sábado, 14 de fevereiro de 2009

Conheça seu cliente

Acordo para os ruídos de casa que faz algum tempo já se levantou. Sol entrando pela janela do quarto, iluminando bem, mas não o suficiente para te tirar do sono. Céu azul que a janela semi-aberta emoldura de maneira semi-fechada. Os objetos do quarto. A decoração suave e sóbria, provavelmente coisa da dona da casa. Tudo aqui parece decorado por uma mulher, detalhes delicados pelas paredes aqui e ali, miudezas, pequenos objetos de decoração por toda parte.

Batidas suaves na porta, me tirando das reflexões. É Aparecida, que vem chamar para o café; ela parece animada com o novo dia, embora ele seja exatamente igual ao de ontem. Parece estar feliz de estar de volta em casa.

Considerando que seja aquele tipo de família tradicional, onde todos comem na mesa juntos, presumo que seja agora que vou conhecer o novo cliente. Aparecida confirma isso. Diz que só esperam por mim agora, me emprestando um certo senso de urgência ao sair para o café. Na mesa estão mesmo todos juntos. Há um silêncio enorme quando eu entro, interrompendo a conversa do pai e dos dois filhos.

"Adriano, Andrés, esta é D. Stella. Ela vai ficar um tempo conosco aqui em Taurinos"

Os garotos ficaram me olhando. Se iria haver alguma reação da parte deles, iria demorar. O menino mais velho parecia ter uns quinze anos de idade. Ele se levantou da cadeira e me cumprimentou. O mais jovem me cumprimentou, mas não se mexeu do lugar.

"Andrés, você não está sendo educado. Não foi assim que te educamos, então se levante e cumprimente outra vez." Duílio agora parecia levemente irritado.



"…também gosto de conversar sobre vacas e bezerros…"

Andrés



Fiquei silenciosa. A situação é constrangedora. Não devo nem mesmo dizer que não me importo, já que isso faz parte do programa educacional que todos os pais têm com relação a seus filhos. Não interessa se a visita se importa ou não. Não dá para se interferir nesses momentos de educação filial. Andrés se levantou mas era óbvio que teria escolhido permanecer sentado - como o fez. Ele me cumprimentou outra vez e me apressei em colocá-lo à vontade. Sugeri que sentássemos, o que fizemos logo. Pronto, chega. Acabo de conhecer meu cliente.

"Sobre o que estamos conversando?", perguntou Aparecida, fazendo rodar a conversa.

Adriano riu.

"Sobre o assunto favorito do Andrés", disse, com um sorriso remanescente.

"Seu tembém, não?", rebateu Andrés.

Meninos bonitos com vozes bonitas. Andrés especialmente tem um tom de voz mais grave que alguém de sua idade teria. Ele me olha curioso às vezes, ou pelo menos com uma expressão curiosa, inquisitiva nos olhos. Desejando dizer mais a eles que um bom-dia, e curiosa sobre o assunto favorito de meu recém-conhecido cliente (embora já imaginasse do que se tratava, seguindo a descrição de Duílio) eu arrisquei perguntar a ele o que era.

"Gado, touros, pecuária. Pecuária, gado, touros. Touros, pecuária, gado. Não necessariamente nessa ordem", atalhou Duílio irônico, estragando minha primeira tentativa de comunicação direta com meu cliente.

Andrés olhou para ele.

"Esqueceu de dizer que também gosto de conversar sobre vacas e bezerros", disse timidamente.

"Que cabeça a minha."

Nós rimos não da resposta de Duílio, mas da reação inocente do garoto; eu muito mais timidamente que os outros (um acesso de riso mais Mona Lisa), mas Andrés não riu. Adriano acariciou sua cabeça e ele a tirou de alcance num movimento brusco. Ficou em silêncio enquanto as risadas se dissolviam em mais um minuto de silêncio, onde só as xícaras conversavam com os pires.

"O que a senhora faz em Santos?", quis saber Andrés, interrompendo a pausa.

"Trabalho com crianças e adolescentes."

Bom, uma chance de socializar. Aguardo a manifestação.

"Não é proibido crianças trabalharem?"

Aparecida e eu não rimos dessa vez, mas o pai e o irmão sim. Sem tomar conhecimento das risadas agora, o menino aguardava uma resposta minha, olhando fixo para mim. O olhar dele tinha algo de desafiador, tanto quanto tinha de gelado, mas estranhamente passava uma atitude sincera, do olho no olho que eu tendia a admirar muito em meus clientes.

"Eles não trabalham. Sou eu quem trabalha com eles, eles precisam de minha ajuda", expliquei.

"Ajuda para que?"

"Por exemplo, se sentem tristes, agressivos, precisam contar seus problemas para alguém, estou lá para ajudar."

Andrés olhou para os pais. Por um momento, foi como se tivesse entendido tudo. Como a minha presença aqui, não que fosse motivo de segredo o que eu vinha fazer em Taurinos. Não disse nada, pelo menos não ali.

Taurinos | Sombras das árvores enormes

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Um comentário:

  1. "Céu azul que a janela semi-aberta emoldura de maneira semi-fechada."
    Resolvi seguir seu blog por achar esta frase linda (morri de inveja por não ter sido eu a cria-la). Na verdade estou aqui para aprender, parabèns.
    h.

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