quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Drama da Paixão

Bruno apareceu pela primeira vez em minha casa. Veio com Andrés. Digo primeira vez porque ele nunca veio aqui de fato, embora já tivesse estado em minha casa umas poucas vezes. Era a primeira vez que ele entrava na casa. Ele olhava o interior atentamente, sem nada dizer. Estava ressabiado, atento, estávamos ainda meio marcados pelas circunstâncias do Jardineiro Celeste, não bastasse ele sempre me ter trazido no olho desde o dia em que nos conhecemos. Ofereci café e os dois recusaram. Sentamos no sofá e eu perguntei a que devia a honra da visita.

"Vocês formam uma dupla insólita. Não sonharia ver os dois sentados juntos no meu sofá há uns dez dias."

Eles se entreolharam. Bruno sorriu, sem-graça. O sorriso de Andrés era tão descontraído quanto. Eles disseram que não tinham vindo conversar sobre isso. Eu disse que estava tão disposta a conversar sobre isso quanto eles, mas que tinha umas perguntas a fazer ao Bruno.

"Por que tanto silêncio?"

Bruno ficou em silêncio. Parecia piada, mas ele me respondeu com mais silêncio. "Por que falar?", ele disse enfim, depois de uma pausa gigantesca.

"Não fui eu quem estragou a tentativa de comunicação entre o Jardineiro Celeste e a cidade? Era assim que você pretendia se comunicar com a cidade? Em silêncio?"

"Em silêncio, fiz mais pela cidade do que muita gente fez falando. Porque falar é falar, não é fazer, D. Stella. Nós chegamos à conclusão de que se a senhora tinha criado a situação, a senhora poderia remediar a própria situação que criou. E foi o que acabou acontecendo, não?"

"E vocês chegaram à conclusão de que eu tinha criado a situação porque vocês chegaram à conclusão de que eu tinha criado a situação."

"Não entendi…"

"Em que vocês se basearam para chegar à conclusão de que eu tinha criado aquela ou qualquer outra situação em particular além de tudo o que eu já tinha criado?"

Bruno ficou em silêncio. Andrés ficou em silêncio. Eu fiquei em silêncio. Bruno acabou dizendo algo não muito diferente do que o pai de Anderson me disse ontem na praça. Que como Criadora de Taurinos eu era como Deus, princípio e fim. Dai nem uma folha de árvore cair de um galho que não fosse por minha vontade. Vontade, no entanto, que eu não conseguia controlar. Achei e fiz ver a ele que essa era uma explicação simplista.

"Dentro do que vocês todos têm tentado me convencer, vocês mesmos não passam de fantoches na minha mão."

Eles se irritaram com o retrato, mas eu os desafiei a me dar uma explicação melhor. Eles ficaram em silêncio. Perguntei se eles achavam que tinham vontade própria ou se seguiam cegamente determinações minhas que nem mesmo eu sabia de onde vinham. Eles ficaram em silêncio. Era mesmo duro conversar com essas pestes desses moleques.

"D. Stella, na verdade a gente queria conversar sobre…", começou Bruno, hesitante, "…a gente quer saber se a senhora pode hospedar nosso grupo escoteiro em volta de sua casa."

Eu disse que sim. Que já que estava apoiando o evento, então não custava dar uma cota a mais de sacrifício para que tudo ao menos corresse em relativa paz. Mas eu tinha perguntas a fazer.

"E o prefeito?"

"Que é que tem o prefeito?", os dois perguntaram em impressionante sincronismo.

"Como assim, que é que tem o prefeito? O homem foi pregado numa cruz por conta de um acordo que ele não fez sozinho e que nada tinha a ver com ele pessoalmente. Está certo que o que os dois fizeram com ele vocês fazem uns aos outros mutuamente há quanto tempo? Mas é fácil enfiar o prefeito na bananosa e se fingir de mortos, não? Bom, o Andrés ainda estava aqui em Taurinos para tentar ajudar…", eu ajuntei, fazendo Bruno ficar vermelho como uma pimenta.

Mostrei a eles um prego que eu tinha recolhido da cruz quando Anderson liberou o prefeito. A ponta ainda manchada de sangue. Eles ficaram abismados com o tamanho. Bruno ficou zonzo olhando para o prego. Andrés tirou os óculos, aturdido.

"Só pra vocês terem uma ideia do que rolou na praça. Os pregos foram feitos pelo Anderson, nosso grande ferreiro e futuro inventor da guilhotina. Bonito, não?"

Os dois me olhavam aturdidos. Som de cavalo na porta de casa e era "sêo" Danilo. Ele entrou, cumprimentou a todos e disse que foi a Varginha ver o prefeito. O homem estava em estado de choque, segundo ele, resultado do estresse extremo de ser pendurado pelas mãos e pés numa cruz. O médico que o conhecia de outros carnavais o interrogou suavemente nos corredores, perguntando se em Taurinos existia alguma seita de fanáticos religiosos ou coisa do gênero. Os dois nos olhavam aturdidos.

"A gente não imaginava que o Renan…"

"O problema é esse. Ninguém nunca imagina que o Renan."

"Sêo" Danilo concordou com o que eu dizia. Disse que um evento desse tamanho tinha de necessariamente ter passado pelo Conselho para evitar esse tipo de problema.

""Sêo" Danilo, eles convenceram, olha só, eles convenceram o prefeito a fazer a cruz e provavelmente até mesmo pregar a si mesmo nela. O senhor não viu o tamanho dos pregos", e eu mostrei o prego a ele, "o senhor tem idéia do que eles podem ter feito com o desgraçado do homem durante toda a madrugada até que ele fosse parar na praça de manhã? Nem eu, mas boa coisa não foi. O Andrés mesmo, se eu não enfio ele no carro quando o Adriano passou pelo Zé, não sei se ele não iria encontrar o seu próprio destino na cruz…"

"Que merda…", Andrés resmungou, olhando de relance para um Bruno bem abatido.

"Então, senhores escoteiros? Qual foi a boa ação de ontem?"

Enviei uma onda de choque na direção do brio dos dois. Eu disse que eles sabiam que estavam lidando com uma Polícia selvagem e altamente especializada, além de intensa e aleatoriamente imprevisível (sem falar em escalafobética e insanamente horrenda). Que eles tinham de discutir o assunto com todos antes. Contei o que eles sabiam de tempos atrás quando Meire fez uma visita à cidade e quase foi queimada viva por Renan. Perguntei o que diriam os escoteiros se chegassem à praça e vissem a crucificação do prefeito da cidade. E o que responderíamos, diríamos que era apenas o Drama da Paixão temporão?

"E imaginem isso multiplicado por quinhentos", ajuntou "sêo" Danilo.

"Então."

"Vocês querem desencorajar a gente", fungou Andrés enquanto Bruno olhava para os próprios tênis.

"Se "sêo" Andrés e "sêo" Bruno querem ajuda, a gente pode ajudar."

"Me proponho a ajudar também, como "sêo" Danilo. Mas será que os escoteiros estão preparados para o que tem por aqui? Eu sei que o lema deles é estar preparados, mas será que eles estão mesmo preparados para Taurinos? Como vamos conseguir esconder deles todas as coisas estranhas daqui? Podemos tentar, mas os riscos são altos, se vocês conhecem dez por cento do potencial da cidade para a bizarria."

Eles se entreolharam. Eu disse a eles que se eles fossem em frente, ajudaríamos. Eu conversaria com a Polícia Obscura mais à noite e ver se conseguia deles o compromisso de cavalheiros de suavizar as rondas.

Dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse só apareceram dois, Renan e Anderson. Eu estava terminando de fazer a janta, com a ajuda de "sêo" Danilo. Graças a Mitra, vieram à paisana, camisas de flanela simples para o frio da noite, se bem que vieram em seus cavalos pretos. Eles queriam sinalizar com isso que respeitavam minha decisão de não recebê-los dentro de casa de uniforme, mas que a visita era oficial da Polícia Obscura, não um mero encontro social com os cidadãos taurinenses Anderson Nascimento Caldeira e Renan Augusto Giacomin Teixeira.

Eles saudaram "sêo" Danilo e se sentaram no sofá. Eu disse que viessem à cozinha. Nos sentamos em torno da mesa e eu servi spaghetti à bolonhesa e almôndegas a eles. Renan perguntou se eu tinha Coca-Cola. Eu o fiz pegar uma na geladeira e encher quatro copos. Ele largou a garrafa em cima da pia destampada e o fiz tampar a garrafa novamente.

"O que a senhora quer exatamente?", perguntou Renan entre uma garfada e outra.

"Não deixar que os escoteiros percebam que esta cidade é um hospício."

"Hahaha, e a senhora acha que vai depender da gente?", o policial mais novo riu, divertido.

"Também. Vai depender de todo mundo. Vocês poderiam, digamos, "suavizar as rondas". Que acham?"

Expliquei que um testemunho de coisas exóticas na cidade da parte dos grupos escoteiros poderia reverter em propaganda para a cidade, atraindo mais e mais forasteiros, loucos para conhecer o mistério de Taurinos, assim como o que aconteceu tempos atrás na cidade vizinha de Varginha, com o mundialmente famoso caso do ET de Varginha. Os dois ficaram impressionados com minha eloquência e ao pensar nas consequências dessa imagem bizarra de Taurinos na mídia.

"D. Stella, a gente pode ajudar, parar o tempo e capturar os entrantes sem os escoteiros verem, mas sempre pode acontecer um imprevisto", explanou o policial mais velho.

"E não tem essa de "suavizar rondas". Isto aqui é a Polícia Obscura, não uma dupla de ursinhos de pelúcia ou instrutores de origami", ajuntou Renan, zangado com minha tentativa, "distribuam uma cartilha de sobrevivência em Taurinos, sei lá, toque de recolher, mas não tem essa de "a Polícia suavizar rondas"!"

"Lógico, quem foi que falou em suavizar rondas afinal?", eu deixava barato, já estava conseguindo o mundo em se tratando da Polícia.

"E não esqueça que eu fiquei chateado, bem chateado mesmo com a senhora quando eu chamei de mãe e a senhora…"

"Renan, não é o momento pra amor filial agora. Estamos em visita oficial da Polícia Obscura, lembra?", interrompeu Anderson, sorrindo amarelo para mim e me salvando pelo gongo.

"Que idéia foi essa de crucificar o prefeito, meninos?", perguntou "sêo" Danilo, encarando a dupla aterrorizante.

"Se o prefeito tivesse vindo falar com a gente quando os bichos-grilos foram levar a ideia para ele, teria passado a bola pra gente e resolvíamos no Conselho com os dois bichos-grilos. Foi ele aprovar o evento sozinho, deu no que deu", Renan respondeu.

"Foi muito bom ver o prefeito estrebuchando naquela cruz", ajuntou o ferreiro, que aparentava ter sido totalmente possuído pelo caráter sádico da instituição que representava.

Pensando bem, não me peguei eu mesma pensando no prefeito de Santos estrebuchando nervosamente numa cruz? Me vejo por vezes perdendo a sensibilidade como o Dr. Finnegann, da obra de Márcio de Souza, Mad Maria, médico irlandês a serviço da companhia Madeira-Mamoré Railway Co. que se torna insensível ao massacre de trabalhadores da ferrovia a ponto de matá-los ele mesmo no final das contas.

"Anderson disse que vocês convenceram o prefeito a fazer a cruz para ele mesmo. Como vocês fizeram isso?"

Renan sorriu aquele sorrisinho satânico minúsculo de ursinho e relanceou os olhos para Anderson, que sorria um sorrisinho parecido.

"A senhora quer mesmo saber?"

""Sá" Stella, melhor não", advertiu o sertanejo, suando frio.

"Ouve o "sêo" Danilo, D. Stella, ele é quem sabe das coisas", tornou o pestinha.

Eu desisti de saber. Sabe-se lá o que ainda se pode saber numa noite como essa. Os meninos adoraram o spaghetti e as almondegas. E é claro, a Coca-Cola. Eu disse a Renan que ficasse. Ele é claro, aproveitou para comer mais. Quando ele terminou, eu disse a ele que estava com raiva dele pela atitude impensada. Por isso aquela explosão em frente ao Zé. Mas que eu não tinha deixado de notar que ele me chamou de mãe. Eu disse isso a ele porque eu não queria que ele se sentisse recusado. Era apenas uma atitude dele estava sendo recusada. Eu me perguntava porque até os momentos felizes na cidade tinham que vir revestidos por uma couraça de tensão.

"Então não estava me recusando? O que sou eu sem as minhas atitudes?", e ele me encarou.

"Que você seja a soma de suas atitudes é legítimo, como também é verdade que nem todas são boas. Algumas podem nem ser extremamente más, mas são impensadas. Escolher o prefeito como bode expiatório foi uma. Extremamente má, extremamente impensada."

Ele parou por um tempo, como quando estava pensativo.

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