domingo, 15 de fevereiro de 2009

Sombras das árvores enormes

Cedo de manhã. São seis e meia no máximo. Aqui eu respiro o ar dos muitos ecossistemas em volta, cerrados, campos de altitude e matas ciliares que margeiam os rios do lugar. O céu com muitas nuvens, a chuva fraca que vai caindo mansinho, mas que às vezes molha até os ossos.

Estou na varanda enorme da frente. Os padrões de azulejos da casa da sede me fascinando, trazendo de volta detalhes de minha infância, como os azulejos da casa vizinha a que eu morava. Algo que ficou na memória das décadas, nunca mais se apagou.

Às sete, o som da porta de tela e suas molas barulhentas me arranca da introspecção. E não é ninguém senão o meu jovem cliente, Andrés Silva Conselheiro, perto da porta. Ele me vê no canto do alpendre e para por uns momentos. Através de sua linguagem corporal, consigo detectar leve mas perceptivel luta interna dele entre se aproximar e não se aproximar. Por fim, ele decide se chegar mais perto.

"A que horas acordou?" Pelo tom de sua voz, parecia ser uma informação importante.

"Bom dia."

Ele parecia desapontado com a resposta. Me deu bom dia. Eu disse a ele que acordei mais ou menos umas seis e quinze. Andrés perguntou se eu sempre acordava a essa hora.

"Nem sempre", eu disse, "só quando eu venho para o campo."

"Quando tem 'clientes' no campo?"

"Não. Eu estava falando das manhãs no campo; não preciso acordar cedo para conversar com meus clientes."

Ele não pareceu convencido. Na verdade, o ponto de discussão dele é que eu teria de acordar cedo para conversar com clientes, porque essa é a hora em que as pessoas se levantam para ir trabalhar. Disse a ele que há muitos tipos de trabalho, cada um com uma natureza diferente, a serem feitos em horas diferentes do dia. Em um hospital, o que seria dos pacientes que precisam de atenção médica o dia todo se todos os da equipe médica estivessem dormindo?

"Lá isso é verdade", admitiu ele.

Ele ficou me olhando por um tempo, o mesmo olhar que parecia desafiador e gelado da mesa do café ontem de manhã. Devolvi a ele o olhar e conversamos sobre a fazenda e a cidade, enquanto olhávamos a chuvinha cair. Ele me contou de tradições antigas do lugar. Como a história contada para mim pela mãe dele, dos touros reprodutores que eram vendidos ali, um mercado ao ar livre para os animais da região e que deram seu nome à cidade. Seu nome e provavelmente muito mais.

"É", ele concordou, "a gente deve muito a eles."

E acrescentou, olhando fixo para mim:

"Na verdade, a gente deve tudo a eles."

Aparecida veio ao alpendre e nos encontrou. Chamou para o café. Pareceu satisfeita em ver que eu e Andrés entabulávamos uma conversa. Na mesa, Adriano me cumprimentou antes de seu pai. Conversamos bem mais que ontem. Andrés se divertia em contar os poucos minutos de conversa que acabamos de ter, citou o meu exemplo do hospital, comentou que devia haver muitos tipos de vida diferente por aí (fantástica percepção de um menino de doze anos, quando tantos de vinte ou mais não têm essa noção) e falou de novos bezerros nascidos recentemente na fazenda e de como ajudou como pôde no nascimento deles. Pude notar que ele conversava sobre vários assuntos, mas sempre dava um jeito de voltar para o seu predileto.

À tarde, não encontrei Andrés em parte alguma próximo à casa da sede. Adriano me disse que o irmão anda a fazenda toda, nunca fica apenas perto da casa da sede. Nos sentamos eu e ele num banco sob um telheiro perto de uma árvore alta, nos escondendo da chuvinha e começamos a conversar. Ele me disse que o irmão é como que viciado na história de gado, especialmente touros.

"Estou pra ver alguém que seja tão agarrado com touros quanto o meu irmão", ele disse, "eu gosto disso pra raio, mas o Andrés nunca vi igual."

"Faz muito tempo que ele gosta do assunto? Você diria que praticamente desde que nasceu ele é assim apaixonado por pecuária?"

"Acho que sim, quero dizer, acho que já veio de fábrica." Adriano riu.

Ele passou a me contar sobre o avô, Andrés (de quem o meu cliente teve seu nome emprestado pelo filho Duílio), pecuarista de nome na região, talvez fosse aquele que Adriano "estava pra ver", talvez o único que fosse mais ligado à pecuária do que o Andrés neto, que ele nunca conheceu. Coisa de hereditariedade, aparentemente. Isso me interessou no ato. A história de Andrés, parecendo de algum modo se iniciar com o avô.

"Onde você acha que ele pode estar agora?"

Adriano estava confuso.

"Quem, meu avô ou meu irmão?"

"Seu irmão…"

"Não sei. Ele pode ter ido à cidade. Ou à Cachoeira dos Chifres."

Ri e pedi explicações sobre o nome esquisito. Adriano riu também e disse que em certos pontos da cachoeira havia pedras salientes à altura da cabeça e que se tem de tomar muito cuidado para não se acertar as pedras com os chifres. E nós dois tivemos de rir mais uma vez, uma pelo nome e outra pela explicação.

"Andrés geralmente vai à cachoeira mesmo com chuva?"

"Se não for chuva muito forte parece que ele não se importa."

Peço e ele me dá instruções sobre como chegar à cachoeira, que segundo ele não é muito distante da fazenda. É uma oportunidade de ver o garoto em sua vida natural, mesmo que nós fiquemos conversando na cachoeira.

A trilha é larga por entre as árvores de mata ciliar, mas promete se estreitar mais à frente. Caminho com cuidado pela trilha molhada da chuva insistente, evitando o musgo escorregadio. As árvores são as únicas testemunhas do meu caminho solitário. Pássaros piam nas árvores próximas. A luz que entra na floresta é fraca da ausência de sol, mas ilumina bem o caminho de qualquer modo, a despeito das sombras das árvores enormes. A partir de uma curva, o som da cachoeira começa a ficar mais audível. Mais e mais curvas e finalmente me parece que cheguei ao lugar.

Vejo as tais pedras a que Adriano se referia, salientes bem no meio da trilha, saindo de dentro da encosta. Abaixo a cabeça para não aprender fisicamente a razão do nome da cachoeira. E lá está ela, bela, alta, com forte vazão de água. Belíssima cachoeira, sem dúvida. Eu me aproximo mais da queda a cada passo.

Se Andrés esteve por aqui, não está mais. Nada de ninguém no lugar, apenas eu e minhas reflexões. Desapontada, resolvo sentar sob uma árvore e admirar a cachoeira, já que dei uma boa caminhada para isso também. Não sei quanto tempo fiquei lá, agora habituada à chuvinha que caía sem parar e às gotas maiores, filtradas pela árvore que aterrisam bem no topo da minha cabeça.

Uma voz me chama de "D. Stella" de certa distância. Olho para encontrar Andrés subindo as rochas que o separam do recinto da cachoeira, vindo em minha direção. Ele se senta a meu lado e num primeiro momento, nada diz, contemplando a cachoeira por instantes. Nem eu digo nada por instantes, prefiro esperar e ouvir o que ele dirá em seguida.

"Adriano me disse que a senhora estava me procurando."

"Estava mesmo, mas nada muito especial. Queria apenas conversar."

"Sei."

Uma outra pausa daquelas compridas. Não há mesmo muito a se dizer sob uma cachoeira e seu ruído natural estrondoso.

"E vocês conversaram sobre o vô Andrés?", ele acrescentou depois de um tempo.

"Seu irmão é bem detalhista nas descrições, com certeza. Ele também me disse que seu avô talvez seja o único que goste mais de touros e gado bovino que você."

"Ele disse, é?" Andrés ficou um tempo calado, como se decidisse o que fazer com a informação.

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