sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

A de Andrés

Sentei para conversar com o casal. Os meninos ainda não tinham acordado, o que proporcionava uma boa chance de por a conversa em dia. A primeira coisa que perguntei foi sobre os touros de Andrés. Se eram mesmo dele.

"Sim, são dele", me disse Duílio, "os touros pertencem ao Andrés e as vacas ao Adriano."

Aparecida sorriu, como se previsse que a informação iria soar engraçada de alguma maneira. E soou. Eu nunca tinha ouvido nada parecido em minha vida. Mas também, o quanto sei sobre a vida no campo?

"Deve lhe parecer bem estranho", ela me disse, "mas quando verificamos que havia um número parecido de machos e fêmeas resolvemos fazer assim a divisão. Tem mais vacas do que touros, talvez umas dez a mais, mas o Andrés quis os touros mesmo assim. Em quantidade, Adriano possui mais gado que ele, mas ele parece não se importar com isso. Ele gosta mesmo é dos touros, não importa muito o número."

Comentei que não tinha ido aos currais desde que cheguei. Duílio disse que Andrés poderia me levar, sempre que eu quisesse ir.

"Nenhum de vocês têm gado então, só os meninos?"

"Duílio anda mais preocupado com os cafezais daqui já tem uns vinte anos. Eu mesma não me envolvo muito nas questões agrárias…", respondeu Aparecida, "Os meninos gostam de lidar com o gado, então é deles. Afinal de contas, é herança deixada pelo meu sogro."

Adriano e Andrés desceram para o café com diferença de minutos, nessa ordem. Por solicitação especial, os dois se deram bom-dia.

"Ah, a senhora quer ver a lida com os touros…", ele disse como um balão que se esvazia. Como um disco de vinil que perde a força de rotação.

"Se não quer me levar, eu posso ir sozinha." Eu tinha notado bem a falta de vontade dele.

"Nada disso, eu selo um cavalo pra senhora", ele pareceu mais animado quando eu disse que iria de qualquer modo. Mas respondi que não sabia andar a cavalo. Ele disse que tinha um bom, bem manso para mim e eu recusei. Disse que iria a pé.

"Ô burro! Mas D. Stella, é longe onde ficam os currais", lembrou Adriano, "se quiser ver as minhas vaquim, fica mais pertim…"

Eu ri. Ele às vezes carregava no montanhês de propósito para me fazer rir. Andrés tentou não rir, mas não conseguiu. Disse que se eu quisesse ir a pé poderia, mas iria demorar para chegar. Fiquei meditando em como tudo é tão pertinho para os mineiros que agora me dizem que eu vou gastar muita sola de sapato para chegar lá. Se mineiros te dizem que algo é longe, esteja preparado para acabar em Xangai.



"Quando a gente quer sempre se dá um jeito"

Adriano, fazendo uso de um nariz de cera.



Decidi ir ver as "vaquim" de Adriano e depois os "tourim" de Andrés. Os currais de Adriano ficavam a um quilômetro da casa. Fomos a pé. Ele me mostrou os locais onde acontecia a ordenha.

"Não, é feita na mão", respondeu ele, quando perguntei se mecanizava a ordenha.

"Quem tira o leite?"

Ele franziu a testa.

"Como quem? Eu tiro."

Eu disse a ele que a quantidade de vacas e bezerros ali era grande e mesmo que nem todas as vacas tivessem de ser ordenhadas era um trabalho insano para alguém de quinze anos.

"Quando a gente quer sempre se dá um jeito", ele disse timidamente.

Ele acrescentou que seguia escalas de ordenha naturais e jamais usava hormônios de crescimento nos animais para evitar que os úberes das vacas se tornassem doloridos e pesados, chegando mesmo a arrastar no chão, o que causa infecções e abuso em tratamento com antibióticos. Essas escalas naturais, segundo ele, privilegiam os bezerros que são os verdadeiros donos do leite e tomam muito menos tempo e trabalho do que imaginaria ao ver o menino sozinho diante de um exército de vacas.

"Por esses tempos não vou ordenhar, senão mostrava", ele disse, "mas se ainda estiver aqui a senhora vai ver."

Ficamos conversando até que ele me lembrou que se eu iria aos currais de Andrés eu tinha de começar logo a caminhada. Me despedi dele e fui pela estradinha de terra de dentro da fazenda, observando a paisagem do cerrado, o céu encoberto, a ausência de sol que suavizava a caminhada de…

Dez quilômetros.

Exatamente. Eu disse dez quilômetros. Agora eu via os currais na distância. E essa distância de que falo eram mais dois quilômetros de caminhada. Me sentei na cerca ao chegar, pesada de cansaço infinito. Nem acreditei que estava ali. Outra coisa fantástica era pensar como uma extensão tão imensa de terra podia pertencer a somente quatro pessoas.

"Fez boa viagem?" Andrés riu ao chegar perto de mim, divertido ao me ver completamente arrasada pelo caminho.

"Esta terra toda é de vocês?"

"Sim, senão como eu poderia ter meus currais aqui?"

"Não é muita terra para apenas quatro pessoas? Vocês dão conta de tudo isso?"

"Demais da conta", e nós rimos do montanhês.

Passei o resto da tarde vendo Andrés trabalhar com o gado. Acendeu uma fogueira e quando as chamas estavam bem altas, jogou ali um pedaço de ferro. Pediu que eu jogasse lenha quando a fogueira ficasse menor e eu fiquei ali, pondo lenha de tempos em tempos, observando enquanto ele corria atrás de certos touros e os trazia a laço com enorme facilidade. Foi colocando os animais enormes dentro de um cercado minúsculo, até que tinha seis deles confinados em um espaço que não permitia muita liberdade de movimento para os animais. O último que trouxe deixou amarrado à cerca, com bem pouca corda.

Ele então pulou de volta para o lado onde eu estava alimentando a fogueira. Disse que não era mais necessário alimentar o fogo. Pegou o ferro e só então notei na ponta em brasa uma letra "A". Pulou de novo para o cercado minúsculo e passou a marcar os seis touros nas patas traseiras. Quando o ferro tocou a pele do animal o cheiro forte e enjoativo da carne queimada subiu acre nas narinas, como se lâminas de tesoura fossem enfiadas em meu nariz. O touro começou a berrar de dor, movendo-se alucinadamente para escapar, enquanto Andrés apenas apertava mais e mais o ferro para dentro da carne até que parecia haver um buraco em forma de "A" na pata do touro. Só então ele o soltou. O touro saiu mancando, desesperado de dor, mugindo lamentosamente.

"Isso passa", Andrés deu uma risadinha, olhando para mim.

Eu me calava. Fiquei assistindo o trabalho dele. Um a um, ele foi marcando todos os seis touros, até que mais nenhum restava no cercado minúsculo. Me perguntou se eu realmente não queria voltar com ele à cavalo e eu disse que não.

"Corajosa D. Stella", ele disse, "eu admiro mesmo a sua coragem."

E, relhando o cavalo com uma força desusada, sumiu a galope pela estradinha, de volta para casa.

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