terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

O menino mais sanguinário do planeta

Michel Lagravere Peniche, o pequeno terror mexicano
Um menino minúsculo, de 11 anos de idade, originário da França e do México é manchete esses dias nos jornais online do mundo todo. Ele é um matador participando em corridas de touros chamadas novilladas ou becerradas já que os touros têm a mesma idade que ele em proporção, são bezerros.

Atendendo pelo nome de Michel Lagravere Peniche, é um menino comum e corrente, desses que religiosamente assistem Bob Esponja todos os dias, não fosse pelo recorde mundial que tentou estabelecer em sua cidade natal de Merida, no México: seis novilhos passados a fio de espada numa única corrida (isso sem considerar as bandarilhadas desferidas habilmente por ele mesmo).

Pelo feito, o jornalista inglês Tom Meltzer, do The Guardian, colocou o pequeno mexicano firme na disputa pelo título de criança mais sanguinária do planeta. Outro motivo importante na consideração do jornalista inglês foi o fato de que os seis foram apenas mais seis numa lista de pelo menos 160 novilhos exterminados pelo matador em miniatura desde que sua carreira começou, aos seis anos de idade. Sim, eu disse 160 novilhos. Uma fazenda inteira exterminada.



"Não gosto de futebol, mas jamais criticaria esse esporte."

MLP



O Livro Guinness dos Recordes disse que não irá registrar a façanha, primeiro por não ter tido nenhum auditor presente à arena quando tudo aconteceu e segundo porque não mandaria um auditor de qualquer modo, já que se recusa a registrar recordes baseados em maus-tratos a animais. Lagravere foi proibido de se apresentar na Espanha - onde o mínimo de idade para esse tipo de atividade é 16 anos - e em Arles, na França, única região do país ainda a conservar as corridas de touros, por violar de uma vez só leis contra maus-tratos a animais e leis que proíbem o trabalho infantil, atraindo a atenção das ONGs e centenas de manifestantes para a frente da praça de touros.

Daí o menino e seu pai - o também toureiro francês Michel Lagravere - foram matar em outras freguesias onde as leis não são restritas, como México, Portugal (onde ao que parece há leis impedindo a morte do touro em algumas arenas, lei criada pelo Marquês de Pombal), Colômbia, Peru. Os dois carregam capa, espada, bandarilhas e um advogado para quando tudo mais falhar. Promotores ligados às corridas de touros nesses países vêem o aparecimento dos bebês toureiros com simpatia. Na verdade, a presença dos pequenos prodígios da arte de matar vem aumentando bem a freqüência de público nas praças de touros.

Interessante acompanhar o debate dentro e fora das reportagens, nas seções de comentários, o clima de indignação geral de uma questão que nem é absurdamente complexa nem simplista, mas principalmente os argumentos contra e a favor completamente fora de esquadro, alguns partidos do próprio toureiro, outros do senso comum da população.

O menino, por exemplo, diz que os ambientalistas são chatos de galocha e que dizer a ele que não deveria fazer o que faz é como dizer a um motociclista que não deve praticar motocross ou como dizer a um jogador de futebol que não deve jogar futebol. Em que pese que Lagravere tenha razão ao colocar que as habilidades e paixões humanas não devem ser podadas ou censuradas, comparar um esporte de sangue a futebol ou motocross é algo que só se pode entender a partir da ótica de uma criança. Ele é apenas uma criança de onze anos (embora ele seja a criança mais sanguinária do planeta, ele ainda assim tem apenas onze anos) e mesmo sendo seus argumentos obviamente falhos, posso mesmo admirar a tenacidade e determinação do pimpolho.


"Por que não param as guerras? Tem gente morrendo no mundo inteiro e eles se preocupando com os touros."

MLP


O que nunca contribuiu para a discussão foi a recusa em se discutir costumes e usos como parte da prática de se respeitar as culturas diferentes. Respeitar culturas diferentes nunca impediu ninguém de se envolver na discussão ou procurar entender o que torna essas pessoas tão apaixonadas pela violência em todo o mundo, não só na Espanha, França, México, Colômbia ou Peru. Por que ainda há pessoas que cultuam nos templos taurinos de todos os países citados? Por que a polícia ainda estoura incontáveis rinhas de galo e de pitbulls no Brasil? Por que os asiáticos são tão fãs de brigas de peixes?

Discutir o que essas coisas trazem de paixão em seu bojo é complicado, já que emoções não se explicam. Fisicamente algo pode ser alimento ou veneno, como a maniva brasileira ou o fugu japonês. O que é emoção para uns pode ser um tédio para outros. É obviamente um fato que o touro deve ser humilhado e fisicamente destroçado antes de receber o que - no momento em que vier - será considerado um golpe de misericórdia. Isso não é um assunto para discussão. Quem duvidar que o bicho sente dor, que atravesse as próprias costas com um abridor de cartas e saberá (não é preciso isso, lógico. Qualquer um, mesmo um viciado em injetáveis detesta a picada de uma agulha hipodérmica, o que se dirá de uma espada).



"Sinto coisas muito profundas quando estou na arena. Eu as sinto com minha alma."

MLP



A partir daí, o que explica a grande maioria dessas tradições (sem mencionar, no Brasil, a famigerada farra do boi catarinense, de tradição açoriana, onde o infeliz animal é queimado e esquartejado ainda vivo) é o fato de que o sofrimento e a violência são parte inalienável do evento e que ele só resiste ao tempo porque a violência resiste ao tempo. Essa paixão pela violência é algo que procuro estudar em meus pacientes. Muitos dos que tratei - os piores tendo sido em 1994 - fariam Lagravere parecer um Ursinho Carinhoso (o que ele pode até acontecer dele ser no dia a dia). Os homens e seus rituais e suas sociedades e sua panóplia de armas e brasões - heráldica repetida desde os lictores e fascios romanos, passando pelos mais requintados clãs europeus medievais e chegando até as mais humildes comunidades de pichadores de qualquer grande e média cidade do mundo - trazem essa paixão por dentro. Há exceções, mas você não as verá neste weblog. Não tenho assim tanta sorte.

Sem vestígios | Levando o anjo até a porta

Rádio Universal

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