quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Planetário perpétuo

São onze da noite e as luzes da casa ainda estão acesas. Eu, pelo menos, não pretendo ir dormir tão cedo hoje. Andrés está oficialmente pedindo desculpas ao irmão mais velho. Estranho como longe de parecer um momento de reconciliação, o momento é tenso, parece revestido de um peso morto que não o deixa caminhar. Como se Andrés estivesse executando um ritual necessário para obter de volta algo que lhe era muito caro: correr amplidões atrás dos animais pretos enormes a um só tempo presos e soltos num pasto quase infinito.

Ele me deixa dividida entre alguém que tem uma clara obsessão e alguém que vê nos touros um projeto de vida. Parece normal e corrente que ele se ponha de joelhos diante de alguém que mal conhece para implorar por uma intercessão junto a seus pais? Não foram necessários mais de dois dias para colocar o pequeno valentão de joelhos. Literalmente. Isso é um indicativo claro do quão devastadores os efeitos da punição foram para Andrés nesse espaço de tempo tão curto talvez?

Saio para o alpendre para a noite de planetário perpétuo de Taurinos. O Carnaval que começa a ferver em todo o Brasil neste exato momento não dá as caras por aqui. Não que a família não esteja na sala, apreciando as notícias do Carnaval na TV. Mas no alpendre, tudo é silêncio, o som da TV e das conversas não chega até aqui. Tudo é a imensidão ondulada e quieta, o som dos curiangos quebrando o silêncio, grilos e a eterna orquestra percussiva de sapos, as paisagens agrestes do cerrado, as elevações, os congonhais, os bosques retorcidos de candeias que dão o tom à vegetação. No céu, a Via-Láctea em toda a sua extensão. As Três Marias, formando o cinturão de Órion. A constelação do Caçador Celeste que vai se revelando aos olhos a partir de seu cinturão. A atitude de quem dispara uma flecha, a cabeça minúscula simbolizada por uma única estrela.

"A senhora sabe esses desenhos do céu? As constelações?"

Me assustei. Voltei os olhos para o alpendre iluminado, o que levou as estrelas a ir dar uma volta. Andrés sentou-se na cadeira ao lado. Desta vez nem afastou a cadeira nem a colocou mais perto.

"Conheço aquela", eu disse, apontando para Órion.

"As Três Marias?"

"Na verdade, elas não são uma constelação em si, mas parte de uma."

"É mesmo? Que constelação?" Ele parecia interessado.

"Órion, o Caçador Celeste."

Mostrei a ele as estrelas em redor que formavam a constelação, a posição do caçador atirando a flecha e ele assobiou, admirado.

"Ô, burro! Eu só conseguia distinguir o Cruzeiro do Sul e as Três Marias do resto", ele disse enquanto olhava o Caçador Celeste, "agora este Órion que você ensinou é legal pra rai", o mineirinho cortava os finais das palavras (a palavra seria raio) como muitos habitantes do estado, "se não me dissesse, eu nunca que tinha visto esses detalhes."

Ele estava sendo tão flexível e simpático comigo. Que gentileza. Sorri e disse que as pessoas deveriam compartilhar o conhecimento tanto quando pudessem, sem importar a que hora do dia. Ele parecia ter suas dúvidas sobre isso, porque não ficou muito entusiasmado com a idéia.

"Nem tudo", ele disse, "existem coisas que se deve manter em segredo."

"E você é um cara cheio de segredos…"

"Nem tanto", ele parecia um tanto impaciente, "mas alguns se pode e deve guardar."

Não tenho palavras | A de Andrés

Rádio Universal: Um Amor Como Sangue

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