terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Sem um transe

No alpendre. Ouço o som do motor do carro de Duílio se aproximando e trazendo os meninos da escola. É meio-dia e quarenta e a casa se prepara para almoçar. Os meninos desembarcam puxando seus livros e pastas para fora do carro, me cumprimentam maquinalmente ao atingirem o alpendre. O cumprimento de Duílio não é muito diferente, coisa das obrigações sociais que todos temos.

Dos três, apenas Adriano retorna ao alpendre após o almoço. Ele me mostra um livro que pegou emprestado na escola. Um livro de português com textos interessantes para análise, interpretação de texto, essas coisas. Andrés acaba aparecendo, chama o irmão para fazer algo e os dois somem de vista, me deixando com o livro de português na mão.

Me sento e começo a olhar o livro, seus textos, imagens. Uma sensação vaga de reflexão vai tomando conta de mim. Percebo a energia de Adriano que ficou pelo livro, algo confuso desses dias que temos passado, algo indefinido. Fecho os olhos, com o livro no colo e começo a me deixar levar pela onda. Quando menos espero, surge para mim uma imagem dos dois irmãos. Caminhando por uma trilha que reconheço, é a trilha para a Cachoeira dos Chifres.

Consigo ver isso tão claramente que me assusto, é quase como se eu estivesse lá com eles, mas invisível. Vejo que os dois param próximos a onde me sentei naquele dia, o que parece clarear ainda mais minha visão deles na cachoeira agora.

Pouco depois de um chegar a essa conclusão, vejo Andrés acertar um pontapé violento no estômago do irmão mais velho. Adriano verga como um bambu e cai no chão se retorcendo de dor. Assombrada, meu primeiro impulso é abrir os olhos, mas me lembro que assim vou perder a imagem. Não consigo distinguir o que Andrés está gritando feito um louco, apontando na direção da fazenda.

Ele levanta o irmão de quinze anos do chão e vibra um tapa devastador no rosto dele que força a cabeça de Adriano para outro lado. Outro, outro e mais outro, cada vez com mais força, como se algo crescesse dentro dele. A cabeça de Adriano vai virando como se fosse a cabeça de um espectador de tênis.



"Como pode um menino de doze anos deixar um de quinze nessa situação???"



Me levanto, perdendo o contato com a imagem. O livro de português cai no chão, saio do alpendre e tomo o rumo da Cachoeira dos Chifres. De longe, vejo Duílio assomar ao alpendre, mas já estou bem longe para responder qualquer pergunta.

Vou encontrar Adriano sozinho, cabeça enterrada nos braços cruzados, sentado na cachoeira, chorando. Andrés deve ter tomado uma outra trilha para voltar, já que não o encontrei pelo caminho. Sento ao lado de Adriano e ele não parece curioso em ver de quem se tratava.

"Por onde foi o Andrés?" eu tentei arrancar uma resposta.

"…"

"Por onde foi o Andrés?" Eu insisti.

"Tem muitos caminhos aqui… Andrés e eu conhecemos todos. Mas não sei por qual ele foi…"

"Adriano, olha pra mim."

Eu pressentia algo como ele não querer por algum motivo que eu visse seu rosto enterrado nos braços. Ele levantou a cabeça devagar. Realmente, sangrava pela boca e pelo nariz. Senti muita pena dele ao vê-lo nesse estado. Eu o levei próximo da água, lavei o rosto dele e descobri que eram cortes superficiais. Ajudei Adriano a controlar o sangramento.

"Por que seu irmão te bateu?"

"Eu não sei…"

"Então você é como um saco de pancadas, não precisa ter motivo."

Não digo essas coisas aos garotos por sadismo. Às vezes é necessário sacudir, usar imagens mais agressivas para trazer alguém de volta de um torpor. Ou um estupor.

"Foi por a gente estar conversando?", insisti.

"…"

Não perguntei mais nada. Dei um tempo a ele. Me ofereci para acompanhá-lo de volta à fazenda. Ele recusou. Disse que voltaria depois. Eu respondi que ele estava em mau estado para caminhar sozinho, especialmente depois do chute no estômago. Ele olhou para mim bruscamente, do nada.

"Quem lhe falou que ele me deu um chute no estômago?"

Ele estava alarmado. Olhos arregalados, injetados de sangue, olhando para mim. Como eu poderia saber disso? Às vezes eu ligo o foda-se e tudo bem. Falei mesmo que eu "vi" o menino tomar o desgraçado do chute no estômago.

"A senhora estava aqui vendo tudo… Senão, como poderia saber sobre o chute no estômago!?"

Por que a visão? O livro de português do Adriano que ficou comigo. O livro me permitiu um contato com quem estava com ele antes de mim, ou seja, Adriano. Explico isso a ele, mas a princípio não parece fazer nenhum sentido. Ele parece mais calmo depois de algum tempo. E o mais incrível: parece acreditar em mim.

"A senhora então é como o Andrés?"

Um dado novo. Percebo que meu cliente (além de extremamente violento) é sensitivo. Mas me assalta ainda a ferocidade extrema com que ele se abateu sobre o irmão. Um verdadeiro assalto sensorial enquanto eu segurava o livro de português de Adriano.

"Você não sabe brigar?", perguntei a ele, "não falo de você agredir seu irmão, mas se defender, sabe? Como pode um menino de doze anos deixar um de quinze nessa situação???"

"A senhora não entende… Ele não é um menino de doze anos qualquer."

"Você que o conhece tão bem, poderia me contar o que faz dele alguém tão especial, além do fato de ser sensitivo."

Ele nada mais disse, de cabeça baixa outra vez. Fiquei pensando se o irmão mais novo era mesmo sensitivo. Se ele sabia que eu estava no telheiro ontem à noite e por isso perguntou a Adriano se um "devem" era tudo o que ele tinha a oferecer. Eu o ajudei a se levantar e sem deixar espaço para mais pedidos por parte dele, ajudei o menino a mancar de volta para casa.

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