quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Um belo dia

O dia seguinte marcou a entrada de Andrés num castigo válido pelo resto da semana, incluindo o Carnaval. Ele chegou em casa e espontaneamente contou aos pais que tinha surrado o irmão mais velho. Ele não recebeu qualquer castigo corporal, mas seria de casa para a escola e da escola para casa.

"E faça a lição de casa. Tudo o que ficou por fazer. E não é pouca coisa. E tem mais: se as suas notas começarem a baixar de novo, Andrés Silva Conselheiro, você vai ficar um ano sem sair daqui, eu prometo, ou não me chamo mais Maria Aparecida Silva Conselheiro…"

Aparecida cumpre suas obrigações de mãe. Se bem que isso não seja suficiente às vezes, mas é o que tem de ser feito. O resto é a vida e não nos compete traçar o destino de ninguém. Faz-se o que se pode até onde se pode alcançar. O resto é o que realmente termina acontecendo.



"Eu bati nele porque ele fala demais."

Andrés



Ela verifica em Adriano os talhos minúsculos que ficaram do incidente de ontem. Andrés apenas observa em volta, calado. Vai ao quarto, pega livros e cadernos e começa a por em dia as lições atrasadas, ou é o que parece. A impressão é a de que ele não está exatamente absorvido pela lição, mas pelo que se passa ao redor.

"Acho que a senhora poderia começar hoje", disse-me Aparecida ao me encontrar à noite no alpendre, "vou pedir ao Andrés para vir aqui. Aqui está bom?"

Eu disse que sim. Aparecida sumiu para dentro da casa. Puxei uma outra cadeira para perto da minha e esperei. Andrés veio sozinho, ficou me olhando por algum tempo como se me reconhecesse, sentou-se na cadeira depois de puxá-la para um pouco mais longe da minha. Agora ele esperava que eu dissesse algo. Eu o fiz esperar. Não porque quisesse simplesmente fazê-lo esperar, mas porque não sabia por onde começar. O menino começou a dar sinais de impaciência.

"Então…? O que vai ser?"

"Podemos começar por ontem, o que acha?"

"O que tem ontem?"

"Por que bateu no seu irmão ontem?"

"Eu bati nele porque ele fala demais."

Respondida a pergunta, voltamos ao silêncio. Andrés olhava a paisagem noturna fora do alpendre. Pergunto o que Adriano fala demais. Andrés respondeu que se tivesse de dizer isso, não teria tido de surrar o irmão (o que faz sentido, muito sentido). Começou a bater levemente o pé, no auge da impaciência.

"É só isso? Eu preciso ir dormir." E bocejou, como que para dissipar todas as minhas dúvidas sobre sua necessidade imperiosa de repouso.

"Seu sono vai ter que esperar. Nem começamos ainda."

Suas bochechas se incharam, liberando ar num fluxo muito, muito longo. O pé dele recomeçou a bater no chão. Pedi que ele parasse. Ele parou a contragosto. Se pudesse me mataria. Isso dá para ver pelo olhar dele. Peço a Andrés que me olhe nos olhos. Bom para um pontapé inicial. Só que isso não é futebol, é totalmente outra coisa. Aqui, no máximo, poderia provocar risos nele, o que ajudaria a descontrair, como um "vamos brincar de ficar sérios".

Um olhar. Procuro me perder na visão dos olhos dele. Me aprofundar, ver o que há por dentro. Interessante ele parecer estar tentando o mesmo.

"Terminou? Eu posso ir dormir?"

"Sim."

Ele não esperou mais. Sumiu para dentro da casa com rapidez que me deixou pensando se não era mais uma de suas muitas habilidades.

Sem um transe | Não tenho palavras

Rádio Universal: Um Amor Como Sangue

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