quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Levando o anjo até a porta

A campaínha da porta. Deve ser Meire, vindo para sua clássica visita semanal. Ela parece bem hoje, bem melhor que da última vez em que a vi. Mais confiante, ela sempre diz que gosta de conversar comigo. Que eu sou a única que realmente a entende. Antes que ela pergunte se encontrei o paradeiro do meu marido após mais de uma década, adianto que não há nem sinal dele onde quer que seja.

Daí, conversamos sobre o tempo. Sobre a vida que se leva em Santos em pleno verão, o ar parado, abafado, o sol causticante. Sobre o marido de Meire, que se não saiu para comprar cigarros como o meu, é bem capaz de sair para comprar algo mais.

Meire me pergunta sobre meu trabalho. Gosto de falar sobre meu trabalho, mas nem sempre. Com Meire é interessante falar sobre isso, porque ela vem com pensamentos típicos de quem olha completamente de fora, pensamentos que por vezes se encaixam tão bem no contexto que podem servir mesmo como guias para algum procedimento.

Mostro a ela o meu blog e ela fica admirada em ver quantas vezes o nome dela aparece impresso. De repente, alarmada, se apressa em perguntar se eu registro tudo o que conversamos. Digo a ela que há um filtro para isso, que só o trivial é registrado e ela parece mais tranqüila. Ela parece interessada no post de ontem, sobre o menino toureiro (ao vê-lo em uma foto, acha o pequeno mexicano a coisinha mais fofa do mundo), pede mais explicações e eu falo um pouco mais sobre o assunto.

"Eu nunca deixaria meu filho fazer isso. Pelo menos não nessa idade, ele teria de ser maior para fazer isso, eu jamais apoiaria. Acho isso uma carnificina idiota", ela diz.

"Ah, é difícil a gente controlar nossas próprias paixões, que dirá as dos outros…"



"Não acredito que você defenda esse tipo de carnificina, amiga!"

Meire



"Mas, não é questão de controlar paixões, Stella. Tem mais. Se alguma coisa acontece com o menino, como faz?"

Eu disse a ela que entendia sua posição. É senso comum, não que senso comum não possa ser discutido, mas que há uma grande dose de sensatez no que ela diz. No entanto, num tempo como esse, onde por vezes se corre mais riscos num pátio de escola que numa arena de touros, as pessoas vêem nisso um sinal de que risco por risco, a paixão em si pela atividade compensaria todos eles de uma só vez.

"Você deixaria seu filho fazer isso, Stella?"

"Não sei. Nunca pude ter filhos, não é um tipo de assunto com o qual eu vá ficar me preocupando. Mas se me perguntar, tenho de estudar, entender os sentimentos dos pais nessas matérias. Os pais desse menino parecem achar que todo e qualquer risco é compensado pela glória de acenar para uma multidão sob uma chuva de rosas usando orelhas e caudas de touros recém-amputados. Vista de dentro da cultura taurina, mesmo que não esteja completamente certo, nem por isso estará completamente errado."

"Não acredito que você defenda esse tipo de carnificina, amiga!"

Meire parecia alguém que acaba de perder um amigo. Expliquei que às vezes se tem de pensar como quem gosta de algo para se dar uma mínima chance de entender porque essa pessoa gosta disso.

"Quando eu digo isso tudo, estou dizendo a partir da visão dos que gostam dessas coisas. Não há um julgamento meu, certo ou errado."

"Acho um acinte ter prazer com a morte e o sofrimento de um animal, sabe?", ela me diz muito séria.

Decidi provocar a Meire. Disse a ela que os freqüentadores de plazas de toros apreciavam visualmente o mesmo que ela apreciava com o paladar num restaurante requintado. Ela ficou indignada e disse que jamais desejaria ver o sofrimento dos bois.

"Mas você não tem que fazer isso", eu disse calmamente, "os matadouros são bem longe de onde você mora."

"Não foi nada disso que eu quis dizer".

Meire estava vermelha, aparentemente chocada com o rumo que a conversa tinha tomado.

"Mas foi exatamente o que você disse", respondi tão calmamente quanto antes.

Eu disse a ela que isso era muito mais comum do que jamais ela poderia imaginar. Acontece comigo, com o sr. José, com a dona Maria. Com o todo da população humana. Mas que a diferença entre os frequentadores de churrascarias e os de arenas é que o do restaurante não deseja a morte e sofrimento do animal, mas depende deles para saborear a carne finamente tratada que o restaurante tem para oferecer.

Acrescentei que a maioria dos frequentadores de churrascarias gostaria de obter a carne em condições de menos sofrimento para o animal, nisso eu acredito. Mas também sei, ou pelo menos imagino em que condições essa carne é obtida, independentemente dos desejos de qualquer um. E também sei que os motivos para não querer o sofrimento do animal são (às vezes) bem menos nobres do que se possa esperar, como por exemplo, não deixar que a tensão do sofrimento do animal torne sua carne dura.

"Não sabia que essa era a idéia que você tinha a meu respeito."

Eu parecia ter ofendido, ou pelo menos tocado fundo na auto-imagem dela.

"Meire, isso não é pessoal. Você sabe disso, estou falando de pessoas, não de você ou outro em particular."

Não adiantou muito. Nem precisei levar Meire até a porta. Essas coisas acontecem.

O menino mais sanguinário do planeta | Astronomia

Rádio Universal

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