terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Arquivo morto

Seis e quinze. Estou sentada na janela do meu quarto observando o céu meio nublado da manhã e tentando juntar as peças do que vivenciei ontem. Mais perguntas que respostas vão se juntando. Uma delas surge agora: Aparecida estava dormindo ontem no tempo dos eventos que descrevi? Logicamente ela sabia da reunião, que não era mistério para nenhum de nós.

Mistério era mesmo — pelo menos para mim — o conteúdo do que se discutiu e as decisões que se tomaram. Aparecida estaria a par do que foi decidido? Não era anormal que me mantivessem ignorante do conteúdo do encontro, já que nada tenho a ver com as lidas da cidade. Mas e quanto a Aparecida? Ela sabe, não sabe e prefere não saber ou é simplesmente enganada pelo resto da família com respeito a esses assuntos?

Mas vejo, pelas conversas dos três ontem à noite que eles preferiam que Aparecida ou eu não estivéssemos a par do movimento em redor da casa. O que aparentemente exclui Aparecida do movimento. Mas não de conhecer as decisões do encontro. Não era impossível, por outro lado, que os três dessem a ela notícias falsas sobre a reunião (o comportamento confidencial dos três dá margem até para supor isso e muito mais). Mas naquele momento à noite, mesmo que me mentissem todo o tempo, não sabiam que eu estava presente, ouvindo e sentiram que estavam livres para falar o que normalmente não falariam. É nesses momentos que flui a sinceridade.

As ferramentas no telheiro ainda me fascinam. Desço em meio à casa ainda vazia e vou ao telheiro olhar. Nada, nem as formas-pensamentos persistem. Volto para perto da casa e ando pelo pátio, assuntando. Aproveito e vou à parte de trás da casa onde há a lavanderia, pegar um casaco cheirando a guardado que deixei tomando ar desde anteontem.

O cesto de roupa suja. Próximo de onde deixei meu casaco. Esqueço o casaco, olho em volta para me certificar de que estou só na lavanderia. Olho a massa confusa de camisetas, bermudas e vou puxando até encontrar as roupas que vi os meninos usando ontem. As roupas estavam todas ali, apenas socadas para o fundo do cesto revirado com roupas em cima que deviam estar ali há muito mais tempo.



"Arquivo morto, arquivado pelo revés dos tempos."

Formigas No Litoral, escrita e gravada por Esquadrão Do Preto Velho.



Olho as roupas com cuidado. As roupas de Adriano não revelam nada além da sujeira normal que as roupas acumulam durante o dia de uso. As de Duílio idem… com exceção de um ponto escuro de um dos lados da camiseta dele. Uma mancha minúscula. Dentro da lavanderia fica mais difícil precisar a cor da mancha. Soco aquilo de volta no cesto e pego as roupas de Andrés.

Existe uma mancha maior na bermuda clara que ele estava usando ontem à noite. Pouco maior que a que vi na camiseta de Duílio e nessa se pode ver mehor a cor que é agora escura, mas tinha sido vermelha. Era uma mancha vermelha ou mais o que eu estava procurando?

Enfio as roupas de volta, tentando reconstituir a posição dentro do cesto o melhor que pude. Resolvo sair daqui rapidamente e dou uma molhada de leve em meu casaco. Para ter uma desculpa por ter ido à lavanderia, caso já houvesse alguém acordado ou pior, me procurando.

Não há movimento em volta. Fiquei, como de costume no alpendre. De repente, ouvi as molas barulhentas da porta de tela e vi a porta se abrindo. Esperei ver Andrés como no outro dia, mas desta vez quem apareceu foi Adriano. Parecia exausto depois do sono da noite. Ele me viu e começamos a conversar.

"A senhora deitou cedo ontem?"

"Ah, sim", me apressei em dizer, "ontem me pegou um pouco de dor de cabeça. Nem vi mais nada, um pouco de internet e cama. Vocês foram à tal reunião?"

"Eu não fui, tinha de estudar porque eu tenho prova hoje."

"Sim, você está com cara de quem passou a noite em claro estudando", eu disse comentando o aspecto abatido do menino.

Ele disse que ficou até uma hora da manhã estudando. Eu imaginava que o aspecto abatido se devia mais à noite de escavação do que a qualquer outra coisa. A imagem das ferramentas por cima de algo colocado antes no porta-malas não me saía da cabeça. A suposição de que eles tinham saído em missão noturna para enterrar algo que era exatamente o que impedia as ferramentas de atingirem o fundo do porta-malas naquele momento. Porque posso não ter certeza de nada, mas posso dizer com toda certeza que aquela mala não estava vazia. Agora, dizer o que havia lá dentro é uma outra história. Poderiam ser sacos de cimento. Poderia ser terra para uma horta. Mas o que se faria com cimento ou terra a uma hora daquelas?

"Você ficou sabendo do resultado da reunião?", perguntei, o mais casualmente que pude. E não fui casual o suficiente.

"Por que a senhora está tão interessada na reunião dos fazendeiros?"

Ele me olhava curioso em saber, mais do que alguém que se sente bisbilhotado. Eu disse a ele que era mera curiosidade. Fiquei curiosa, porque o assunto dominou o dia de ontem todo e não estava acordada para ouvir os comentários do que se passou. Ele pareceu convencido pela explicação.

Perguntei novamente se ele sabia dos resultados. Ele ia me responder algo, mas ouvimos as molas barulhentas da porta de tela do alpendre e a conversa expirou. Andrés apareceu para nos chamar para o café. Ficou olhando para nós de modo estranho, como se a polícia andasse atrás de nós. Como se estivéssemos metidos em uma conspiração. Como se intuisse que o irmão mais velho estava por revelar o que não se revela.

À mesa do café, se falou de tudo, principalmente da proximidade do Carnaval. O encontro da noite passada, porém, ficou na sombra, esquecendo-se em obscuridade total. Arquivo morto, arquivado pelo revés dos tempos. Tive de controlar vários impulsos de perguntar sobre o famigerado resultado da reunião e de algum modo consegui.

Adriano conservava aquele olhar abatido que vi no alpendre. Duílio parecia tenso, mas em melhor estado que o filho. Andrés estava calmo como sempre fica na mesa do café. No entanto, há nele uma certa radiância que não consigo precisar de onde vem. Aparecida está calada. Parece sentir algo no ar, a ausência do marido e dos filhos até tão tarde da noite ontem. O quanto ela sabe de seja lá o que for que se passa aqui é tanto o xis da questão quanto o que se passa aqui.


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