quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Não tenho palavras

"Andrés não vai tomar café?", perguntei ao ver que meu jovem cliente não aparecia. Aparecida me explicou que ele estava um pouco deprimido. Perguntei a ela o que o deixava deprimido. Ela explicou que ela e o marido tinham decidido por proibir que ele fizesse trabalhos com gado por um tempo, como punição pela violência dele contra o irmão mais velho.

Comentei que o menino provavelmente se tornaria intratável pelo período em que estivesse sem cuidar do gado, visto que era o que ele mais gostava de fazer. Aparecida replicou que tinha pensado nisso, mas que punição é mesmo para ser desagradável ou não é punição. Esperei que os três saíssem para a escola e puxei conversa com ela.

"O menino é mesmo agressivo", eu disse, "vi como Adriano ficou quando cheguei à cachoeira. Eu o vi apanhar como gente grande muito antes de chegar à cachoeira. O que eu vi foi um chute no estômago e muitos tapas, até largar o livro de português que o Adriano tinha deixado comigo. Não imagino o que possa ter acontecido enquanto eu me punha a caminho da cachoeira."

Aparecida não entendeu. Uma sombra pesada passou pelo rosto dela. Expliquei a coisa da ligação através de um objeto da pessoa ou recentemente manipulado pela pessoa. Ela estava chocada com meu relato, mas não acreditava em como eu tinha visto aquilo. Pedi um objeto de alguma pessoa, de preferência que não fosse de ninguém da casa. Disse que iria descrever o dono do objeto. Detesto essas demonstrações que cheiram a truque barato, mas às vezes funcionam como arma de persuasão. Mesmo não acreditando, desconfiada, ela me trouxe um livro. Segurei o livro e deixei a mente vagar. Limpar o excesso de pensamentos. Concentrar-se no livro e em nada mais.

"A pessoa que tinha esse livro não está mais entre nós. Era uma pessoa muito querida sua. Ela te deixou num domingo de muita chuva. Adorava se vestir de cinza. Gostava muito de pássaros."

Aparecida ficou ligeiramente sem cor. Pude notar isso mesmo imersa em toda a minha concentração no objeto.

"Ela dizia a cada aniversário que tinha dezoito anos e você, Maria Aparecida, acreditava. Cuidava de um jardim. Das flores, gostava mesmo era de margaridas. Era boa, mas confusa. Seu aniversário era em 12 de janeiro."

Tive que parar. Aparecida estava chorando como uma criança. Descobri que estava falando da mãe dela, embora isso fosse mesmo de suspeitar. Não sabia o que dizer a ela, mas deveria saber. Para isso estudei mais de quatro anos de psicologia, fiz estágio, tudo isso. E agora, não tenho palavras. Devolvi a ela o livro.

"Você pode saber tudo o que estou pensando?", ela perguntou ao se acalmar.

"Não é assim tão simples. Requer um mundo de concentração, nem sempre estou tão atenta e as pessoas podem embaralhar muito do que pensam de propósito para que não possa ter lido."

Ela disse que a percepção extra-sensorial ocorria com o filho. Como tinha ocorrido com seu sogro. Que Andrés tinha herdado mais que o nome do avô, disso ela tinha certeza (e eu também). Eu contei que Adriano me disse o mesmo e que eu tinha tido oportunidade de verificar isso por mim mesma na noite passada no alpendre, ao "conversar" com Andrés.

"Ele leu seu pensamento…"

"E vice-versa. Uma das coisas que me disse sem falar foi que ele achava que Adriano não tinha ainda apanhado tudo o que tinha para apanhar. Eu acho que o menino mais velho está correndo um risco físico respeitável."

"O que nós podemos fazer quanto a isso?" Ela parecia preocupada com minha avaliação e com o resultado de minha "conversa" com Andrés.

"É melhor deixar os dois separados por um tempo, ver se a poeira assenta. Especialmente impedir os dois de saírem juntos, que dirá para lugares ermos como a Cachoeira dos Chifres."

Ela concordou, disse que iria exercer vigilância nesse sentido. Falou que iria conversar com o marido a respeito.



"A senhora quer que eu ajoelhe, não é? Só pode ser isso. Ô, burro! Como não me toquei, que idiota que eu sou… Não tem problema, pelos meus touros eu faço qualquer coisa… Aqui, pronto. Eu lhe peço de joelhos."

Andrés



"Eu não quero conversar. Nem hoje nem nunca."

Andrés está no pico de sua irritação após o almoço. Sem poder sair, sem poder trabalhar com o gado, ele não cabia em si mesmo de tanta raiva.

"Também não estou no meu melhor para conversar. Mas precisamos."

"A senhora acha que precisamos."

"As coisas que estão acontecendo acham mais do que eu que nós precisamos."

"Está falando do Adriano?"

"Pelo menos por enquanto, sim."

"Bebê chorão de merda. Aposto que ficou chorando que nem um otário lá na Cachoeira dos Chifres…"

Ele parou, assombrado. O rosto se torceu rapidamente numa careta. Como se ele tivesse posto veneno na boca. Ele se debruçou na cerca do alpendre e cuspiu na terra lá embaixo. Me alarmei levemente.

"O que foi???"

"Isso não é nada, isso passa."

Quem eu penso que estou enganando? Não tenho palavras. Nada a dizer, ou se tenho algo a dizer, não tenho a menor idéia de por onde começar. Digo a ele que é feio bater no irmão, mesmo sendo ele três anos mais novo que Adriano? Andrés me olhava atento e fez menção de dizer algo. Eu ia começar a falar e me interrompi, porque precisava ouvir o que ele tinha a dizer.

"Pode dizer aos meus pais para me deixarem voltar a trabalhar com os touros?"

Ele parecia estar implorando. E estava. Extremamente nervoso, ele começou a chorar. De soluçar.

"Eu juro por tudo quanto é mais sagrado que não vou mais bater nele. Eu quero ficar com os touros. Lá é meu lugar. Não gosto de futebol, videogame, nada dessas bostas. Eu não faço mais nada na vida e a única coisa que eu amo não posso mais fazer… Eu só quero ficar com os meus touros."

"Andrés, isso é apenas temporário. Logo você volta a cuidar deles, é só um castigo temporário." Eu tentava desesperadamente acalmar o menino.

"Não é! Eles querem que eu pare para sempre! Não é temporário! A senhora quer que eu ajoelhe, não é? Só pode ser isso. Ô, burro! Como não me toquei, que idiota que eu sou… Não tem problema, pelos meus touros eu faço qualquer coisa… Aqui, pronto. Eu lhe peço de joelhos. Fale com eles. Suspende esse castigo. Não precisa nem suspender tudo. Fico sem sair quanto tempo vocês quiserem. Mas diz a eles para me devolver meus touros… Por favor…"

Eu fiquei perplexa. Fiz Andrés se erguer do chão e se sentar de volta na cadeira. Ele continuava nervoso, chorando. Eu disse a ele que se isso o deixava feliz, eu falaria com os pais dele. Eu o fiz prometer que viria com mais vontade conversar comigo para algumas sessões.

"Eu prometo tudo o que a senhora quiser… Tudo."

Acrescentei que iria tentar ser convincente, mas que a última palavra seria dos pais dele. Eles é que decidiriam levantar a punição ou não, já que em última instância são a autoridade da casa. Ele concordou, quase sorrindo. Dei a ele uns lenços de papel, para que enxugasse o rosto e seus óculos.

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