segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Contos de um futuro próximo: clarividência

Guardei para mim a suposição de ontem. Saber que algo ronda Andrés como a imagem que vi no poço da Cachoeira dos Chifres ontem já é bem ruim. Tive essa visão, ou tipo de visão antes e isso sempre me passou um grande grau de comprometimento dos clientes com suas maluquices. Quando aqui cheguei eu tinha o retrato de um pré-adolescente com certa fixação em um assunto específico, coisa que, segundo os pais, começava a afetar sua vida social (aqui simbolizada pelas notas escolares). Um dia ou dois depois, me deparo com essa imagem dentro do poço. Essas imagens quando me aparecem, geralmente me dizem que existe mais do que uma mera fixação num assunto. Adolescentes são naturalmente susceptíveis a armazenar idéias fixas, mas que desaparecem com o tempo. Como uma fase, sim, é o que é, uma fase.

No café, temos Duílio comentando sobre os ladrões de gado que assolam a região. Ele diz que não ocorrem crimes na cidade, já que a comunidade é bem vigilante, pouquíssima gente de fora vem à cidade e todos na cidade se conhecem ou são parentes, o que dá de acontecer muito em cidadezinhas de dois mil habitantes.

"Agora deram de roubar bezerros, já se viu?"

Aparecida opinou que provavelmente devia ser gente de fora. Fosse alguém de Taurinos, todos saberiam quem é, a cidade é pequena demais. Duílio teve de concordar. Adriano disse que não lembrava de tempos em que isso tivesse ocorrido na cidade. Andrés apenas ouvia. Com atenção até, parecia. Não dizia nada.

"Vamos nos reunir hoje à noite", o pai disse, "propor uma rede de vigilância mais apertada pelas fazendas. Uma hora a gente pega os danados."

"O que vão fazer quando pegarem os caras?" questionou Adriano.

Eu ouvia tudo olhando para o fundo de minha caneca, mesmo assim tive a impressão nítida de ouvir um discreto "ai" em algum lugar bem próximo a mim. Seguiu-se um silêncio, pesado, inesperado. Ou esperado? Olhei discretamente com o canto dos olhos ao redor apenas para encontrar Adriano massageando o que parecia ser sua canela por baixo da mesa. Olhei para longe dele, exatamente a tempo de evitar o olhar de Aparecida e Duílio que já caía sobre mim. Para que não percebessem que eu percebi. Que eu percebi que Adriano havia feito o que o grande escritor de Araraquara, Ignácio de Loyola Brandão chamaria de "pergunta intragável".

"Posso ir com o senhor na reunião?" Andrés quis saber.

Duílio pensou por um tempão antes de concordar com o pedido. Aparecida ainda tentou dissuadir o marido de levar o garoto, mas ele disse que Andrés tinha de aprender desde cedo o que se passava em sua fazenda e comunidade. Não disse nada sobre Adriano, talvez por conta da pergunta intragável. Decidi testar algo e pedi para ser levada à reunião também. Duílio me disse que a reunião seria uma chatice interminável, mortal. Eu disse a ele que não iria me chatear mais que o Andrés. No final, ele mostrou claramente que não tinha a menor intenção de me levar a reunião alguma e eu desisti. Embora ninguém ali fosse chutar minha canela por baixo da mesa, senti que tinha feito eu também a minha pergunta intragável.

Acredito piamente em Duílio quando ele diz que eu ficaria mortalmente entediada num evento assim. Na verdade, fiz o tal pedido não porque quisesse ou esperasse ir à tal reunião, mas porque queria medir a reação dele. Ver como tratava o assunto, se uma reunião aberta, ou algo mais secreto, à portas fechadas. Acho que vai ser algo restrito aos fazendeiros e povo daqui. Nada de forasteiros ou gente intrometida metendo o bedelho nos negócios locais. Duílio saiu e levou os filhos para a escola.

"Não é a primeira vez que isso acontece", Aparecida me disse após o cafe da manhã, quando nós duas ficamos à sós na cozinha, "mas é a primeira vez que vejo bezerros sendo roubados."

"Deve acontecer com alguma frequência nas cidade do interior, não?"

"Na verdade, não. O povo aqui é bem atento…"

Senti uma certa urgência em perguntar porque Adriano foi chutado debaixo da mesa, mas me contive. Não sei de que lado da questão ela está. Nem mesmo sei qual a questão ainda, embora algumas peças comecem a se ajustar. São pouquíssimas peças, mas caíram direito em seus lugares.

À noite, fico no sob o telheiro perto da árvore alta, onde Adriano e eu conversamos sobre seu avô. Assistindo a última pancada de chuva do dia. A escuridão da noite, somente os sons de grilos e sapos. Os sons me relaxam e me distraem dentro da noite. Induzem um estado de relaxamento que por sua vez induz a uma série de transes noturnos. Deixo a mente vagar. Rádio Universal foi um apelido dado a mim quando pequena, por minha avó, ela também bem versada nas artes sensitivas. Ela sabia que eu ficava nesses estados de vigília atenta a tudo ao meu redor, inclusive atenta àquilo que não se podia ver com a visão normal. Ela sabia que eu tinha desenvolvido percepção extra-sensorial.

Não me perguntem quanto tempo fiquei ali. No som relaxante da saparia, grilos e das últimas gotas de chuva caindo. Abri os olhos e vi o que parecia ser uma picareta ao meu lado, uma pá na minha frente e uma enxada do outro lado. E pensar que nem mesmo notei esses objetos aqui comigo quando entrei para me proteger da chuva. Nesse momento, ouço tocar um celular distante, dentro da casa. Toca insistente, até que um toque é cortado no meio, indicando que alguém o atendeu.

Eu me abaixei para pegar a picareta, mas não havia nada ali. Quero dizer, a picareta estava ali, mas eu não podia segurá-la, porque ela não tinha corpo sólido. Era mais como a idéia de uma picareta. A pá e a enxada renderam o mesmo resultado quando tentei tocá-las. Eram formas-pensamento deixadas aqui, talvez fruto da utilização dessas ferramentas no dia a dia de uma fazenda. Talvez. Qualquer outra pessoa teria voado correndo dali há muito tempo ao descobrir que não pode tocar nos objetos que vê. Coisas simples como as formas-pensamentos podem tocar horror naqueles que nunca vivenciaram a clarividência.

Me ergui, deixando as ferramentas no telheiro e caminhei por ali sentindo as gotas cairem das árvores próximas. Quando me aproximei do telheiro, ouvi as molas características da porta de tela rangendo no alpendre. Adriano veio do alpendre carregando objetos pesados com ele. Fiquei surpresa em vê-lo carregar uma enxada, uma picareta e um pá, mas de repente fez muito sentido para mim. Fiquei atrás de uma árvore ao lado do telheiro de modo que não podia ser vista por quem entrasse nele.

Mirei as ferramentas no chão. Adriano chegou ao telheiro com as ferramentas e as deixou cair displicentemente no chão. O que me surpreendeu mais que tudo ocorreu nesse momento: as ferramentas caíram exatamente nas posições que suas formas-pensamento ocupavam. Nem um milímetro fora de posição. Eu podia ver o brilho das formas-pensamentos, mas não havia duplicação de imagem com as ferramentas físicas. Isso me assombrou. Já soube de clarividentes que viram coisas mais absurdas, mas essa clareza do que vi me impressionou (não estivesse eu acostumada a tudo isso em minha vida).

Um ruído de motor se fez ouvir ao longe, aumentando gradativamente até os faróis azuis relampejarem sobre o telheiro, rasgando a escuridão. Me espremi contra a árvore para não ser atingida pelos faróis e ser vista pelos três: Duílio, Andrés e Adriano. O carro parou, Andrés saiu rapidamente para abrir o porta-malas, Adriano coletou as ferramentas que tinha jogado no telheiro e as levou, jogando na mala do carro. Por algum motivo, as ferramentas não desceram até o fundo da mala do carro, como seria de esperar com uma mala…

…vazia.

"Ninguém lá dentro viu você?", a voz de Duílio vinha de longe.

"Não, as duas devem estar dormindo", respondeu Adriano.

"Devem? Não tem nada melhor que um 'devem'?" A voz era a de Andrés agora.

"Adriano, entra logo. Próxima vez são os Bastos, eu prometo", pediu Duílio a voz abafada do interior do carro.

Adriano não se fez esperar mais. Entrou, bateu porta e o carro arrancou, dando meia-volta para fora da fazenda. O som do motor foi minguando até desaparecer dentro da noite. E de repente, tudo é silêncio outra vez. Volto ao telheiro e as ferramentas estão lá. Intocadas ou isso era o que parecia. Tentei tocá-las mais uma vez, mas nada. Apena formas-pensamento de ferramentas agrícolas, era tudo o que restava ali.

Dois pensamentos (e muitas perguntas) sobre a situação. Que planejam os homens da casa para esta noite? Qual o resultado da tal reunião de vigilância dos fazendeiros? Por que deveria Adriano carregar uma pá, uma picareta e uma enxada, colocar isso tudo na mala do carro e partir para dentro da noite com o irmão e o pai qualquer hora entre onze e meia-noite? E sobretudo, porque os três deveriam ser os únicos a saber o que se passava? O que me leva ao segundo pensamento: se eles não sabiam que eu estava ali olhando enquanto eles carregavam a mala do carro e sumiam, seria então aconselhável não ser vista aqui fora quando retornarem de seja lá onde foram.

Um motor ao longe. Podem ser eles, podem não ser. Não vou arriscar minha discrição. Com passo firme, retorno ao alpendre, deixando a luz de fora acesa como estava. Mais ou menos uma hora e meia depois, do meu quarto, ouvi o som do motor do carro de volta (desta vez eram mesmo eles), as portas abrindo, fechando, som da mala se abrindo, o metal das ferramentas se chocando umas nas outras com a nitidez que somente o silêncio da noite do interior pode esculpir. Logo depois, eles entram, passos abafados pelos tapetes e vozes baixas de quem não pretende chamar a atenção.

"A gente ia levar anos cavando do teu jeito." Reconheci a voz de Andrés falando.

"Mesmo assim, eu cavo melhor que você."

"Calem a boca os dois. Estão querendo acordar as mulheres?"

Depois, foi só o silêncio. Sem mais passos, vozes ou ruídos. Tudo agora era o silêncio da noite. A orquestra percussiva de sapos voltou a dominar a atmosfera em redor da casa, junto aos grilos, curiangos e outros sons da noite no campo. Meus olhos (a despeito de toda a excitação mental) foram ficando mais e mais pesados.

Pós-imagem | Arquivo morto

Rádio Universal: Um Amor Como Sangue

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