vejo que ele daria sozinho uma grande refeição. O homem cozinhava muito bem, sem a menor sombra de dúvida. Ele comia às vezes distraído com a luz do lampião. De repente, pediu licença, foi aparar um pouco o pavio do lampião que estava reinando. Graduou a luz convenientemente e retornou à mesa, quebrando o silêncio.

"O que a senhora faz na fazenda Taurinos? É parente?"

"Na verdade, fui procurada em Santos, onde moro, para trabalhar com Andrés, que está tendo uns problemas de comportamento."

"Que problemas de comportamento?" "sêo" Danilo franziu a testa.

"Muita agressividade, sabe?"

"Sêo" Danilo riu. Disse que a única maneira de resolver o problema da agressividade de Andrés era afogar o menino num rio. Eu o olhei séria e ele continuou, "se tirar a agressividade, o que vai sobrar dele?"

"O que quer dizer com isso, "sêo" Danilo?"

"Que dentro dele a única coisa que tem é agressividade."

Contei que o vi bater no irmão, descrevi a surra e "sêo" Danilo disse que isso não contava porque essa era a idéia de Andrés de carinho e amor fraternal. Disse que ele era capaz de mais, muito mais, mas que era raro que ele dirigisse isso contra pessoas.

"Ele dirige para os touros? Ele é bem agressivo ao marcar os touros."

"Isso é normal, marcar touros."

"E o que ele faz de anormal?"

Uma pausa. Ele se serviu de mais feijão e arroz. Lá fora, a noite era fechada, os primeiros curiangos já seguiam para a beira das estradas com seu canto curioso. Olhei pela janela enquanto comia. O céu magnífico do Sul de Minas Gerais, a Via-Láctea a perder de vista de um lado a outro. Voltei os olhos e tinha "sêo" Danilo medindo para si mesmo o quanto me passaria de informação.

"É uma história comprida. E que compromete muito. A senhora tem certeza de que quer ouvir?"

"Eu vim mesmo para isso. Sem desfazer do seu jantar maravilhoso, foi esse o único motivo pelo qual eu vim."

Ele sorriu e agradeceu o elogio pelo jantar.

"Eu e Andrés — o avô do gordinho que mora na fazenda — andávamos muito juntos. Desde meninotes, a gente só fazia andar junto. Nadava em rio, roubava cavalos para andar e depois largava perto das fazendas, coisa de menino espoleta de interior mesmo. Ele encontrou um livro uma vez que falava dessa região milhares e milhares de anos atrás."

"Andrés me contou sobre esse livro. Onde ele está?"

"Não sei. Já se vão tantos anos… Ele gostava muito de ler e acabou que com uns dez anos teve que começar a usar óculos de tanto que lia. Eu me lembro que ele contou o livro inteirinho para mim. O livro falava de uma entidade que visitava a cidade de tempos em tempos, conhecida como o Grande Um. Essa entidade era como se fosse uma força que existia em volta, mas não na cidade mesmo. O Grande Um inspirou os touros que existiam na região a fundar uma povoação. A senhora pode achar engraçado e sem pé nem cabeça, mas eles fundaram mesmo uma cidade, como se fossem gente."

Ele me disse que desde os tempos imemoriais se aguardava o Advento; perguntei a ele o que era o Advento e ele me disse que os antigos esperava a chegada do Criador que iria trazer a vida eterna à cidade. Ele viria, corporificado, mas para dar a vida eterna ao povo da cidade, ele teria de abrir mão de sua própria vida. Se ele o fizesse, o faria por sua livre e espontânea vontade. E ninguém mais morreria ou ficaria doente na cidade, exceto em casos especiais. Não soube me dizer que casos especiais eram esses.

"A família Conselheiro me contou a história da fundação de Taurinos. O senhor acredita?"

"Eu acredito, sim. Mas não é questão de acreditar, é sair lá fora e ver e sentir tudo isso. Eu e Andrés sentíamos no ar aquilo que se falava no livro. Todo o tempo. O Grande Um queria entrar na cidade, mas algo impedia. Éramos nós, os meninos da cidade."

"Como faziam para impedir?"

"Posso pular a parte em que os touros atacavam as pessoas e matavam? O gordinho lhe contou isso?"

Perguntei porque ele chamava Andrés de gordinho tão freqüentemente (além da motivação básica do excesso de peso da criança). Ele respondeu que chamava assim ao avô dele também por pura sacanagem. Eu disse a ele que conhecia os primórdios da história, a parte do início de tudo, quando os touros atacavam as pessoas e matavam a todos de maneira perversa.

"Nenhum touro aqui na cidade é realmente manso. O Grande Um não entra na cidade, mas manipula de fora. Ele não deixa nenhum touro sair vivo da cidade, entende?"

Contei a ele a experiência no domingo e ele se admirou do fato de que Andrés tinha matado tres touros para me fazer acreditar na história. Ficou sacudindo a cabeça, sem acreditar.

"Eu disse que o menino era mau… Então, a senhora viu acontecer. Sabe bem como é. É o Grande Um que não deixa a semente dele se espalhar por aí."

Ele cruzou os talheres sobre o prato e me olhou, ainda indeciso sobre continuar a história ou não. Finalmente disse que na mesma época em que o avô Andrés achou o livro, os problemas com os touros atacando a população tinham recomeçado. Isso sempre acontecia quando a entidade estava por perto. Era o sinal de que o Grande Um estava de volta ao limite do município para sitiar a cidade, o que ele fazia de tempos em tempos.

"Só vive tranqüilo aqui quem vive nos intervalos de tempo entre uma Lei dos Touros e outra. Segundo o livro, a cada cinqüenta e dois anos ele reaparece. Nós calculamos o tempo e vimos que estava em tempo de uma nova Lei dos Touros."

Segundo "sêo" Danilo, ele, Andrés e outros cinco meninos da cidade firmaram uma sociedade para afastar o Grande Um da cidade. Eles criaram uma arena fechada onde sete touros da cidade eram esquartejados vivos ainda.

"O número sete se repete na história não? É um número sagrado, ou coisa parecida?"

"Sêo" Danilo explicou que o sete era a soma dos dois algarismos do intervalo de anos entre uma e outra vinda do Grande Um. Cinqüenta e dois anos, sendo 5 mais 2, totalizava sete. Eu sorri e disse que fazia sentido.

"E os sete esquartejavam os bichos um de cada vez."

"Não, não, não. Cada um cuidava do seu."

"Sozinho??? Um touro adulto? E o senhor participou disso?"

"Quem mais a não ser nós sete?"

"Como fizeram quando seus pais descobriram?"

"Nossos pais sabiam desde o início. Nenhum adulto na tradição da cidade conseguiu executar a cerimônia sem morrer igual aos touros que a senhora disse que viu morrer na divisa da cidade no domingo. Eram as crianças que tinham de fazer."

"Desde o início era assim? As crianças?"

"Isso mesmo."

"Andrés me contou sobre a cerimônia nos começos, mas nunca me disse que eram crianças."

"Ele não queria assustar a senhora, provavelmente."

"Isso não iria me assustar nunca, acredite, já vi coisas bem piores vindo de gente da idade deles. Os pais não tinham medo de que algo ruim acontecesse aos filhos?"

"Medo sempre se teve, mas fazer o que? Era a única chance que se tinha de expulsar daqui o Grande Um. Que outra escolha eles tinham a não ser deixar a gente fazer isso?"

"A cerimônia funcionava?"

"Funcionou. A gente viu que tinha chegado na solução dos antigos. A gente descobriu como sempre se tinha feito e colocou em prática. Isso aconteceu há pouco mais de cinqüenta anos."

"Qual era o nome da Sociedade?"

"Era a Sociedade Antiga dos Taurinos. Os meninos devem estar revivendo isso agora, não?"

Eu disse a ele que Andrés tinha começado a procurar o Grande Um nas fazendas. Ele se interessou e contei que o Grande Um viria de um touro nascido por esses dias. Ele me olhava espantado, como se não conhecesse essa parte da história.

"Não imaginava que ele iria tentar entrar na cidade desse jeito, "sá" Stella. Para mim é novidade das grandes. Mas se for assim, pode ele já estar dentro da cidade. Assim que o touro crescer, vai ser o inferno. Se for assim como diz, vai ser a primeira vez desde o começo em que o Grande Um vai conseguir entrar… Tira mais comida, "sá" Stella."

Agradeci e recusei. Perguntei se ele tinha algum registro da Sociedade Antiga dos Taurinos com ele. Ele disse que só restava uma foto dos sete juntos. Demorou um tempão para achar a foto em uns cadernos antigos e amarelados, cheios de orelhas que guardava em casa.

Fiquei segurando a foto sem acreditar. O amarelado do tempo, os arranhões na superfície e a data atrás com a caligrafia bonita dos antigos não deixou dúvidas: a foto era separada de nosso tempo por um intervalo de uns cinqüenta anos. Na foto, os sete pequenos açougueiros prontos para a luta, sérios. Com alguma dificuldade, consegui reconhecer o "sêo" Danilo. Sem qualquer dificuldade, encontrei Andrés na foto, bem ao lado de "sêo" Danilo. Ali estava ele. Tão parecido o neto com o avô. Tão parecido com o…

Uma sensação de alarme correu pelo meu corpo inteiro. Andrés era parecido demais com o avô. Desmesuradamente parecido. Para falar a verdade, não havia qualquer diferença entre o menino na foto e o meu cliente. O mesmo ligeiro excesso de peso, roupas e óculos diferentes com certeza, mas parava por aí a diferença. O rosto, cada linha ou traço, a expressão, a postura, tudo.

"Parecido não é? Nem se diz que eram avô e neto." Ele notou o meu espanto.

"Que idade ele tinha quando vocês tiraram essa foto?"

"Ele e eu tínhamos a mesma idade, doze anos."

"Andrés chegou a conhecer o neto?"

"Não, ele morreu sete anos antes do gordinho nascer. Não me pergunte como ele morreu. Ninguém sabe dizer. Dizem que encontraram o homem em casa, olhão aberto, já todo duro. Ele tinha uma saúde de ferro, até onde todo mundo sabia."

A sensação de estranheza vai crescendo dentro de mim. A cada palavra, cada novo fato. Entreguei a foto ao "sêo" Danilo, agradeci seu jantar e hospitalidade, me despedi e saí para a noite campestre de Taurinos. Tomar um ar, refletir um pouco sobre tudo isso, coisa que cinco quilômetros permitem fazer com folga. Os curiangos em seu canto noturno me distraem e embalam meus pensamentos.

A estranheza ao ver a foto dos meninos. Sim, claro, o fato de um menino ser muito parecido com o avô não deveria causar espanto. Ele não teria sido o primeiro a se parecer com o avô. Por que a sensação tão forte de estranheza em torno disso? Mas por que não vi na foto uma linha do rosto do avô Andrés que não encontrasse no rosto do neto?

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