quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Astronomia

Liguei para a Meire hoje de manhã. Ninguém lá para atender o telefone ou ela identificou o número chamando e não quis atender. Meire não é de ficar colada em casa, então eu tenho o benefício da dúvida nesse assunto. Decidi não ligar mais. Ela deve estar de cabeça quente ainda com a conversa de ontem; darei um tempo a ela. Ela ligará quando estiver mais tranquila.

Meio-dia. Estou me sentindo bem esquisita hoje. Desde que acordei e liguei para Meire. Uma apreensão que toma conta de mim. Meu corpo físico parece estar tendo seus padecimentos hoje também, para completar. Poderia ter sido algo que comi? Achei que daria um pouco de descanso ao meu corpo e minha mente e voltei para a cama, nem que fosse para ter meus olhos fechados por uma ou duas horinhas.

Mais tarde, o telefone tocou. Achei que era a Meire, finalmente em estado zen de relaxamento. Não era. Uma voz de homem com forte sotaque mineiro se apresentou e marcou uma entrevista comigo ainda na parte da tarde. Dei ao homem meu endereço e instruções sobre como chegar aqui e desliguei.

Fiquei no computador até mais tarde. Já era mais de uma da tarde, então achei que o melhor seria almoçar, evitar entrevistas sem muita substância. Não tinha ainda uma hora desde o almoço e a campaínha da porta tocou. Um homem grande como um armário entrou e se apresentou como Duílio. Disse que vinha conversar sobre o filho Andrés. Daí se seguiu um silêncio que não tentei quebrar. Dar um tempo para o homem, certos problemas são difíceis de trazer à tona. O fato de um ser uma completa desconhecida ajuda a desembaraçar. Mas nem sempre é tudo que se precisa. Finalmente, decidi pedir dados básicos, como forma de quebrar o silêncio que completava agora um minuto.

"Qual o seu nome completo, Duílio?" Eu comecei a tomar notas.

"Duílio Lima Conselheiro", ele disse casualmente, olhando ao redor.

"Sua esposa? O nome do filho?"

"Maria Aparecida Silva Conselheiro e Andrés Silva Conselheiro", ele disse ainda mais casualmente, olhando para a tela do meu laptop, enquanto eu escrevia.

"Qual a idade do menino?"

"Doze anos", ele respondeu.

"Em que acha que posso ajudar Andrés?"

Uma pausa, enorme. Duílio parece medir as palavras por dentro antes que elas pulem em cima de mim. Procuro ler o que se passa pela cabeça dele. Uma onda confusa de pensamentos, porteira de fazendas, campos, árvores, currais, grandes cidades, ele não me deixava entrar tão facilmente.

"Ele tem estado meio agressivo ultimamente. Briga na escola, essas coisas, sabe? O irmão às vezes apanha dele porque não gosta de brigar."

"Ah, ele tem um irmão?"

"Sim, temos outro filho, Adriano."

Aqui eu esbarro em uma tradição. A dos nomes com a mesma letra no início ou mesmo a mesma sequência de letras no inicio do nome. De mais a mais, "ele tem estado meio agressivo ultimamente" é uma frase que ouço com frequência aqui no consultório. Sempre prenuncia encrenca da grossa. Mas faço minha vida me metendo nessas confusões. Desde 1994.

Pergunto a ele o que o menino faz no tempo livre. Não só o que faz na escola ou em suas obrigações diárias, mas o que faz em seu tempo livre revela bem mais do que as obrigações, tantas vezes cumpridas de forma automática e impessoal. Duílio parece um pouco reticente em me responder (como se estar ali falando do problema do filho fosse uma dessas obrigações automáticas) e finalmente diz que ele ajuda com o gado na fazenda.

Digo a ele que pergunto sobre coisas que dão prazer ao menino, passatempos. Ele me diz que é exatamente isso, o trabalho na fazenda absorve muito da atenção do garoto. Que ele chegou a ter notas ruins na escola por se dedicar demais à fazenda.

"Tentou cortar um pouco da atividade para que ele pudesse estudar? Digo, impondo um mínimo de horas para o estudo e um máximo para o trabalho com gado?"

"Sim, mas ele continua firme. As notas melhoraram bastante desde que eu peguei no pé dele, mas não diminuiu o ritmo com o gado."

"Quanto do dia ele passa ajudando com o gado?"

"Oito, dez horas."

"O senhor deixa um menino de doze anos trabalhando com gado de oito a dez horas por dia em sua fazenda?"

"Não."

"Então me desculpe, não estou entendendo mais nada."

"Nem eu nem minha esposa queremos que ele faça isso. Tentamos proibir e conseguimos por um tempo. Então, ele parou de comer. Foi parar em um hospital, tomando soro, quase morreu. Uma psicóloga aconselhou a que não se mexesse no assunto por um tempo. Que nós deixássemos Andrés fazer o trabalho já que tem tanta paixão por ele…"

"Entendi."

"Fora essa agressividade que não tínhamos visto antes, o resto tem estado bem, como eu disse, as notas na escola até melhoraram."

Duílio parece mais animado ao dizer isso. Digo a ele que as notas são um bom indicador de melhora, mas são obrigações com as quais a criança deve cumprir. O indicador mais preciso são as atividades que dão a ele real prazer e como elas afetam o humor geral da criança. Duílio parece ver aí um bom senso e concorda. Pergunta como se deve proceder.

"Preciso passar uns tempos com vocês", eu disse, tentando, como ele, parecer o mais casual possível, "ver como ele se comporta no dia a dia dele, principalmente nesse trabalho da fazenda."

O pai olha para mim, uma sombra no rosto. Vejo que ele ainda não disse tudo o que precisava dizer. Ele passou a me contar que o filho às vezes sumia da fazenda. Ninguém sabe como. O garoto disse que saía para os descampados para admirar o céu noturno. Digo a Duílio que astronomia é uma ótima desculpa ainda mais sob os céus de Minas Gerais e sorrio. Ele sorri também, mas diz não saber se isso é verdade. Digo que é pouco provável que seja.

"Estamos retornando para Taurinos amanhã à tarde. Acha que estaria pronta para ir conosco amanhã à tarde?"

"Sim, com certeza."

"Posso vir às três da tarde amanhã?"

"Estarei esperando."

Não pude deixar de notar a rapidez com que ele se foi. Deve ser um homem bem ocupado.

Levando o anjo ate a porta | Taurinos

Rádio Universal: Um Amor Como Sangue

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