Acordei no meio da madrugada com ruídos estranhos lá embaixo. Sons ofegantes e esfregantes, me pareceu. A atmosfera era baça, nervosa, prenúncio do terror que é, por exemplo, encontrar a Polícia Obscura numa estrada à noite. Desci com náuseas e com imensa dificuldade de respirar. O telefone tocou. Deslizei o dedo pelo touch pad do meu laptop para trazer o aparato de volta à vida. Eram 3:35 da manhã. Resolvi atender o telefone. Era o prefeito, ainda acordado àquelas horas.
"Tem dois cachorros na frente da sua casa. Procure não olhar pela janela."
Eu disse a ele que estava ouvindo ruídos estranhos e ofegantes e ele assentiu. Disse que eu não olhasse pela janela em hipótese alguma e desligou. Voltei para o quarto assombrada. Que era aquilo agora? Por que Andrés me ligaria a uma hora dessas? Talvez ele tivesse "visto" que eu ia olhar em torno até chegar à origem do ruído estranho e tivesse decidido me alertar.
Os ruídos eram altos; altos demais para o silêncio da noite e estranhos demais para me deixar dormir. Decidi, contra toda advertência, olhar e ver que diabo era aquilo. Quando abri a janela e olhei, era de manhã. Quando eu me voltei para ir lá embaixo ver o que acontecia, não pude conter uma exclamação de espanto: meu criado-mudo estava virado de cabeça para baixo, a poltrona do canto estava tombada e uma porta do meu armário tinha sido arrancada.
Comecei a sentir dores por todo o corpo e me sentei na cama, procurei entender o que se passava. Passava de três e meia quando ouvi os ruídos estranhos lá embaixo. Andrés me ligou e me disse que eram dois cachorros na frente da minha casa. Tentei dormir e fui olhar, mas já era de manhã e não havia nada lá. Só que agora vejo todo esse estrago em meu quarto. Comecei a tentar pensar o que aconteceu entre eu me levantar e abrir a janela. Ou aconteceu quando eu abri a janela?
Meu Deus. Estou me lembrando agora. Não era de manhã quando abri a janela. Eram 3:40 no máximo. O que vi me fez ricochetear pelo quarto como uma bola de borracha maciça, quebrando tudo o que meu corpo tocava. Eram dois cachorros pretos, um deles pouco maior que o outro. O maior estava cobrindo a visão do outro. O horror da visão deles no meio da noite do sertão foi o que me atirou para trás como um coice de arma de fogo.
Pela janela, ouvi o som de um cavalo se aproximando. Olhei pela janela com medo de olhar pela janela. As coisas que a gente vê olhando pelas janelas aqui. E eu que sempre sonhei ter uma pia de cozinha com uma janela ampla como a que eu tenho hoje para que eu pudesse cozinhar olhando para toda uma beleza natural através das janelas, mas qual o que.
Era "sêo" Danilo. Desci e fui fazer café. Larguei toda a bagunça lá em cima. Ele me ouviu enquanto eu contava sobre a minha noite de sono. Ficou assombrado e, enquanto se propunha a me ajudar a arrumar a bagunça, disse que ouviu os mesmos ruídos próximos à casa dele. Perguntei a que horas e ele me disse que já passavam bem das três da manhã.
""Sêo" Danilo, foi mais ou menos a hora em que o ruído começou aqui!"
Eu estava nervosa e ele percebeu minha impaciência. Depois da história na loja de ferragens quando um cão preto avançou sobre mim quando eu já estava no carro de Duílio, me pegava nervosa pensando em cães e todas essas coisas de assombração.
"A senhora lembra, conseguiu ver o que eles estavam fazendo? Nem tive coragem de ir olhar. Essas coisas não me trazem a menor curiosidade, sabe?"
"Só vi os cães. Vi num flash, muito rápido, é a única coisa que me lembro", eu disse, enquanto passava o café.
Ele ficou em silêncio, por algum tempo. Eu estava nervosa com aquilo e com aquele silêncio.
"Os dois cães eram macho e fêmea?"
Eu estava pronta para perguntar como diabos ele esperava que eu me lembrasse, mas num súbito me veio a recordação de que os dois cães eram machos. Achei incrível que ele perguntasse algo tão estapafúrdio e que, pior, eu me lembrasse de algo tão estapafúrdio.
Ele ficou em silêncio, por mais algum tempo quando respondi. Eu me perguntava agora mentalmente qual seria o motivo do silêncio pensativo dele.
"No que o senhor está pensando?"
"No inverno. No final de inverno eles aparecem."
"Quem aparece?"
Ele olhou para mim como se eu soubesse de antemão a resposta.
"Os cães, "sá" Stella", ele disse, sério.
"E isso é bom ou ruim?"
"Isso nem é bom nem é ruim, "sá" Stella. É algo que os cães fazem, só isso. Mas é entre eles, não é uma coisa pra senhora ficar olhando, ainda mais através de uma janela. Já lhe disse pra evitar de ficar olhando pelas janelas, às vezes é melhor sair lá fora direto e olhar, faz menos mal, por estranho que possa lhe parecer", ele disse, ainda bem sério.
Ele me disse que eu também deveria ter cuidado com pessoas olhando para mim de fora de minha casa pelas janelas, principalmente as crianças. Como no dia em que Arthur apareceu na janela para me incentivar a abrir o presente que ele tinha me dado. Contei a ele o que tinha acontecido no dia anterior, com Aparecida desmaiando no meio da cozinha e o almoço duplo do Renan.
Ele me disse que foi a visão do menino enquadrado pela porta de tela, mais o assunto que se falava que levou o sistema nervoso da matriarca dos Conselheiros a um ritmo tão alto de repente que entrou em colapso. Fiquei pensando que ele poderia muito bem ter razão. Quando Adriano e eu olhamos para a cena, Renan já tinha entrado na cozinha e já estava ajudando Aparecida a se levantar.
"E ele ficou irritado que se chamasse ele de assombração, lógico. Provavelmente ouviu uma parte da conversa enquanto se aproximava…", observou o velho sertanejo.
"Sim, provavelmente ouviu mesmo, era uma conversa bem despreocupada."
"E ele tem razão, mesmo com tudo isso o "sêo" Renan é só mais um morador da cidade, "sá" Stella. Fica ofendido de ser considerado como uma coisa diferente, como assombração. Como disse o "sêo" Duílio, é só mais um desses moleques que moram na cidade."
Do nada, Andrés e Adriano apareceram na janela da cozinha, me apavorando e assombrando até o sertanejo. Depois de esculhambar os dois irmãos, ofereci café. Adriano e o prefeito aceitaram de bom grado. O prefeito me olhou e me disse, "e a senhora, é lógico, tinha que abrir a janela pra olhar, inda mais durante a noite", e eu ainda nem tinha contado a ele sobre o estrago que fiz em meu quarto (em caso dele ainda não ter "visto" tudo ele mesmo).
"Eu estava dizendo o mesmo pra ela, gordinho", o velho sertanejo sorriu um sorriso estranho, daqueles que procuram criar um ambiente melhor onde visivelmente não há perspectivas de melhora. Os meninos ficaram olhando para ele e ele para os meninos, todos nós em total silêncio. O silêncio começou a me incomodar.
"E o que é isso agora? Alguém sabe dizer o que é essa coisa nova que está acontecendo?"
"O que?", perguntou o prefeito inocentemente, enquanto pegava café.
"Andrés Silva Conselheiro, não seja ridículo, sobre o que mais estamos conversando???"
"Calma, D. Stella, era brincadeirinha… Calma!" O prefeito ficou pálido. Ele estava assustado com minha explosão emocional. "Sêo" Danilo parecia ele mesmo bem impaciente com o amigo de infância. Eu estava nervosa. Deixei que eles percebessem.
Já ando neurótica dessas coisas esquisitas que acontecem aqui em Taurinos. Coisas que não dão sossego, não se tem uma semana de paz nesta cidade. Porque amarrei aqui o meu burro é pergunta que infelizmente há muito deixou de ter necessidade de uma resposta.
"Todo fim de inverno, os cães pretos começam a vir e fazem não se sabe o que porque ninguém olha", explicou Adriano, retomando o tema do fim de inverno iniciado pelo velho sertanejo.
"Bom, ela olhou", disse o prefeito apontando para mim.
"Quantos cães são?", eu o interrompi bruscamente.
"São dois em cada casa de Taurinos", respondeu Andrés pausada e ressabiadamente, sem me olhar muito diretamente.
"Como assim?", eu perguntei, espantada.
"Sim, tem dois cachorros que ficam em cada casa, no terreno de fora. Na mesma hora que o Andrés ligou pra senhora, tinha dois na frente da nossa casa, dois na frente da casa do "sêo" Danilo, dois na frente da casa do Arthur e por aí vai", ajuntou Adriano.
"Foi o que eu lhe disse, "sá" Stella", confirmou o sertanejo.
"Mas de onde vem isso??? De onde vem esses animais?"
"A gente esperava que a senhora soubesse e nos dissesse", explicou Adriano. Os outros dois assentiram.
"Eu???"
Eu estava atônita. Agora era eu quem tinha de saber de tudo. Bom, por que não, se criei a cidade e tudo o que existe nela? Por que esperar que eles pensassem que eu não tinha de saber de tudo?
"Eu não tenho a mínima ideia do que isso possa ser. Vocês me disseram muito mais do que eu sei até agora. Por que acham que eu posso saber sobre uma coisa pra qual Andrés me chamou por telefone para falar a respeito pela primeira vez às 3:30 da manhã de hoje???"
Noite sem fim a perder de vista sobre as montanhas de Taurinos. Do encontro de hoje, apenas "sêo" Danilo e eu ficamos conversando, de perder o tempo. Saímos para o alpendre, acendi a luz e as mariposas e outras criaturinhas noturnas já tinham começado a encostar na parede do alpendre atraídas pela luz, lançando sombras esquisitas e tortuosas sobre a superfície de tijolo.
O frio prenunciava ser rigoroso esta noite. Nem bem o Sol desceu, já foi ficando gelado, coisas dessa Mantiqueira nem matéria nem espírito que vivencio. Uma noite limpa, um céu absoluto e sem nuvens lá fora.
Fui lá dentro atrás de um casaco, enquanto "sêo" Danilo tirava um casaco de couro de dentro do bornal que às vezes carrega consigo. Eu trouxe uma térmica com café, xícaras, pires, a tralha toda e coloquei na mesa do alpendre. Lá fora o céu estrelado sem fronteiras desta cidade imaginária e legendária.
Olhávamos o céu em respeitoso silêncio. Por muito tempo. Deviam ser umas sete, oito da noite, mas quem se lembraria de contar as horas diante do maior show da Terra?
Sons distantes de cavalos que cedo ou tarde iriam ter aqui. Olhei para "sêo" Danilo e ele aproximou o ouvido do chão como sempre faz para avaliar nossa segurança. Disse que provavelmente eram os dois meninos mas não havia motivos para entrar. Ficamos olhando o céu enquanto os cavalos vinham num crescendo em meio ao silêncio do sertão. Apenas os sons naturais e os cavalos ainda distantes se faziam ouvir.
Os dois pararam em frente ao meu portão e acenaram. Olhei para "sêo" Danilo e os dois meninos acenaram de novo, como que nos chamando. O velho sertanejo parecia cauteloso quando eu disse que iria até lá falar com os policiais.
"Não estou gostando muito da aparência deles, chamando de longe assim, "sá" Stella", ele declarou.
"São só moradores da cidade, lembra? Só uns moleques que vivem aqui."
À medida que nos aproximávamos do portão, senti calafrios correndo pela minha espinha que aumentavam de intensidade à medida que a luz do alpendre ia perdendo força. Às vezes pensava em instalar um poste de luz em meu terreno, sobre o portão. Às vezes pensava se isso valia a pena. Às vezes pensava se atender a um chamado da Polícia Obscura à noite valia a pena.
Os dois jamais desceram dos cavalos, como se fossem inteiriços. O olhar dos dois era sombrio, carregado, fluorescente, mais ainda pela penumbra que o final da luz do alpendre deixava ao perder força.
""Sá" Stella, não chegue mais perto", o velho sertanejo advertiu.
"Podem vir até o portão, não tem problema", disse a vozinha de Renan. Uma vozinha suave, obscura, sombria e calma como a noite ao redor. A escuridão me deixou nervosa naquele momento.
"O que vocês querem?"
"Estamos dando um toque de recolher na cidade por causa dos cachorros que estão aparecendo à noite", explicou o policial mais velho.
"O que há com esses cachorros, afinal? São perigosos?"
"A senhora viu os cachorros?", perguntou o policial mais novo.
"Muito rapidamente."
"A senhora pode ter problemas por ficar olhando assim pela janela à noite, sabia?", tornou o policial mais velho.
"Já tive vários esta madrugada."
Os olhos dos dois eram horríveis naquela penumbra. O sertanejo evitava olhar diretamente para eles. Eu olhava, fascinada com aquela visão dos dois de preto se confundindo com a escuridão em redor e o branco dos olhos dos dois que parecia fluorescente naquele breu de noite sem luar; meu olhar insistente fazia os dois se entreolharem. Eles pediram que "sêo" Danilo ficasse para pousar aqui. Desnecessário dizer que eu e ele aprovamos a medida.
"Está tudo bem com a senhora? Dá pra parar de olhar fixo assim pra a gente?", perguntou Renan, vendo que eu não tirava os olhos dele e de seu parceiro.
sexta-feira, 21 de agosto de 2009
quinta-feira, 20 de agosto de 2009
Aéreo
O telefone tocou de manhã. Era Donana, perguntando se eu tinha encontrado Renan ontem. Eu disse que o tinha visto à noite, no descampado, enquanto observava o céu. Ela, como todos os outros, queria entender o que eu ficava fazendo num descampado à noite olhando o céu. Expliquei que às vezes se precisava tirar um momento para não fazer nada, etc., mas ela pareceu ter ficado na mesma.
Não obstante, mudou de assunto, dizendo que o filho estava aéreo como ela nunca tinha visto. Eu disse que achava que Renan era algo entre um tanque de guerra e uma bolha de sabão. Muito forte, mas também muito frágil, pronto para explodir ao menor contato. Ela a principio não entendeu, mas depois pareceu concordar com minha avaliação sobre o pequeno.
"E eles pararam do seu lado para olhar o céu, foi?"
"Ficaram lá comigo a noite toda sem dizer uma palavra. Pareciam hipnotizados."
"Será que isso não fez mal aos meninos? Nunca vi o Renan fazendo esse tipo de coisa, D. Stella"
"Se não fizer bem, mal também não pode fazer, Donana."
"O que a senhora acha que eles ficam fazendo à noite?"
"Bom, não ficam lá caçando os forasteiros, entrantes, ou sei lá o que mais?"
"Mas é só isso?", Donana quis saber.
"Eu não chamaria de só isso. Acho que deve ser o diabo ficar fazendo isso. Se isso não faz mal a eles, por que olhar o céu e as estrelas à noite faria?"
Houve uma pausa do outro lado da linha. Uma pausa gigantesca. Depois, Donana se despediu, disse que tinha esquecido algo no fogo. Eram realmente umas dez horas da manhã, horário em que as donas de casa em Taurinos costumavam começar a cozinhar para que a comida estivesse pronta lá pelo meio-dia.
Passei pela fazenda Taurinos um pouco mais tarde. Andrés estava na Prefeitura despachando. Fico pensando o que esse menino tanto tem para despachar numa cidade que parece estar completa, onde praticamente não falta nada. Ficamos eu, Adriano e Aparecida na cozinha da fazenda conversando enquanto eu ajudava Aparecida com o almoço.
"E ela ligou querendo saber do menino?", Aparecida perguntava, entretida em cortar couve tão fina que eu não conseguia deixar de pensar que ela cortaria o dedo, tão pouca a distância entre o fio da faca e seu indicador.
"Na verdade queria saber se eu tinha estado com ele", respondi enquanto começava a fatiar pepino.
"E tinha?", perguntou Adriano.
"Sim, eles apareceram do nada nos cavalos lá no descampado…"
"D. Stella! Creio em Deus Padre!", a mulher se horrorizava só de imaginar.
"Mas não, não estavam armados, estavam normais, eles só estavam vestidos de preto e cobertos de sangue", respondi segurando o riso e fazendo a matriarca dos Conselheiros se persignar, "estranho, não disseram uma única palavra e ficamos lá a noite inteira em silêncio total…"
Adriano estranhou e ficou com expressão de quem estava pensando.
"Então não foram assustar a senhora?", tornou Aparecida.
"Ah, assusta sempre um pouquinho, porque eu estava sozinha e a gente sempre acha que eles vão vir armados. Mas não escutei sons estranhos deles armados quando cheguei meu ouvido perto do chão…"
"Creio em Deus Padre, D. Stella não faça isso! Dizem que não presta ouvir os dois chegando assim de noite perto do chão…", ela estava pálida.
"Prestar não presta, mas é melhor que encostar o ouvido no chão, mãe", disse o filho mais velho, "aí a pessoa quer ficar surda ou louca, né não?"
"Será que é assim tão pior do que ver os dois naquelas armaduras ao vivo e a cores?", eu tive que questionar.
"Ai, eu não estou gostando nem um pouco dessa conversa… Será que não dá pra gente mudar de assunto?"
Houve um silêncio, mas não tinham transcorrido cinco segundos desde o pedido de Aparecida e um grito que ela soltou. Quando eu e Adriano olhamos, Renan estava ao lado dela, todo de preto, sombrio, olhando sério pra nós, ajudando a pobre mulher a se erguer. Adriano correu para perto da mãe e livrou o policial minúsculo do peso. Renan estava esquisito e sombrio. Não que ele não fosse usualmente esquisito e sombrio, mas era um esquisito e sombrio diferente. Não saberia como explicar, mas me encheu de calafrios.
"Detesto quando vocês ficam falando de mim e do meu parceiro como se a gente fosse assombração", ele disse num tom tão esquisito e sombrio quanto sua aparência.
"Mas você gosta de meter medo nas pessoas, não? Se orgulha do tanto que é terrível", rebateu Adriano, ainda reanimando a mãe.
"Foda-se! Eu não sou assombração, ouviram? Sou um moleque como qualquer outro na cidade!"
Fiz um sinal a Adriano que deixasse o pequeno falar sem provocar. Estava vendo a hora em que ele ia se armar ali e aí adeus sossego. Sem contar com o que aconteceria a Aparecida, que só de falar no assunto já ficava apavorada. Que desmaiou só de ver o menino vestido de preto aparecendo pela porta de tela dos fundos da cozinha.
"O que é que você quer aqui, Renan?", Adriano perguntou quando o menino parecia ter dissipado um pouco do calor interno.
"Vim perguntar se eu posso almoçar com vocês hoje."
E ele ficou para o almoço. Ficou esperando e eu chamei Adriano num canto e pedi que ele me levasse à fazenda Teixeira enquanto o almoço não ficava pronto. Ele nada entendeu, mas me levou. Não acredito como Aparecida se animou a ficar sozinha com Renan na cozinha.
Entramos na fazenda e Donana veio à porta nos receber. Nos convidou para almoçar. Disse que só queríamos falar com o Renan. Adriano me olhou espantado, mas me seguiu enquanto eu adentrava a sala de jantar da família. Renan foi o primeiro a me ver e sorriu para nós.
"A senhora podia ter telefonado. Trabalheira vir até aqui."
Adriano me olhava com os olhos esbugalhados. Aparentemente a história dos aspectos o assombrava também. Quando voltamos à fazenda Taurinos, Renan e Aparecida já estavam almoçando. Decerto decidiram não esperar. Renan novamente me disse que eu poderia ter telefonado.
"Se a senhora perguntasse eu teria dito que eu estava almoçando com a minha família", ele observou entre tímido e sombrio.
A seu lado, Aparecida não estava entendendo nada. Eu desconversei rapidamente para evitar um outro desmaio da matriarca dos Conselheiros em plena mesa do almoço. Conversamos muito e Renan parecia ter um prazer especial em ouvir nossa conversa e dar seus apartes também. Ele foi ficando cada vez menos sombrio à medida que a refeição progredia. No final do almoço, no alpendre, sozinha com ele e Adriano, perguntei porque cargas d'água almoçar em dois lugares ao mesmo tempo, cinco quilômetros longe um do outro.
"Tava muito silêncio na mesa hoje lá em casa. Fiquei triste."
Eu e Adriano nos entreolhamos. Lá na porteira, um carro que não reconheci parou, deixando Duílio em casa, atrasado para o almoço.
Não obstante, mudou de assunto, dizendo que o filho estava aéreo como ela nunca tinha visto. Eu disse que achava que Renan era algo entre um tanque de guerra e uma bolha de sabão. Muito forte, mas também muito frágil, pronto para explodir ao menor contato. Ela a principio não entendeu, mas depois pareceu concordar com minha avaliação sobre o pequeno.
"E eles pararam do seu lado para olhar o céu, foi?"
"Ficaram lá comigo a noite toda sem dizer uma palavra. Pareciam hipnotizados."
"Será que isso não fez mal aos meninos? Nunca vi o Renan fazendo esse tipo de coisa, D. Stella"
"Se não fizer bem, mal também não pode fazer, Donana."
"O que a senhora acha que eles ficam fazendo à noite?"
"Bom, não ficam lá caçando os forasteiros, entrantes, ou sei lá o que mais?"
"Mas é só isso?", Donana quis saber.
"Eu não chamaria de só isso. Acho que deve ser o diabo ficar fazendo isso. Se isso não faz mal a eles, por que olhar o céu e as estrelas à noite faria?"
Houve uma pausa do outro lado da linha. Uma pausa gigantesca. Depois, Donana se despediu, disse que tinha esquecido algo no fogo. Eram realmente umas dez horas da manhã, horário em que as donas de casa em Taurinos costumavam começar a cozinhar para que a comida estivesse pronta lá pelo meio-dia.
Passei pela fazenda Taurinos um pouco mais tarde. Andrés estava na Prefeitura despachando. Fico pensando o que esse menino tanto tem para despachar numa cidade que parece estar completa, onde praticamente não falta nada. Ficamos eu, Adriano e Aparecida na cozinha da fazenda conversando enquanto eu ajudava Aparecida com o almoço.
"E ela ligou querendo saber do menino?", Aparecida perguntava, entretida em cortar couve tão fina que eu não conseguia deixar de pensar que ela cortaria o dedo, tão pouca a distância entre o fio da faca e seu indicador.
"Na verdade queria saber se eu tinha estado com ele", respondi enquanto começava a fatiar pepino.
"E tinha?", perguntou Adriano.
"Sim, eles apareceram do nada nos cavalos lá no descampado…"
"D. Stella! Creio em Deus Padre!", a mulher se horrorizava só de imaginar.
"Mas não, não estavam armados, estavam normais, eles só estavam vestidos de preto e cobertos de sangue", respondi segurando o riso e fazendo a matriarca dos Conselheiros se persignar, "estranho, não disseram uma única palavra e ficamos lá a noite inteira em silêncio total…"
Adriano estranhou e ficou com expressão de quem estava pensando.
"Então não foram assustar a senhora?", tornou Aparecida.
"Ah, assusta sempre um pouquinho, porque eu estava sozinha e a gente sempre acha que eles vão vir armados. Mas não escutei sons estranhos deles armados quando cheguei meu ouvido perto do chão…"
"Creio em Deus Padre, D. Stella não faça isso! Dizem que não presta ouvir os dois chegando assim de noite perto do chão…", ela estava pálida.
"Prestar não presta, mas é melhor que encostar o ouvido no chão, mãe", disse o filho mais velho, "aí a pessoa quer ficar surda ou louca, né não?"
"Será que é assim tão pior do que ver os dois naquelas armaduras ao vivo e a cores?", eu tive que questionar.
"Ai, eu não estou gostando nem um pouco dessa conversa… Será que não dá pra gente mudar de assunto?"
Houve um silêncio, mas não tinham transcorrido cinco segundos desde o pedido de Aparecida e um grito que ela soltou. Quando eu e Adriano olhamos, Renan estava ao lado dela, todo de preto, sombrio, olhando sério pra nós, ajudando a pobre mulher a se erguer. Adriano correu para perto da mãe e livrou o policial minúsculo do peso. Renan estava esquisito e sombrio. Não que ele não fosse usualmente esquisito e sombrio, mas era um esquisito e sombrio diferente. Não saberia como explicar, mas me encheu de calafrios.
"Detesto quando vocês ficam falando de mim e do meu parceiro como se a gente fosse assombração", ele disse num tom tão esquisito e sombrio quanto sua aparência.
"Mas você gosta de meter medo nas pessoas, não? Se orgulha do tanto que é terrível", rebateu Adriano, ainda reanimando a mãe.
"Foda-se! Eu não sou assombração, ouviram? Sou um moleque como qualquer outro na cidade!"
Fiz um sinal a Adriano que deixasse o pequeno falar sem provocar. Estava vendo a hora em que ele ia se armar ali e aí adeus sossego. Sem contar com o que aconteceria a Aparecida, que só de falar no assunto já ficava apavorada. Que desmaiou só de ver o menino vestido de preto aparecendo pela porta de tela dos fundos da cozinha.
"O que é que você quer aqui, Renan?", Adriano perguntou quando o menino parecia ter dissipado um pouco do calor interno.
"Vim perguntar se eu posso almoçar com vocês hoje."
E ele ficou para o almoço. Ficou esperando e eu chamei Adriano num canto e pedi que ele me levasse à fazenda Teixeira enquanto o almoço não ficava pronto. Ele nada entendeu, mas me levou. Não acredito como Aparecida se animou a ficar sozinha com Renan na cozinha.
Entramos na fazenda e Donana veio à porta nos receber. Nos convidou para almoçar. Disse que só queríamos falar com o Renan. Adriano me olhou espantado, mas me seguiu enquanto eu adentrava a sala de jantar da família. Renan foi o primeiro a me ver e sorriu para nós.
"A senhora podia ter telefonado. Trabalheira vir até aqui."
Adriano me olhava com os olhos esbugalhados. Aparentemente a história dos aspectos o assombrava também. Quando voltamos à fazenda Taurinos, Renan e Aparecida já estavam almoçando. Decerto decidiram não esperar. Renan novamente me disse que eu poderia ter telefonado.
"Se a senhora perguntasse eu teria dito que eu estava almoçando com a minha família", ele observou entre tímido e sombrio.
A seu lado, Aparecida não estava entendendo nada. Eu desconversei rapidamente para evitar um outro desmaio da matriarca dos Conselheiros em plena mesa do almoço. Conversamos muito e Renan parecia ter um prazer especial em ouvir nossa conversa e dar seus apartes também. Ele foi ficando cada vez menos sombrio à medida que a refeição progredia. No final do almoço, no alpendre, sozinha com ele e Adriano, perguntei porque cargas d'água almoçar em dois lugares ao mesmo tempo, cinco quilômetros longe um do outro.
"Tava muito silêncio na mesa hoje lá em casa. Fiquei triste."
Eu e Adriano nos entreolhamos. Lá na porteira, um carro que não reconheci parou, deixando Duílio em casa, atrasado para o almoço.
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