domingo, 22 de fevereiro de 2009

Limite de município

Eu disse a Andrés que um certo Diogo tinha vindo à procura dele ontem. Ele agiu como se soubesse o porquê da visita. Me disse que tinha conversado com Diogo na cidade e que ele afirmou que tinha passado por aqui e falado comigo.

"E ele é seu amigo de escola?"

"Sim, só tem uma escola em Taurinos."

Andrés tirou os óculos e ia limpá-los com a camisa. Tirei um lenço de papel da bolsa e dei a ele. Ele agradeceu com um sorrisinho minúsculo e ficou por um tempo distraído, limpando as lentes.

"Para que usa óculos?", perguntei a ele.

"Eu sou míope."

"Quantos graus?", essa pergunta é tão comum para os míopes quanto um aperto de mão para o resto da população. Trocamos informações sobre nossos graus e chegamos à conclusão de que enxergávamos pouco. "Temos a visão curtinha", eu disse de míope para míope.

Ele riu. Trocamos óculos e ele ficou bizarro com os meus na cara. Ele deve ter achado o mesmo, já que não parava de rir. Realmente, era algo em torno de cinco, menos que o meu. Ele ficou assombrado com a diferença.

Nesses momentos como um menino "normal" (seja lá o que isso for) ele parece mais um ursinho ou qualquer coisa cândida que o valha (o excesso de peso e a compleição grande dele ajudam um pouco na comparação com um ursinho). Mas há algo nesse cliente que me perturba profundamente. Não sei dizer o que é. Mesmo sem considerar a questão da agressividade e da violência, ainda assim ele me perturba profundamente. Detesto quando me pego pensando nesse algo mais. Mas é um sentimento que infelizmente me ocorre com freqüência.



"Está mesmo prestando atenção ou eu estou falando para o vento?"

Andrés



À tarde, conversando novamente com Andrés. Ele me conta sobre o avô — que parece ser seu assunto favorito depois dos touros — e de como ele reunia os amigos em torno de uma idéia comum.

"Que idéia?"

Andrés explicou que a cidade fora fundada pelos touros. Interpretei a fala como alguma coisa simbólica e fiz o menino notar isso. Ele respondeu que não era simbólico. Perguntei como diabos podia não ser simbólico? Ele me contou que a fundação da cidade em torno dos touros em tempos remotos — remotos aqui entenda-se o século 18 — não era tão remota assim. O avô Andrés tinha encontrado na Biblioteca Nacional um livro que tratava dos tempos neolíticos da região. A primeira fundação de uma povoação ali, segundo o avô Andrés, datava de 15.000 anos antes de Cristo. Estranho como a datação caberia folgada na vasta cronologia brasileira de Niède Guidón.

"Ninguém sabe de onde eles vieram. Os homens daquele tempo pintaram na pedra como eles viram os touros fundando uma cidade como se fossem gente", ele prosseguiu, "e os touros atacavam todo mundo que morava por ali; os chifres abriam as pessoas no meio, as casas fraquinhas eram pisoteadas, as crianças morriam debaixo das patas dos bichos como se fossem moscas. Como todos ocupavam a mesma região, não tiveram outra escolha a não ser lutar contra os touros."

Ele parou e ficou me olhando mudamente, procurando sentir se eu estava prestando atenção verdadeira ao que ele estava me contando.

"Continua."

"Está mesmo prestando atenção ou eu estou falando para o vento?"

Aproveitei a pausa.

"Andrés, você acredita mesmo nessa história?"

Ele ficou me olhando com raiva. Disse que eu só queria mesmo ouvir para poder acusá-lo de mentiroso ou maluco. Eu argumentei que só queria uma resposta positiva ou negativa da parte dele. Que o meu ponto de vista (ou se acho ou deixo de achar a história verdadeira) não tinha a menor importância. Mas que era muito importante para mim saber se ele, Andrés Silva Conselheiro, acreditava.

"Claro, uai! Por conta de que o meu avô ia mentir?"

Eu disse que não significava que o avô Andrés estivesse mentindo. Ele poderia estar levando uma mitologia ao pé da letra. Os touros fundando a cidade seriam símbolos e ele acreditou que isso realmente aconteceu, porque a história foi contada assim.

"Um mito é uma forma de fantasia para contar coisas que realmente aconteceram… Mas não do jeito como está contado. É como poesia, onde você cria imagens impossíveis para explicar coisas que acontecem de verdade."

Ele ficou com raiva e insistiu em que não se tratava de mito. Que as coisas tinham se passado exatamente assim. Se eu tinha alguma dúvida quanto a ele acreditar na história, elas tinham se dissipado numa nuvem fina de poeira. Era ele o fiel depositário da saga. Pedi a Andrés para continuar. Ele ainda estava com muita raiva e me disse que se eu pusesse uma pitada de dúvida (que fosse) a mais na história, jamais tocaria no assunto comigo outra vez. Prometi ouvir sem colocar dúvidas.

"Eles tinham chegado em um ponto em que ninguém podia dizer que não tinha um ente querido morto pelos bichos. Os homens começaram então a atacar os touros em descampados muito grandes. O tempo passou e eles criaram suas próprias cerimônias, matando os touros da forma mais sanguinária e malvada que podiam. Quanto mais eles faziam os touros sofrer, mais eles chegavam perto do sofrimento que os touros tinham trazido para as famílias de todos eles."

"Continua", eu disse de repente ao sentir uma pausa muito longa.

"A história é essa." Ele declarou depois da pausa.

"E um dia os touros foram domesticados e nunca mais ofereceram perigo", conclui. Ele sorriu e disse que nenhum dos touros em Taurinos era realmente domesticado, mesmo que chegasse aqui assim. Fiquei perplexa e pedi explicações. Ele disse que havia um tipo de energia na cidade que trazia os touros de volta ao estado primordial (aquele já descrito por ele na história da fundação de Taurinos). Que os touros nunca deixaram de ser selvagens.

"Se é assim, por que a cidade nunca se livrou dos touros? Se eles são realmente uma ameaça na cidade como você diz, por que a cidade vive deles até hoje?"

"Por isso mesmo que a senhora falou."

"O que eu falei?"

"Que a cidade vive deles. Tanto quanto eles vivem da cidade."

O que entendi da explicação que ele me deu a seguir foi que havia uma relação perversa da cidade com os animais. Mas que ela não ficava de pé sem eles, assim como eles não ficariam de pé sem a cidade. Que a cidade não fazia dos animais moeda de troca, porque nenhum matadouro compra animais já mortos.

"Não vendem os animais vivos? Por que abatem antes de entregar?"

"O gado morre se cruzar os limites da cidade."

Senti vontade de rir, mas me contive. Não fui competente. Andrés disse que ele podia ver minha confusão. Disse que eu achava que ele estava mentindo ou preso a alguma superstição.

"Eu vou lhe provar o que estou dizendo", ele disse me fulminando com o olhar.

Vinte e cinco minutos depois estávamos num caminhão dirigido por um dos camaradas da fazenda, voltando dos currais de Andrés com três touros enormes. Este perguntou ao menino porque estava fazendo aquilo.

"É tão importante mostrar isso para alguém de fora que talvez nem volte aqui? São touros tão bonitos… E três de uma vez!"

"Eu escolhi os mais saudáveis de propósito", Andrés disse olhando para mim em vez de olhar para o seu interlocutor.

Passamos por um homem na estrada. Eu o vi parar, olhar o caminhão com os touros com os olhos esbugalhados, como se estivesse diante da cena mais bizarra que já tinha visto. Um pressentimento começou a me incomodar. Sim, eu já sabia o que viria a seguir. E coisa boa não era.

Um ou dois quilômetros depois da placa de limite de município, ouvi o som lamentoso de mugidos atrás de nós; o carro parou, o motor desligou, Andrés abriu a porta e correu para a traseira do caminhão. Comecei a ouvir os gritos dele lá atrás antes de deixar a boléia. O caminhão começou a sacudir como se o inferno inteiro estivesse dentro dele, enquanto o motorista sacudia a cabeça, com os braços cruzados. Ao chegar próxima à caçamba, não pude conter o espanto: os animais mugindo de puro horror, se sacudindo em espasmos, olhos parecendo querer saltar das órbitas, caídos, amontoados uns sobre os outros. Babando. Sucumbindo. Perecendo. Andrés olhando para mim atrás das suas lentes, rosnando algo incompreensível, perdido em algum lugar remoto entre o triunfante, o vingado e o raivoso.

"Andrés, ainda dá pra voltar atrás com eles, não quer? Por favor…", pediu o motorista, aflito, aquecendo ainda mais a fornalha de óculos e com excesso de peso ao meu lado.

"Puta que pariu! Deixa ela ver", rugiu o mineirinho, "vai até o fim! Taí, me chama de mentiroso agora, porra! Olha pra você ver! Olha pra você ver! São três, só pra não duvidar de mim de novo! Nunca mais duvida de mim, D. Stella… Nunca mais!"

A agonia dos animais foi extrema, me proporcionando momentos de intensa paranóia e horror até o final previsível quando os touros finalmente descansaram. Me perturbou ainda mais que Andrés desse cabo de três touros saudáveis só para me convencer de algo. E me convenceu, tenho que dizer. Mais que isso, me trouxe aqueles pressentimentos e sentimentos esquisitos de sempre sobre tudo aquilo que me cercava.

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