quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Aéreo

O telefone tocou de manhã. Era Donana, perguntando se eu tinha encontrado Renan ontem. Eu disse que o tinha visto à noite, no descampado, enquanto observava o céu. Ela, como todos os outros, queria entender o que eu ficava fazendo num descampado à noite olhando o céu. Expliquei que às vezes se precisava tirar um momento para não fazer nada, etc., mas ela pareceu ter ficado na mesma.

Não obstante, mudou de assunto, dizendo que o filho estava aéreo como ela nunca tinha visto. Eu disse que achava que Renan era algo entre um tanque de guerra e uma bolha de sabão. Muito forte, mas também muito frágil, pronto para explodir ao menor contato. Ela a principio não entendeu, mas depois pareceu concordar com minha avaliação sobre o pequeno.

"E eles pararam do seu lado para olhar o céu, foi?"

"Ficaram lá comigo a noite toda sem dizer uma palavra. Pareciam hipnotizados."

"Será que isso não fez mal aos meninos? Nunca vi o Renan fazendo esse tipo de coisa, D. Stella"

"Se não fizer bem, mal também não pode fazer, Donana."

"O que a senhora acha que eles ficam fazendo à noite?"

"Bom, não ficam lá caçando os forasteiros, entrantes, ou sei lá o que mais?"

"Mas é só isso?", Donana quis saber.

"Eu não chamaria de só isso. Acho que deve ser o diabo ficar fazendo isso. Se isso não faz mal a eles, por que olhar o céu e as estrelas à noite faria?"

Houve uma pausa do outro lado da linha. Uma pausa gigantesca. Depois, Donana se despediu, disse que tinha esquecido algo no fogo. Eram realmente umas dez horas da manhã, horário em que as donas de casa em Taurinos costumavam começar a cozinhar para que a comida estivesse pronta lá pelo meio-dia.

Passei pela fazenda Taurinos um pouco mais tarde. Andrés estava na Prefeitura despachando. Fico pensando o que esse menino tanto tem para despachar numa cidade que parece estar completa, onde praticamente não falta nada. Ficamos eu, Adriano e Aparecida na cozinha da fazenda conversando enquanto eu ajudava Aparecida com o almoço.

"E ela ligou querendo saber do menino?", Aparecida perguntava, entretida em cortar couve tão fina que eu não conseguia deixar de pensar que ela cortaria o dedo, tão pouca a distância entre o fio da faca e seu indicador.

"Na verdade queria saber se eu tinha estado com ele", respondi enquanto começava a fatiar pepino.

"E tinha?", perguntou Adriano.

"Sim, eles apareceram do nada nos cavalos lá no descampado…"

"D. Stella! Creio em Deus Padre!", a mulher se horrorizava só de imaginar.

"Mas não, não estavam armados, estavam normais, eles só estavam vestidos de preto e cobertos de sangue", respondi segurando o riso e fazendo a matriarca dos Conselheiros se persignar, "estranho, não disseram uma única palavra e ficamos lá a noite inteira em silêncio total…"

Adriano estranhou e ficou com expressão de quem estava pensando.

"Então não foram assustar a senhora?", tornou Aparecida.

"Ah, assusta sempre um pouquinho, porque eu estava sozinha e a gente sempre acha que eles vão vir armados. Mas não escutei sons estranhos deles armados quando cheguei meu ouvido perto do chão…"

"Creio em Deus Padre, D. Stella não faça isso! Dizem que não presta ouvir os dois chegando assim de noite perto do chão…", ela estava pálida.

"Prestar não presta, mas é melhor que encostar o ouvido no chão, mãe", disse o filho mais velho, "aí a pessoa quer ficar surda ou louca, né não?"

"Será que é assim tão pior do que ver os dois naquelas armaduras ao vivo e a cores?", eu tive que questionar.

"Ai, eu não estou gostando nem um pouco dessa conversa… Será que não dá pra gente mudar de assunto?"

Houve um silêncio, mas não tinham transcorrido cinco segundos desde o pedido de Aparecida e um grito que ela soltou. Quando eu e Adriano olhamos, Renan estava ao lado dela, todo de preto, sombrio, olhando sério pra nós, ajudando a pobre mulher a se erguer. Adriano correu para perto da mãe e livrou o policial minúsculo do peso. Renan estava esquisito e sombrio. Não que ele não fosse usualmente esquisito e sombrio, mas era um esquisito e sombrio diferente. Não saberia como explicar, mas me encheu de calafrios.

"Detesto quando vocês ficam falando de mim e do meu parceiro como se a gente fosse assombração", ele disse num tom tão esquisito e sombrio quanto sua aparência.

"Mas você gosta de meter medo nas pessoas, não? Se orgulha do tanto que é terrível", rebateu Adriano, ainda reanimando a mãe.

"Foda-se! Eu não sou assombração, ouviram? Sou um moleque como qualquer outro na cidade!"

Fiz um sinal a Adriano que deixasse o pequeno falar sem provocar. Estava vendo a hora em que ele ia se armar ali e aí adeus sossego. Sem contar com o que aconteceria a Aparecida, que só de falar no assunto já ficava apavorada. Que desmaiou só de ver o menino vestido de preto aparecendo pela porta de tela dos fundos da cozinha.

"O que é que você quer aqui, Renan?", Adriano perguntou quando o menino parecia ter dissipado um pouco do calor interno.

"Vim perguntar se eu posso almoçar com vocês hoje."

E ele ficou para o almoço. Ficou esperando e eu chamei Adriano num canto e pedi que ele me levasse à fazenda Teixeira enquanto o almoço não ficava pronto. Ele nada entendeu, mas me levou. Não acredito como Aparecida se animou a ficar sozinha com Renan na cozinha.

Entramos na fazenda e Donana veio à porta nos receber. Nos convidou para almoçar. Disse que só queríamos falar com o Renan. Adriano me olhou espantado, mas me seguiu enquanto eu adentrava a sala de jantar da família. Renan foi o primeiro a me ver e sorriu para nós.

"A senhora podia ter telefonado. Trabalheira vir até aqui."

Adriano me olhava com os olhos esbugalhados. Aparentemente a história dos aspectos o assombrava também. Quando voltamos à fazenda Taurinos, Renan e Aparecida já estavam almoçando. Decerto decidiram não esperar. Renan novamente me disse que eu poderia ter telefonado.

"Se a senhora perguntasse eu teria dito que eu estava almoçando com a minha família", ele observou entre tímido e sombrio.

A seu lado, Aparecida não estava entendendo nada. Eu desconversei rapidamente para evitar um outro desmaio da matriarca dos Conselheiros em plena mesa do almoço. Conversamos muito e Renan parecia ter um prazer especial em ouvir nossa conversa e dar seus apartes também. Ele foi ficando cada vez menos sombrio à medida que a refeição progredia. No final do almoço, no alpendre, sozinha com ele e Adriano, perguntei porque cargas d'água almoçar em dois lugares ao mesmo tempo, cinco quilômetros longe um do outro.

"Tava muito silêncio na mesa hoje lá em casa. Fiquei triste."

Eu e Adriano nos entreolhamos. Lá na porteira, um carro que não reconheci parou, deixando Duílio em casa, atrasado para o almoço.

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